terça-feira, 3 de setembro de 2024

 Por que voto na Professora Isabel?




Conheci Isabel na Escola Municipal Osmany, era professora alfabetizadora de um primeiro ano no humilde bairro Medianeira em Osório. Para quem não é da área, o primeiro ano é das crianças que não sabem ler nem escrever, confundem as palavras ontem e amanhã e muitas vezes não sabem ir ao banheiro sozinhas. O patrono da educação nacional, o pensador brasileiro mais citado no mundo, Paulo Freire, dizia que os professores mais qualificados devem dar aulas para os estudantes menos qualificados. Exatamente por isso lá estava ela, doutora em educação pela UFRGS, por amor e carinho pelos mais vulneráveis e pobres da cidade, ensinando a desenhar a letra “A” para aqueles que ainda não sabem. Nada é mais importante e revolucionário do que ensinar a ler a população despossuída. 


Queríamos melhorar o atendimento às crianças da escola, então apoiamos uma professora muito preparada em gestão na eleição de diretores. Saímos às ruas do bairro conversando com os pais em campanha e lá estava Isabel, consciente de que a gestão escolar tem influência direta no aprendizado dos alunos. Entramos nas casas, tomamos café, ouvimos os problemas das camadas menos favorecidas da cidade. Isabel ouvia e planejava como resolver as demandas mais diversas. Conhecia todo mundo e fazia ligações telefônicas na mesma hora para alguém que pudesse atender aquele povo. Isabel se provou um verdadeiro polo de conexão entre aqueles que precisam com aqueles que estão no poder para executar.


Queríamos melhorar as condições de trabalho dos professores, faxineiras e merendeiras das escolas e passamos a frequentar as assembleias do sindicato dos funcionários públicos. Lá estava a corajosa Professora Isabel de novo, falando nas reuniões, organizando os colegas para reivindicar junto à prefeitura as necessidades profissionais. Ela já tinha sido duas vezes presidente do sindicato dos funcionários públicos de Osório. Muitos se reuniram e decidimos montar uma chapa para presidir o sindicato de novo, todos confiamos a presidência à Isabel por ser a mais experiente para lidar com o cipoal político entre a câmara de vereadores e a prefeitura.


Quis me aposentar e procurei orientação sobre o que deveria fazer para ao fim de uma longa vida funcional ter o direito de parar de trabalhar. Para minha surpresa, a presidente do fundo de previdência do município era ela de novo, Isabel. Com atenção, me ouviu e me informou sobre o que eu precisava.

 

Queríamos reagir ao desmonte do serviço público federal e diminuição dos direitos dos trabalhadores do país. Fomos às ruas de novo, de bandeira em punho fazer campanha para presidente, governador, senador e deputados federal e estadual. Descobri que Isabel estava lá também, liderança partidária, na sua luta infinita, na nossa luta infinita.


Visitei Isabel em sua casa e descobri que é esposa, mãe e avó, tem cachorros e plantas, cozinha e faxina, constroi seus próprios móveis e pinta sua própria casa. Percebi então, que não só em sua casa Isabel cuida de todos, mas em toda a comunidade osoriense, como se fossem seus descendentes, com amor de mãe, com esforço, com carinho, com atenção. Como ela arranja tempo para tudo? Não sei, é um mistério, mas ela dá conta dando risada e fazendo planos para o futuro. 


Perdemos aquela eleição para diretores, mas tudo bem, elegemos Dilma!! Perdemos aquela eleição para o sindicato, mas tudo bem, elegemos Lula!!! No último pleito, Isabel foi a terceira mais votada e não se elegeu pelo coeficiente eleitoral da legenda. Mas tudo bem, vamos eleger Isabel desta vez, queremos uma mulher, mãe, negra, professora, doutora na câmara de vereadores de Osório!! Ora, é óbvio, para vereador, quero um representante assim! Uma pessoa que me receba, escute, tente resolver minhas demandas e da minha comunidade. Essa é a função de um parlamentar, função que Isabel já exerce ainda sem mandato. Ninguém é mais capacitado que a Professora Isabel para o cargo de vereadora. No dia 6 de outubro, vou digitar 13120 para votar na Professora Isabel para ser minha representante na Câmara de Vereadores de Osório. 



domingo, 18 de agosto de 2024

 Para quem viver é subverter


Para você, caro leitor, que não sabe exatamente o que é um autista, vou tentar te ilustrar o pensamento: Imagine uma paisagem campestre, com vaquinhas pastando, árvores, flores, um dia claro de sol, talvez um córrego e uns morros ao fundo. Uma pessoa comum vê a cena e vai embora sossegado, satisfeito com o que viu. Já o autista não fica sossegado nem satisfeito. O autista é aquele que vê uma formiga na imensa paisagem e se inquieta. Não só vê a formiga, como percebe que ela sobe e desce de um capim qualquer sem razão aparente. Intrigado, ele se aproxima e fica observando aquele comportamento inútil. O resto da paisagem já nem aparece mais na cabeça do cara, só aquela formiga interessa agora. O autista é aquele esquisito que a partir daquele momento só pensa em descobrir porque aquele inseto gasta energia à toa. Todos os dias ele voltará lá para observar as formigas, aquilo lhe tira o sono, incomoda. Descobre a espécie da formiga, estuda seus hábitos, cata algumas para olhar no microscópio, volta para casa entusiasmado e só fala do que descobriu. Você até pode argumentar que um entomologista também faz isso. Pois é, muitos entomologistas são autistas, admita, não é uma profissão muito comum, assim como autistas. O autista é aquele cara que descobre que a formiga que sobe e desce o capim está infectada por um fungo que só se reproduz no estômago das vacas. Ele é o cara que descobre que esse fungo tem o poder de controlar o cérebro da formiga, a fazendo subir e descer até a ponta do capim para aumentar a chance de ser engolida por alguma vaca. O autista extrapola sua pesquisa para outros animais até que se pergunta se há fungos ou bactérias que interferem no cérebro humano também. Enfim, o autista é aquele chato que descobre que sim, aliás, é a regra, cérebros de seres humanos e outros animais são sempre controlados por fungos, bactérias, vírus e protozoários. É ele que percebe que esses seres microscópicos são muito mais antigos evolutivamente e falam uma língua que o cérebro já nasce fluente. O autista é o cara que subverte todas as crenças, todo o “establishment” humano vai passar a refletir para sempre sobre aquela formiguinha que sobe e desce do capim, porque depois da cuidadosa compreensão dessa minúscula atitude entomológica, até o sagrado livre arbítrio das pessoas fica sob suspeita. Aquele sujeito estranho, que ficava ajoelhado por horas na grama molhada, sob chuva, com uma lupa, acaba sendo responsável por uma total reinterpretação das religiões, do sistema jurídico de qualquer país, da psicologia humana, da sociologia ou mesmo da ecologia do mundo. As pessoas comuns querem matar o autista, seria tão mais fácil se admirar com aquela bucólica cena campestre e simplesmente aceitar que é um presente divino e imutável. Para que ficar reparando nas formigas? Malditos autistas! Os autistas têm muitos opositores.

Mas tu nunca ouviste falar de autistas que fossem inteligentes, perspicazes ou sagazes, muito menos famosos como certamente ficaria o entomologista fictício que criei na minha alegoria. Ao contrário, a própria palavra autismo já provoca uma certa pena, eles não são deficientes mentais? Depende. Vamos estudar o caso de um autista clássico, que ninguém nem suspeita que era autista, o mais famoso filósofo da Grécia antiga, Sócrates. Claro que ninguém chamava ele de autista, até porque o conceito nem existia ainda, mas as pistas de que era são fáceis de achar nos textos de quem escreveu sobre ele, Platão, Aristófanes e Xenofonte: Sócrates era sujo e fedorento, nada atento a higiene pessoal, era insensível à temperatura ambiente, estava sempre com a mesma túnica surrada e descalço até mesmo sob neve. Muitas vezes ficava contemplando o nada por horas, refletindo sobre alguma coisa que disseram. Fazia perguntas constrangedoras para estranhos na rua, até para pessoas ricas e famosas, sem se dar conta de sua inadequação. Não entendia hierarquia social e aparentava não ter preocupações com dinheiro ou bens. Parecia um mendigo, para muitos era louco ou, no mínimo, um sem noção. No entanto, quando conversavam com ele, qualquer um percebia que era muito inteligente. Ele tentava entender analiticamente o que as pessoas comuns se satisfaziam entendendo intuitivamente. Todo mundo sabe o que é justiça ou amor, até vir um autista do nada pedindo explicações. Muitas vezes, os autistas aborrecem pois não são o que se espera deles, não têm atitudes comuns.

O cérebro dos autistas precisa encontrar razões para questões que outras pessoas convivem sem problematizar. O cidadão comum não se pergunta sobre regras, normas ou leis, simplesmente as segue sem questionamentos, mas o autista não. Seus cérebros são diferentes, sofrem sem respostas que os satisfaçam dos porquês que encontram pela vida. Porque alguém teria que tomar banho, escovar os dentes, lavar louça ou ir para a escola? Nos seus núcleos familiares, são aqueles membros que não conseguem fazer o que todos fazem com naturalidade, a dinâmica familiar é complicada e sofrida demais para eles. O padrão da família é inalcançável para um cérebro autista, é impossível para eles lidar com situações que todos os outros lidam com facilidade, por isso muitos se deprimem, se isolam ou recorrem às drogas. Na sociedade meritocrática capitalista a situação se agrava, pois não conseguem produzir o que se espera, nem minimamente o que se consideraria normal, o desemprego é recorrente entre eles. No entanto, eles se esforçam muito para viver no mundo como todos gostariam que fossem.


Os autistas estão por aí, batalhando com seus cérebros diferentes, em todos os lugares, muitas vezes disfarçados de pessoas comuns, não só entre filósofos da Grécia antiga ou entomologistas fictícios. Um exemplo que gosto de lembrar é o de Steve Jobs, famoso empresário americano já falecido. Na infância, Jobs foi adotado por pais que não tinham ensino superior. A criança tinha características difíceis, era inquieto, sua mãe até pensou em devolvê-lo. Seu pai adotivo, Paul, era um faz tudo que pulava de um emprego para outro, comprava carros usados, reformava e vendia, construiu na garagem uma bancada de trabalho com muitas ferramentas onde permitia que seu filho brincasse livremente pois ali a criança se acalmava. O pequeno Steve gostava de acompanhar o pai nas suas lides. Na escola, Jobs era péssimo aluno, não tinha o menor interesse por nenhuma disciplina, menos ainda por esportes, sofria muito bullying e era considerado solitário pois não brincava ou falava com ninguém. No quarto ano, sua professora, decerto desesperada, passou a subornar aquele aluno problema com dinheiro de verdade se terminasse a tarefa. O menino passou a gostar de ler e escrever, lia de tudo, de Moby Dick a Shakespeare. Passou a ir tão bem que o adiantaram para o sexto ano. Logo foi visto como “nerd” e se viu obrigado a trocar de escola devido ao assédio moral que sofria dos colegas. No ensino médio conheceu seu grande amigo, outro nerd, curiosamente com o mesmo apelido, que também gostava de eletrônica, Steve Wozniak. Os dois passavam horas na garagem do pai de Jobs criando aparelhos eletrônicos. Com muito esforço financeiro, seus pais o levaram até faculdade, mas Jobs não tinha a menor ideia do que cursar, então vagava por cursos de caligrafia, jazz e literatura vestindo sempre as mesmas surradas calças jeans e camiseta preta. Sentindo que estava desperdiçando as economias de seus pais a toa na cara universidade que ele mesmo não via sentido nenhum, largou tudo para não ser um fardo na família. Por um tempo, dormia no chão do quarto dos amigos, catava latinhas de alumínio para ganhar algum dinheiro e comia no templo Hare Krishna, provavelmente fedia como Sócrates nessa época. Jobs não se encaixava em grupo nenhum, entre os nerds era considerado hippie e entre os hippies era considerado nerd. Viajou para a Índia contra a vontade de seus pais para se encontrar, segundo ele mesmo, pois se angustiava se achando um “freak”, um desajustado. Ao voltar depois de sete meses sabáticos, Steve estava modificado, influenciado pela busca da simplicidade do zen-budismo e confiante na sua intuição, procurou seu amigo Wosniak e, na garagem de seu pai, fundaram em sociedade a Apple Computers tornando-se multimilionários. O que pouca gente sabe é que Steve Jobs era autista e sua trajetória é a caricatura da vida de um. Não se interessou por formigas que sobem e descem capins, mas por circuitos eletrônicos e códigos de máquina. Ele, que era considerado um solitário na escola, alguém que não falava com ninguém, fundou uma empresa que cria e fabrica aparelhos eletrônicos que, ironicamente, melhoram a comunicação de todos e acabou subvertendo o establishment da sociedade.

Antes de continuar a falar de autistas e suas características, vou precisar fazer um pequeno parêntese explicando o contexto mundial do momento em que o conceito do que é um autista foi criado. No final dos anos setenta do século passado, enquanto Jobs viajava em todos os sentidos pela Índia, o Oriente Médio estava em polvorosa. País que respondia por grande parte da produção mundial de petróleo, o Irã vivia uma revolução teocrática. Os líderes do novo regime modificaram leis de costumes e de comércio de sua maior riqueza. As leis islâmicas obrigaram as mulheres do país a vestir burca para sair de casa e o mundo viveu uma de suas maiores crises econômicas devido à elevação súbita dos preços da energia. A indústria automobilística começou a se adaptar aos novos tempos lançando carrinhos muito menores, mais baratos e econômicos, como o Ford Fiesta, projeto mundial da montadora americana lançado em 1976. O debate ambiental estava apenas engatinhando, Elon Musk era um desconhecido adolescente que vivia em Pretória, na África do Sul, os pais de Greta Thumberg nem namoravam ainda na Suécia, Jobs meditava na Índia e a China era um país muito pobre onde todos andavam de bicicleta. 

Nos anos oitenta, a “década perdida”, como ficou conhecida mais tarde, as ditaduras militares na América Latina foram caindo uma a uma com a grave crise econômica que maltratava o povo pobre em todo mundo. A Apple computers de Jobs já era uma empresa consolidada como uma grande inovadora. No Brasil, começava um movimento de redemocratização quando a Chevrolet lançou o carro Monza 1.6, com motor quatro cilindros em linha, em 1982, tentando substituir no país carrões esbanjadores de gasolina como Chevrolet Opala, Ford Galaxy ou Maverick e os Dodge Dart com seus enormes motores de oito cilindros em V de mais de cinco mil centímetros cúbicos. A italiana Fiat viu uma oportunidade no empobrecido mercado brasileiro, construiu uma fábrica em solo nacional e lançou no Brasil toda uma gama de carros com motores 1.0 derivada do modelo 147. 

No começo dos anos noventa, aquela crise mundial provocada pelos aiatolás iranianos já havia passado, o preço internacional do petróleo estabilizou em níveis muito mais altos. A orientação política de toda América Latina agora era a democracia representativa. A preocupação ambiental que já existia passou a ser levada seriamente em consideração. A ONU organizou a primeira cúpula sobre o meio ambiente no Brasil, a Rio 92. A economia juntava os cacos de tudo que havia sobrado para recomeçar. Designers se apressaram para mostrar ao mundo que as coisas tinham mudado. A Apple de Jobs apresentou computadores coloridos e arredondados e os carros inadequados de décadas passadas foram repaginados para a nova realidade ou simplesmente defenestrados. Os dinossauros automobilísticos Galaxy, Dart, Maverick e Opala sumiram do mercado com seus enormes e ineficientes motores e suas desengonçadas carrocerias cheias de metal. Monza, Fiesta e Fiat 147, assim como os desktops Apple, também arredondaram arestas, mas de forma bizarra, tentando mascarar suas características originais, buscando se adequar às exigências do novo meio ambiente mercadológico com cores aberrantes. O panorama econômico não permitia ainda novos projetos, somente gambiarras e adaptações curiosas sobre antigas plataformas para que tudo parecesse novo ou no mínimo aceitável. Modelos estranhíssimos começaram a ser produzidos. Somente alguém muito distraído não percebia que aqueles carros eram esquisitos pois fingiam ser o que não eram. 


Nos anos 2000, o debate sobre o meio ambiente começou a ditar regras para a economia. Jobs via o mundo de uma forma diferente e lançava os Ipods, minúsculos tocadores de música substituindo os grandes desktops, já que a maioria das pessoas usava seus computadores somente para baixar e armazenar músicas. Jovens que nasceram no novo milênio já cresceram refletindo sobre o mundo com olhos bem diferentes dos seus pais. O maior exemplo dessa geração é Greta Thunberg, uma ativista ambiental sueca. Menina prodígio, aos 15 anos convenceu seus pais a vender o Ford Fiesta da família e adotar um estilo de vida que não agredisse tanto o meio ambiente. Em suas próprias palavras, “com menor pegada de carbono”. Aos 16, passou a faltar às aulas toda sexta-feira, ia para a frente do parlamento sueco protestar segurando uma cartolina escrita com tinta guache a mão que dizia: “Greve escolar pelo clima”. Por um bom tempo ela enfrentou sozinha essa luta, um verdadeiro Dom Quixote, com suas trancinhas de menina e sua capa de chuva para resistir à crueldade das intempéries suecas. No entanto, aquele ato de resistência determinado da adolescente esquisitona, chamou a atenção da imprensa que foi conversar com ela e logo percebeu que era muito inteligente, assim como Sócrates, e sua luta ganhou repercussão nacional. Primeiro, foi a escola em que estudava que acolheu sua obstinação, mas  logo, muitos outros jovens de outras escolas do país perceberam a importância de seu discurso e começaram a acompanhá-la no protesto. 


A militância abnegada da jovem ativista a alçou à fama mundial e, antes de completar 18 anos, Greta estava discursando na cúpula sobre o clima da ONU, apontando o dedo na cara de chefes de estado do mundo inteiro, perguntando como eles se atreviam a ser tão irresponsáveis com a geração que os sucederia. Na manhã seguinte, seu rosto estampava a capa de jornais em todo o planeta com a frase que a tornou famosa na manchete: “How dare you?!”  Com sua ousadia, Greta subverteu o establishment mundial e atraiu para si um imenso manancial de amor e ódio que ninguém imaginava, muito menos ela. De um dia para o outro, aos 17 anos, Greta Thunberg se tornou uma unanimidade mundial assim como Jobs, obviamente tinha um cérebro poderoso, porém polêmico: para uns, uma grande líder a ser seguida; para outros, alguém a ser combatido.

Proporcional ao entusiasmo que seu discurso causou em sua geração, foi a oposição que brotou naquelas pessoas que queriam manter as coisas como estão, como se nada tivesse acontecendo com o clima global, os que lutam pelo “business as usual”, geralmente pessoas com interesses econômicos da geração antecessora. Os maledicentes de Greta Thunberg começaram a procurar detalhes negativos na sua biografia, alguma coisa que a diminuísse. A tarefa era difícil, pois há pouco tempo Greta passou a falar, segundo ela mesma, com qualquer pessoa. A menina não via razão para conversar com ninguém, pois seus interesses eram bem diferentes daqueles dos adolescentes da sua idade. Greta é daquelas que percebe que as formigas que sobem e descem capins influenciam o ambiente tanto quanto são influenciadas por ele, tudo está interligado. O foco de seus críticos passou a ser o fato de ela ser autista e o autismo passou a ser estudado por aqueles que querem invalidar suas posições políticas. Maldita autista que veio subverter o establishment!

Muitos autistas não são deficientes intelectuais, como muitas pessoas acreditam, Steve Jobs e Greta Thumberg provam isso de maneira cabal. Eles não tem alguma doença na cabeça como os detratores de Greta querem fazer crer. A principal característica que os diferencia dos demais é que seu cérebro se desenvolve e funciona um pouco diferente das pessoas comuns, são chamados de neuro divergentes. Eles apresentam maior dificuldade em se comunicar, começam a falar mais tarde que seus pares neurotípicos, não entendem ironia ou figuras de linguagem, expressões faciais são incompreensíveis para eles, são aqueles amigos que nunca entendem as piadas, necessitam de explicações. Muitos não conseguem olhar nos olhos, pois o olho no olho é um fluxo tão intenso de comunicação que seu cérebro não suporta tamanha carga. Sua dificuldade é basicamente social, alguns nem chegam a aprender a falar e por isso são muitas vezes ignorados por seus colegas, isso impede que socializem com tranquilidade. Autistas também têm outras características que as pessoas estranham, fazem falas ou movimentos  repetitivos, têm uma hipersensibilidade sensorial, não suportam som alto, luzes intensas ou cheiros fortes, se incomodam muito com o tato das etiquetas nas roupas novas, tem certa insensibilidade a dor e ao frio e não se preocupam nada com a higiene pessoal. Ao longo de suas vidas, autistas aprendem a se controlar: controlam seus movimentos e falas repetitivas, fazem grande esforço para olhar nos olhos ao conversar, tentam não monopolizar a conversa com seus assuntos prediletos, fingem não se incomodar com ruídos ou cheiros no ambiente que só eles sentem. Fazem todo um esforço para parecer neurotípicos, inclusive fazendo coisas que não veem necessidade alguma como tomar banho todos os dias, conversar amenidades ou ouvir música na sala de espera, mas isso é extremamente cansativo, então preferem se isolar em algum lugar que fiquem em paz com suas características neuro divergentes, geralmente à sós, observando alguma formiga que lhes chame a atenção. 

No entanto, os autistas têm qualidades que estão muito acima da média justamente por serem neuro divergentes. Percebem detalhes que ninguém reparou, pensam soluções inusitadas, são muito responsáveis e pontuais, tem uma memória seletiva maravilhosa, são imbatíveis em pensamento lógico matemático, conseguem manter o foco por muito tempo num único assunto com tamanha atenção que os neurologistas até deram um nome para sua concentração incomum: hiperfoco. Seu cérebro diferenciado os leva muitas vezes a conduzir a humanidade para avanços gigantescos. Muitas vezes, aquele colega esquisito na escola, que se balançava todo na fila e parecia ter a faísca atrasada, que sofria todo tipo de bullying, acaba virando patrão de seus algozes na idade adulta. Atualmente, um bom exemplo é o empresário americano Elon Musk, assumidamente autista, Ele também, exatamente como Steve Jobs, tem uma vida caricatural de autismo. Suas diversas empresas inovam de veículos espaciais a telhas que geram eletricidade, passando por carros elétricos e inteligência artificial. O rapaz é um furacão, todo voltado para essa nova economia de baixo carbono. Suas ideias políticas são extremamente condenáveis, ele é um fascista amigo de Trump e Bolsonaro, mas é inegável que sua capacidade intelectual está acima da média. 

Autistas têm características que não são comuns na população, mais ou menos como os gays, outra minoria que muita gente quer “curar” de algo que não é doença. São geralmente conservadores os que gostariam que tanto autistas quanto gays se adequassem ao que consideram “normal”. Os gays se interessam sexualmente por pessoas do mesmo sexo e são mais ou menos um em cada dez indivíduos, segundo a ONU. Os autistas interagem com o mundo ao seu redor de maneira distinta e são ainda mais raros, um em cada 36, portanto o preconceito contra eles é ainda maior. Autistas e gays encontram sólida resistência social em muitos países, muitas vezes são considerados loucos ou aberrantes. Por sorte, nossa heroína ambiental, Greta Thunberg, nasceu em Estocolmo, capital da Suécia, um dos países mais avançados do mundo, teve sua forma neuro divergente de pensar e agir respeitada e acolhida e em nenhum momento foi vista como louca. Jobs e Musk sim, são vistos como loucos nos Estados Unidos, mas numa cultura em que os empreendedores que se arriscam são vistos como loucos e isso é muito valorizado por lá. “Crazy” ou “insane”, para os americanos, muitas vezes é um elogio. Numa famosa frase, Jobs disse que “o povo não sabe o que quer até que tu mostre para eles”. Ao falar “povo”, Jobs queria dizer os neurotípicos. Ninguém queria um carro elétrico, até que o autista Musk colocou centenas de pilhas, dessas Duracell recarregáveis, no assoalho de um Lotus Elise e o tornou um incrível, estável e veloz carro elétrico. 

Claro que tu, caro leitor, talvez lembre de alguns autistas que passaram por tua vida, que necessitam de muito suporte e não parecem pessoas normais, fazem muitos movimentos estranhos e tem reações explosivas. Tu, inclusive, afirmas com certeza que Greta, Jobs e Musk não são autistas porque não parecem aqueles autistas que tens na cabeça. Mas o que tu ignoras e não tens nem ideia é o esforço que fazem para parecer normais. Eles são como Fiestas, Monzas e Fiats 147 dos anos noventa: usam máscaras pesadas para esconder suas reais características, inadequadas para as exigências sociais do momento histórico. Mesmo com todo esforço que fazem, que é exaustivo para eles, eles ainda parecem estranhos. Suas expressões faciais são de um ator ruim de teatro encenando uma peça mal ensaiada. Se perguntados sobre algo fora dos assuntos onde seu foco está, gaguejam e se atrapalham. Preferem não falar com ninguém, a não ser se absolutamente necessário. Só alguém muito distraído não percebe que são algo esquisitos, exatamente como um Fiat Spazio ou um Monza 91. O Ford Fiesta dos anos noventa parecia uma montagem da frente de uma carro com a lateral de outro e a traseira de um terceiro, mas isso não significa que não funcionava perfeitamente e até agradava muita gente. 

A palavra autista foi cunhada pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler em 1911, vem do grego “autós”, que quer dizer próprio. Ele imaginou que autismo seria uma forma de esquizofrenia infantil, que as crianças tinham suas mentes presas dentro de um mundo interno. Os autistas gostam de ficar a sós com eles mesmos, absortos em seus próprios pensamentos. Leo Kanner e Bruno Bettelheim, europeus que pesquisavam nos Estados Unidos, um psiquiatra e outro psicólogo, sugeriam que o autismo surgia em crianças com pais negligentes, ou seja, era culpa do pouco cuidado e amor dos pais, ou mais especificamente, da mãe, que naquela época era quem geralmente cuidava das crianças. Depois, em 1943, o pediatra austriaco Hans Asperger, colaborador do nazismo, percebeu que havia um grupo de crianças que tinham dificuldades na comunicação e interação social, como os autistas, mas não apresentavam problemas de linguagem ou cognição. Ao contrário, Asperger os chamou de “pequenos professores”, pois tinham um vocabulário muito maior que crianças de sua idade e podiam ministrar cursos sobre os assuntos que lhes chamavam atenção como as formigas do exemplo que inicia esse texto, os computadores de Jobs ou a preservação ambiental de Greta. Hoje em dia se acredita que há uma grande variedade de autistas, todo um espectro, que vai de pessoas que não conseguem interagir com ninguém, a pessoas que nos assombram com sua capacidade intelectual. Autismo não é uma deficiência intelectual, mas sim um transtorno de desenvolvimento do cérebro. A compreensão do que é autismo foi mudando com o passar do tempo, agora chamamos os autistas de pessoas com TEA, Transtorno do Espectro Autista. 

Ao longo da história, os autistas sempre sofreram com preconceitos e julgamentos apressados. Primeiro nem se tinha um nome para a condição, se chamava de louco, doente ou retardado as crianças com traços de autismo. Depois, criaram um nome para as características, mas as ligavam à esquizofrenia. Durante a segunda guerra mundial, nazistas matavam crianças autistas alegando que eram incapazes de aprender, era a eugenia que tentava livrar a humanidade desse tipo de existência. Finalmente, os pais foram culpados de desamor e negligência com os filhos já que não se desenvolviam da mesma forma que outras crianças. Até mesmo, mais recentemente, uma fraude famosa dizia que vacinas eram a causa do autismo em crianças. Autistas, historicamente, sempre foram um dos sacos de pancadas preferidos na sociedade, assim como mulheres e gays.  

Nem todos autistas têm a mesma sorte de Greta ou Elon de terem suas características respeitadas e desenvolvidas. Se investigarmos a vida de grandes personalidades, veremos que muitas eram autistas mas viveram em épocas ou países que ignoravam como agir diante de pessoas tão diferentes. Um que aprendi a amar quando morei na Holanda, onde é verdadeiro heroi nacional, foi Vincent Van Gogh. Vincent teve uma vida difícil, nunca conseguiu se integrar à sociedade normalmente, sofria de depressão, comorbidade comum em autistas, sempre se escondeu em vilarejos distantes da família, preferia morar sozinho. Seu irmão neurotípico sempre o sustentou, respeitava sua natureza e patrocinava materiais de pintura para maximizar suas potencialidades. Vincent nunca conseguiu se firmar em nenhum trabalho remunerado, no entanto, trabalhava arduamente e passava horas pintando paisagens, alguns retratos e naturezas mortas. Em vida só vendeu um quadro, não se esforçava para isso e suas obras eram subversivas as crenças do que era arte na época, mas suas obras valem milhões atualmente. Matemáticos e físicos encontram nas pinturas de Van Gogh, representados de forma extremamente bela, conceitos de difícil compreensão pela mente humana, como o fluxo turbulento da dinâmica de fluídos. Sua mente poderosa só foi reconhecida depois de sua morte. A vida de Van Gogh também é uma caricatura de autismo, mas essa é, ao contrário de Musk e Jobs, um exemplo de quão errado pode dar o esforço empreendedor e o brilhantismo de um autista: Vincent se suicidou. Há quem diga que ele não se suicidou, o tiro no seu abdômen teria sido disparado por um adolescente. Mas Vincent nunca o denunciou e também não procurou tratamento para o ferimento, somente entrou no seu quarto e esperou a morte chegar, lhe pareceu uma boa saída para o sofrimento e humilhação da existência.


A tendência a depressão e ao suicídio é comum nos autistas. O sentimento de inadequação social é muito grande. Nas escolas são um dos alvos preferidos de “bullying”. A adolescência é sofrida, pois não conseguem se aproximar dos outros como desejariam. O desemprego também os assombra porque não se sentem encaixados direito em nenhum lugar. Pulam de emprego em emprego ou de faculdade em faculdade, sempre em busca de algo que nem sabem o que é. Muitas pessoas falam que Steve Jobs não ter buscado tratamento formal para seu câncer foi uma forma de suicídio, uma forma que não trouxe vergonha a seus familiares, uma saída honrosa semelhante a de Van Gogh. O sorriso entusiasmado de Jobs nas apresentações de seus novos produtos era uma máscara que usava em situações sociais, semelhante a um Ford Fiesta 1995 mascarando suas arestas com cores berrantes, tentando desesperadamente parecer o que não é para atender as expectativas das pessoas no entorno. “Masking” é um mecanismo usado por autistas para se adequar ao esperado pela sociedade. 

Atualmente, há uma valorização da diversidade. Não se busca mais a pureza da raça como os nazistas que mataram autistas, gays, judeus, ciganos para tentar purificar a humanidade. Se permite a diversidade religiosa, a diversidade racial, a diversidade de gênero e agora também, finalmente, a neurodiversidade. A humanidade compreendeu que a  neurodiversidade é tão importante quanto a biodiversidade. No entanto, os neuro divergentes que não encontram uma área que podem se tornar úteis, sofrem. Sempre sofreram. Se olharmos a história, podemos perceber alguns que conseguiram encontrar um espaço onde se encaixavam e não se mataram como fez Van Gogh. Lembrando que o simples termo autismo tem pouco mais de cem anos, e a compreensão que é um grande espectro de neuro divergências tem algo como duas décadas. Pesquisando se percebe que no ano 2000 se acreditava que a prevalência de autismo na população era de um para cada 150 e que agora, com os novos critérios para diagnóstico, se fala em um para cada 36 pessoas. Uma famosa autista americana, Temple Grandin, professora universitária, fala que metade dos trabalhadores em programação do Vale do Silício na Califórnia são autistas, não só Steve Jobs ou Elon Musk, mas Bill Gates da Microsoft e Mark Zuckerberg do Facebook também, entre tantos outros. 

Se essas pessoas conhecidas de hoje em dia, que conseguiram não se matar e vencer na vida sendo autistas, não sairam do armário de sua condição por temerem a reação das pessoas, imagine o tamanho do medo das pessoas neurodivergentes há 300, 400 ou 500 anos. Imagine o pavor de uma mãe com uma criança cheia de movimentos e falas repetitivas, que nem olhar no olho consegue, durante a inquisição, onde se matava na fogueira quem se suspeitava que estivesse possuído pelo demônio. Lembre que nem diagnóstico havia, para todos os efeitos, a condição de autista não existia ainda. Mas claro que eles lá estavam, tentando se encaixar como sempre, ou pelo menos sobreviver, ainda que escondidos pelos pais dentro de casa. Se estudarmos a vida de alguns famosos históricos, se percebe claramente agora os que eram autistas pelos relatos de seus hábitos, assim como Sócrates. Claro que são somente suspeitas, pois o diagnóstico nunca foi feito, nem as especialidades médicas que diagnosticam o autismo existiam ainda, Neurologistas, psiquiatras ou mesmo psicólogos eram profissões ainda desconhecidas. 

Veja o exemplo de Nicolau Copérnico, que viveu na Polônia feudal e sob a Inquisição de 1473 a 1543. Na época se acreditava no modelo ptolomaico que o centro do universo era a terra, os planetas e as estrelas estavam presas a substância etérea girando em volta do mundo. Essa verdade cósmica era evidente a olho nu e quem discordasse disso era queimado vivo. O cidadão comum deveria acreditar nisso e calar-se. Mas Nicolau não era comum, era um cara cheio de talentos, médico e astrônomo, além de cônego da Igreja Católica (é bom que se tenha ideia da movimentação do inimigo pelo lado de dentro das trincheiras). Numa época em que nem calculadora de quatro funções existia, ou mesmo uma luneta, Nicolau olhava para o céu e fazia contas. Somente alguém com o hiperfoco de um autista, sem mulher ou filhos como ele, se prestaria a ficar fazendo contas a mão, tentando prever a trajetória dos planetas no céu. A palavra “planeta” vem do grego e significa errante. Se as estrelas eram previsíveis e paradas no céu, os planetas iam e vinham de forma bizarra. Você talvez estranhe: como alguém sem uma luneta ou telescópio via planetas no céu? Bom, é que naquele tempo ainda não tinha indústrias ou carros na rua fazendo fumaça para tapar de fuligem o céu. Também não haviam luzes elétricas à noite para ofuscar o brilho dos astros. Antigamente se lia o céu como hoje lemos um jornal impresso, com a mesma clareza, bastava aprender a ler. Cinco planetas eram visíveis logo que escurece: Vênus, Marte e Mercúrio, pela proximidade, além de Júpiter e Saturno, pelo tamanho. Nicolau fez um monte de contas e percebeu que com a Terra no centro as contas não fechavam. Refez as contas colocando o Sol no meio de tudo e viu que aí tudo se acertava. Somente um autista poderia subverter o pensamento hegemônico de forma tão sagaz. Escreveu um livro, totalmente subversivo e herético, propondo se abdicar do modelo ptolomaico geocêntrico e adotar o modelo Heliocêntrico. Escreveu mas não publicou, porque Copérnico não era bobo, ele sabia o que aquela proposta significava, era cônego da igreja católica, não queria queimar na fogueira. Ele tinha consciência de quão inadequada aquela atitude seria, estava habituado a controlar suas atitudes, como qualquer autista. Décadas depois, ao fim de sua vida, já no leito de morte, pediu para um amigo publicar o livro e escreveu um prefácio, ainda com todo cuidado para que as pessoas lessem sua obra: Olha, claro que não é assim, Deus é perfeito e todo mundo sabe que colocou a Terra no centro de sua criação para o ser humano habitar, com certeza estou errado, mas é curioso, com as contas que fiz, não é que se o Sol fosse o centro do universo as contas fechariam certinho?!!!

Mesmo com essa introdução humilde e socialmente aceita, Copérnico foi considerado herético. Por sorte, quando essa sentença saiu, ele já estava morto e não sofreu qualquer tortura. No entanto, sua obra já havia se espalhado e passou a ser o centro dos debates dos intelectuais da época, pessoas como Johannes Kepler. Kepler nasceu no que hoje é Alemanha logo depois da morte de Copérnico. Na infância contraiu varíola, o que lhe deixou sequelas na visão para o resto da vida. Adorava a matemática e impressionava os viajantes na pousada do avô com suas capacidades de calcular de cabeça qualquer coisa. Mantinha intensa correspondência com Tycho Brahe, o matemático do Sacro Império Romano-Germânico que refez todas as observações e cálculos de Copérnico e também passou a negar o modelo geocêntrico ptolomaico e adotar o heliocêntrico copernicano. Se interessava pelas observações e medições astronômicas de Tycho, já que ele mesmo não tinha uma visão boa o suficiente para olhar o céu. Logo, Kepler, indicado por Tycho, foi contratado pelo imperador para fazer as previsões astrológicas do império. Naquele tempo não havia divisão entre astronomia e astrologia. Kepler conseguiu fazer uma ligação inusitada entre os poliedros, a música, a astrologia e as órbitas celestes que somente uma pessoa neuro divergente poderia ser capaz e, como era um fervoroso crente em Deus, acreditou ter descoberto a linguagem geométrica e perfeita de Deus. Mas não ficou por aí, com sua obsessão (hiperfoco de autista) por calcular as órbitas, prever a posição dos astros no céu e com os dados fornecidos por Tycho, Kepler percebeu inconsistências nas órbitas circulares. Sua mãe foi acusada de ser bruxa pela inquisição e esse fato retardou muito a publicação de seu livro que descrevia as três leis do movimento celeste que formulou, sendo a mais subversiva e herética de todas a que afirmava que as órbitas dos planetas não eram circulares, como se acreditava na época, mas sim elípticas. Como Copérnico, ele foi cuidadoso, sabia dos poderes da igreja. Não queria ser acusado de herege como sua mãe, então escreveu no prefácio: Olha, claro que não é assim, Deus é perfeito e todo mundo sabe que as órbitas de todos os corpos celestes são um círculo perfeito, perfeito exatamente como Deus, o matemático dos matemáticos, o geômetra que nunca erra, com certeza estou errado, mas é curioso, com as contas que fiz, não é que se as órbitas fossem elípticas e o Sol fosse o centro do universo as contas fechariam certinho?!!!

                Modelo astronômico de Kepler com os poliedros regulares, que mais tarde seriam chamados de 

            Sólidos de Kepler, a língua perfeita falada por Deus:


O italiano Galileu Galilei foi outro que sofreu com sua neuro divergência. Seu pai era um músico pobre que teve sete filhos, mas três deles não sobreviveram à infância. O artista não queria que seu filho penasse na vida de instrumentista como ele. Então, a família se esforçou para pagar a melhor universidade para que Galileu se formasse em medicina. No entanto, após quatro anos, o jovem estudante largou o curso e passou a estudar matemática causando um grande desgosto ao pai que não quis mais financiar seus estudos o obrigando a trabalhar como professor. O pensamento de Galileu era sempre buscando questionar e muitas vezes discordar das ideias hegemônicas de sua época, causando grande aborrecimento não só a sua família, mas também à seus professores. Era inquieto e muito produtivo, criava coisas que ninguém havia cogitado: inventou o compasso, o que lhe rendeu dinheiro, também inventou um precursor do termômetro, estudou o movimento dos pêndulos, desenhava em perspectiva, entre tantas outras coisas. Seus interesses variavam muito, uma característica comum em autistas é a comorbidade de transtorno de déficit de atenção com hiperatividade. Quando ouviu falar de um excelente fabricante de lentes de aumento holandês, não teve dúvidas e viajou 1300 km caminhando até ele para aprender as técnicas de fabricação que utilizava. Mas, ao invés de utilizar as lentes para aumentar coisas muito pequenas como flores ou insetos, o habitual na época, Galileu as direcionou para olhar o céu e revolucionou a observação dos movimentos da abóbada celeste. Suas observações o levaram a escrever diversos livros falando de assuntos variados: Um só sobre as manchas solares, outro sobre estrelas que observou mas que eram totalmente desconhecidas então, outro que descrevia crateras na lua, contrariando as crenças de que seria uma esfera perfeita. Mas, o livro que mais incomodou a igreja católica e a inquisição foi o que concordava com o heliocentrismo de Copérnico que havia morrido apenas duas décadas antes de Galileu nascer. Galileu afirmava que o movimento das marés era a prova definitiva de que a Terra era um planetinha como outro qualquer, se mexia e balançava a água sobre ela. Ao contrário de Kepler e Copérnico, Galileu não fez nenhum prefácio no seu livro se desculpando por pensar daquela maneira herética e, para piorar, escreveu em italiano, para facilitar a leitura pelo povo. Ele era um subversivo, dizia que “a verdade é a experiência”, não o que está na Bíblia. Kepler e Galileu eram contemporâneos e trocavam intensa correspondência. O alemão alertou o italiano do risco que corria, mas Galileu era amigo pessoal do papa Urbano III e achou que sairia ileso. Mesmo sendo um católico crente em Deus, Galileu vivia com uma mulher e teve três filhos com ela sem nunca casar, evidente desafio a Igreja Católica. Achava aquilo tudo ridículo, não conseguia entender a inquisição ou a instituição do casamento. Galileu foi processado, mesmo já idoso, condenado e obrigado a se retratar. Mas sua mensagem já havia sido passada. Foi somente em 1992, 350 anos depois de sua morte, que o papa João Paulo II finalmente perdoou Galileu e a igreja admitiu que a Terra se mexe.

Isaac Newton é famoso não só por suas grandes descobertas na matemática e na física, mas também por seus hábitos de neuro divergente. Dizem que, se tivesse preparado uma palestra,  dava a aula ainda que ninguém estivesse assistindo. Esse é só um exemplo da magnitude da esquisitice e do foco que tinha. Na infância e adolescência era solitário e calado, não falava com ninguém e por isso sofria muito bullying. Nunca casou ou teve filhos, exatamente como Copérnico, não se sabe se por ser um chato, assexual ou gay. Causou grande desgosto a sua mãe quando se negou a ser agricultor e cuidar do sítio da família, por isso ela cortou o suporte financeiro que lhe dava, situação parecida com a vivida por Galileu. Newton era extremamente religioso e estava decidido a falar com Deus. Para tanto, dedicou sua vida. Na época se acreditava que, sendo Deus perfeito, a língua falada por Ele também seria perfeita. Newton estava convencido de que a única língua universal e perfeita era a matemática e se a usássemos bem poderíamos prever o futuro e contar o passado, a mesmíssima crença de Kepler. Com seu cérebro neuro divergente e com seu hiperfoco poderoso, o inglês criou toda uma nova forma de cálculo e suas três leis da física que descrevem os movimentos dos corpos na mecânica clássica. Se isso já não bastasse para lhe colocar no pódio dos cientistas mais importantes da história, Newton ainda fez estudos de ótica descrevendo a refração e dispersão da luz, calculou a velocidade do som e, entre tantas outras coisas, criou a lei da gravitação universal que lhe deixou famoso quando os jornais da época o debocharam com caricaturas de sua declaração que a maçã atrai a Terra com a mesma intensidade que a Terra atrai a maçã. Newton se recolheu com as brincadeiras e críticas que recebeu e não deixou que publicassem mais seus trabalhos. Se ele sentia-se constrangido com seus algozes, os neurotípicos sentiam-se diminuidos diante do tamanho da capacidade do cérebro daquele esquisito solitário. Newton provou, de forma elegante e irrefutável com seus cálculos inovadores, o heliocentrismo de Copérnico, as órbitas elípticas de Kepler e o movimento das marés de Galileu. Quando perguntaram como ele fazia para ver tão mais longe que todo mundo, Newton elogiou seus antecessores neuro divergentes: “Se eu vi mais, foi por estar nos ombros de gigantes”.


Outro gigante a quem Newton se referia que se apoiava era o francês René Descartes. Descartes foi contemporâneo de Galileu e Kepler, mas teve muito mais sorte que eles, era herdeiro de um ricaço e nunca precisou trabalhar, algo semelhante a Elon Musk hoje em dia. Pode viajar à vontade, em todos os sentidos, sem preocupações com seu sustento. Tinha uns hábitos incomuns, para dizer o mínimo. Ele ficava até meio dia na cama, alegando que tinha problemas de saúde. Isso era só uma desculpa socialmente aceita de autista, um modo de mascarar sua neuro divergência, tudo para ficar sozinho e quieto consigo mesmo sem que ninguém viesse lhe aborrecer o tirando do hiperfoco. Mas sempre tinha algum curioso que estranhava e quando lhe perguntava o que ficava fazendo deitado acordado, coisa que para qualquer pessoa neurotípica é insuportável, ele respondia simplesmente que estava pensando. Descartes via muitas falhas na filosofia escolástica, aquela que dominou a idade média, a idade das trevas, que obrigava todo mundo a acreditar no que está na Bíblia ou no que Aristóteles falou. Ele era um subversivo, questionava a autoridade dessas fontes de conhecimento. Queria mudar o modo como as pessoas pensavam e para isso entendeu que antes precisava “ler o livro do mundo” para compreendê-lo e saiu a viajar. Conheceu muitos países mas preferiu se mudar para Holanda porque era um país bem mais cosmopolita que sua católica e quadradona França. Por lá publicou suas grandes obras sem tanto medo de ser perseguido pela inquisição da Igreja. Ele argumentava que a filosofia ficava patinando em velhas questões porque não tinha um método de investigação. Acreditava que a verdade estava na razão, não nalgum livro antigo como a Bíblia ou um pensador falível como Aristóteles. Ele dizia que se pensássemos claramente, duvidando de tudo, não poderíamos ser enganados pelos sentidos ou mesmo um “gênio maligno”, um espírito que entrasse em nosso cérebro e nos levasse ao erro. Descartes fundou a ciência moderna, fez o mundo trocar o teocentrismo, onde tudo vem de Deus, para o antropocentrismo, onde a razão humana está no centro de tudo. Sem ter essa intenção, ele foi o precursor do iluminismo, substituindo as trevas da crença cega, pela luz da razão. Lançou as bases racionais sólidas para que a inquisição acabasse, o ateísmo brotasse na humanidade sem culpa e, com sua alegoria do gênio maligno, até suspeitas sobre o livre arbítrio ser só uma ilusão surgissem. Descartes criou uma revolução tão profunda na humanidade que, como estava tudo mudando naquele tempo, muitos autistas tiveram vez, e finalmente, foram ouvidos.

Apesar de Descartes ter conseguido mudar o foco da humanidade, de Deus para o Ser Humano, a influência da ideia de um deus seguiu fazendo vítimas ao longo da história. Uma delas, outro famoso autista, foi o naturalista inglês Charles Darwin, que viveu no século XIX, duzentos anos depois de Descartes. Darwin, assim como Descartes, não tinha preocupações com dinheiro, era filho de um ricaço. Que pena que a grana não traz felicidade, o jovem estudante se interessava por muitas coisas diferentes na mais cara universidade do Reino Unido, mas não esquentava cadeira em nenhuma faculdade. Assim como Steve Jobs e Galileu Galilei, fazia a graduação meio de lado e só dava desgosto ao seu pai que insistia que estudasse medicina, mas o velho se constrangia porque percebia que o guri estava meio deslocado no curso, redemoinhando sem ir para lado nenhum. Darwin não se encaixava em nenhum meio, se sentia desconfortável e inadequado existindo. O incômodo Charles se empolgou com a possibilidade de cair fora da opressão quando foi convidado por um professor que gostava muito para fazer parte de uma viagem de circunavegação exploradora num navio da realeza. O pai de Darwin foi totalmente contra a tal da viagem, achava muito perigoso, fez o que pode para impedi-lo de ir, mas diante da resolução de seu filho esquisito, tomou uma decisão que no fim mudou a história da humanidade: ajudou a financiar a expedição ao redor do planeta, seria bom para o rapaz dar um bom rolê e arejar a cabeça. Darwin gostou da ideia, tinha uma minúscula cabine no navio e passava horas sozinho, quieto, desenhando e escrevendo sobre as coisas que via nos lugares que o barco atracava. Esteve até aqui pelo Brasil e se inebriou com o carnaval e com a flora e fauna da mata atlântica. A viagem durou cinco anos, seu pai deve ter gastado uma fortuna para se livrar por um tempo do mal estar que o rebento lhe causava. Ao voltar, Darwin escreveu um livro sobre o que tinha percebido na viagem. Escreveu mas não publicou, assim como Copérnico. Por vinte anos o manuscrito ficou numa gaveta de sua escrivaninha. Ele dizia que se publicasse aquelas ideias subversivas mataria Deus. O que ele pensava era totalmente herético e inadequado para o pensamento da época, que apesar dos esforços dos gigantes que vieram antes dele, o ranço cristão ainda impedia as pessoas de pensar por elas mesmas. Darwin concluiu, depois de circunavegar o planeta, que os animais evoluem conforme os desafios do meio ambiente em que estão, não são uma obra divina que já veio pronta, além disso, o ser humano é igual a qualquer bicho e também evolui, Deus não criou o ser humano a sua imagem e semelhança coisa nenhuma, na verdade células foram se agrupando aleatoriamente e os organismos mais adaptados ao meio se reproduziam mais, foi tudo obra do acaso e das mudanças do ambiente. Darwin, apesar de ser crente em Deus, percebeu que as contas não fechavam com Ele na equação. Quando finalmente decidiu publicar seu livro, que causou um violento terremoto na intelectualidade de então, Charles Darwin, assim como seu conterrâneo Isaac Newton, se recolheu diante das caricaturas que faziam dele com corpo de macaco nos jornais que criticavam suas opiniões. 

Perceba, caro leitor, que curioso. Mesmo subversivos gigantes do porte de Copérnico, Kepler, Galileu, Descartes, Newton ou Darwin, nenhum deles ousou dar o salto para o ateísmo, eram crentes em Deus, apesar de todos oferecerem provas irrefutáveis contra crença tão primitiva. Questionavam toda Sua obra, mas não questionavam Sua existência e todos ambicionavam falar diretamente com Ele para compreendê-lo e interrogá-lo. Todos tinham essa angústia de viver com tantas dúvidas não respondidas e queriam esclarecimentos das trevas da ignorância. Quem chegou mais perto de sair do armário da descrença em Deus foi Darwin e Sócrates. Sócrates não acreditava nos deuses gregos e também por isso foi condenado à morte, mas acreditava num “bem maior”, uma coisa que muitos talvez interpretem por Deus. Darwin percebeu que a criação era do acaso e não de um deus, mas relutou muito em admitir. Mesmo Descartes que pregava que se duvidasse de tudo, inclusive da própria existência, fez todo um esforço lógico, matemático e racional para provar a existência de Deus e, para o entendimento da época, provou. Felizmente, as coisas mudaram desde a publicação de A Origem Das Espécies de Darwin em 1848. O livro fez um grande estrago na crença em Deus e, depois daquela publicação, o mundo caminhou numa direção mais secular. Tenho certeza que a preocupação sobre a existência Dele nunca passou na cabeça de Steve Jobs, Greta Thumberg ou Elon Musk. Nas equações propostas por esses três neuro divergentes contemporâneos não tem a variável Deus. Simplesmente deixou de entrar nas contas. Agora se chama ciência o que afeta a todos e é toda uma outra religião, também cheia de dogmas e crenças, mas que não tem mais nada a ver com aquela antiga.

Em 2020, com as mudanças impostas pelo confinamento devido a pandemia de Covid-19, me vi obrigado a conviver em tempo integral com uma nova rotina que me deixou extremamente desconfortável. Meus vizinhos, que recém tinham se mudado, tinham o hábito de ouvir música alta, coisa que para mim causa efeito semelhante ao mergulhar numa piscina de ácido fervente, meu corpo inteiro se contorce em sofrimento agudo. Além disso, minha namorada ficou desempregada e precisou de abrigo. Professora de Libras contratada da prefeitura, não teve seu contrato renovado, já que as aulas presenciais foram suspensas. Ela e seus dois filhos menores foram morar comigo. Caro leitor, deixe contextualizar o que para mim foi esse momento. Construí minha casa num lugar ermo, a Barra do Ouro, no município de Maquiné, por ser um lugar silencioso, no meio da floresta de encosta da serra do mar. A casa foi arquitetada por mim mesmo, para meus desejos e conveniências de solteirão convicto e feliz na minha solidão. Um quarto com minha cama e ar-condicionado para refrescar no verão, um gabinete para guardar os livros e escrever, na sala coloquei uma confortável poltrona para ler ao lado da salamandra que aquece a casa no inverno, na garagem cabe a moto onde ando só e minhas ferramentas. A casa foi pensada para uma pessoa, alguém que não planejava casar e ter filhos, alguém que gosta de silêncio e se sente bem ouvindo sua própria consciência. Você pode imaginar o que foi para mim esse momento?

Um manancial de amor e ódio brotou em mim de uma hora para outra. Por um lado, entrei numa batalha judicial com o vizinho que resultou nele tentando atear fogo na minha casinha de madeira comigo dentro. Por outro lado, conheci uma pessoa estranha que me surpreendeu.  Não minha companheira, Sabrina, e seus filhos. Ela eu já conhecia, amava e admirava por sua profunda sabedoria e inteligência. Quem eu desconhecia e passei a compreender muito melhor foi eu mesmo. Em pouco tempo lá em casa, convivendo com minhas manias no cotidiano, Sabrina, a professora de alunos especiais, me diagnosticou com precisão: tu és autista. No começo me pareceu uma avaliação negativa apressada, nem dei bola, achei que era uma espécie de provocação para seu namorido maniático de casinha apertada. No entanto, aos poucos, ela foi me mostrando meus traços autistas no cotidiano e provando com clareza seu julgamento a partir de amostra tão abundante de observações. Ficou claro para ela que o arredondado Ford Fiesta verde limão que eu fingia ser mascarava quem eu realmente era.

O gabinete onde escrevia foi transformado em quarto de adolescente, a sala onde lia agora era living room de um monte de gente conversando, meu quarto virou sala de cinema, a área da frente tinha aquela vista para a desagradável vizinhança barulhenta. Naquele momento fiquei mais incomodado do que gato em dia de faxina, não tinha sossego em nenhum cômodo da casa e a pandemia me obrigava a ali ficar. Nunca mais li nem escrevi, pois tenho dificuldade de retomar reflexões quando interrompido. As madrugadas sempre foram meu refúgio seguro, mas agora, nem assim. Por incrível que pareça, a situação foi se acomodando para o bem. O vizinho ruidoso foi pressionado pela justiça e a polícia a se mudar e eu, por amor, fui finalmente desenvolvendo a capacidade cerebral de conviver com as necessidades de outras pessoas. Tenho consciência de que a Sabrina e seus filhos fizeram muito mais concessões do que eu para morar lá em casa, pois até o barulho de uma rede balançando me desorganiza o cérebro. 

O diagnóstico da Sabrina me fez passar por todos os estágios do paciente terminal no ano que moramos juntos apertados naquela casinha da floresta: Negação, raiva, barganha, depressão e finalmente, aceitação. Passei a estudar obsessivamente o transtorno do espectro autista e me reconhecer. Porque ninguém nunca me disse essas coisas? 55 anos passaram sem diagnóstico, uma vida de angústia e incompreensível inadequação. Numa das pesquisas que fiz, descobri que grandes pensadores que estudei desde o ensino médio também tinham traços autistas. Lembrei dos professores contando de seus hábitos estranhos e nós achando graça na sala de aula. Me senti confortado sabendo que o diagnóstico de autismo da minha companheira Sabrina não era uma sentença de incapacidade, ela mesma parecia estar confortável com isso, entendia minhas manias, me dava um grande suporte e instruia seus filhos a lidar comigo. Fichas enormes que estavam há décadas travadas caíram com estardalhaço. Memórias de infância, desde a creche, voltaram com força total. Passei a me ver não com uma deficiência, mas com um superpoder! Não sou esquisito, burro, lerdo, exêntrico, estranho, mal educado, faisca atrasada, porco ou bizarro, como muitos sempre me fizeram crer, mas um neuro divergente, alguém que pensa diferente das pessoas comuns, uma pessoa que percebe o mundo com outros ponto de vista, um visionário. Não tenho culpa de ser assim, só sou. Não é ruim o que penso, assim como não é ruim o que todos esses gigantes neuro divergentes que comentamos até aqui pensaram, é só diferente do que todo mundo pensa. 

É interessante esse sentimento de culpa que passa o neuro divergente. A família e a sociedade nos constrangem a tentar ser quem não somos. Os gays relatam coisa semelhante, assim como os disléxicos ou epiléticos. Todos esses, na Idade Média, eram considerados possuídos pelo demônio e o tratamento era religioso: exorcismo ou fogueira. A ignorância nos fazia crer que todos teriam o tal do livre arbítrio, graça divina ao ser humano, então era só uma questão de intenção. O gay não deveria ter inclinações sexuais para o mesmo sexo, era só querer sair do mau caminho. O disléxico era preguiçoso, bastava se dispor a estudar mais. O que faltava ao epilético era oração, tinha que procurar Deus e se afastar do Capeta. A culpa vinha de achar que era só falta de disposição do indivíduo, seria possível usar o livre arbítrio para ser diferente, a pessoa só não seria se não quisesse. Assim como Deus foi ficando cada vez menor com as descobertas científicas do iluminismo, o livre arbítrio também. Com cada novo achado dos estudiosos, mais humano, compreensivo e tolerante foi ficando o ser humano e a justiça foi eliminando crimes ou acrescentando atenuantes. A tempestade não foi causada pela bruxa da vila, aquela mulher que vivia sozinha e enfeitiçava os homens casados. Foi só uma diferença de pressão na atmosfera que causou o vendaval, não precisa nem adianta queimar a véia. O autista, nessa fuzarca, sempre foi visto como meio louco, retardado, seu livre arbítrio estava estragado, precisava ser corrigido. Até hoje tem quem queira consertar o livre arbítrio do gay ou do autista. Até hoje tem gente que acha o disléxico preguiçoso ou burro. Até hoje tem quem creia que o epilético não tem Deus no coração e por isso o demônio o invade de vez em quando. A ignorância é violenta. Os neuro divergentes tem que estar sempre mascarando suas características para não cair em desgraça social. Os Ford Fiesta verde limão não passam despercebidos, mas são aceitos por todos como diferentões e há até aqueles que gostam, como minha companheira Sabrina.

Toda vez que visito minha irmã mais velha percebo defeitos de sua casa e comento, ela se aborrece comigo. Pequenas diferenças me chamam muito a atenção. Aqui tem uma infiltração?! Ela me acha um chato mal educado. Mesma opinião tem alguns colegas de trabalho, quando percebo alguma singularidade em seus corpos, tenho que falar alto e sem pensar, é automático, por mais que me controle, sempre acaba escapando. Tu tens uma orelha maior que a outra?! Meu cérebro percebe diferenças e se incomoda, enquanto neurotípicos conseguem tranquilamente manter a convenção social de não tecer comentários desagradáveis sobre a aparência dos outros, o cheiro de fossa na entrada da casa ou a tinta perto do rodapé que está descascando. Outra coisa que me perturba de tal forma que não consigo fazer mais nada, não suporto, é o som alto. Tem gente que gosta e até estuda ouvindo música no volume máximo. Pessoas neuro divergentes têm algumas características que não são nada comuns na população. Até os quatro anos eu não falava, como Greta Thumberg. Minha mãe me levou ao pediatra para saber o que eu era, ela suspeitava de surdo ou retardado. O médico disse que eu não tinha nada, talvez só era mais marcha lenta que minhas irmãs mais velhas. Claro, no começo dos anos setenta ninguém tinha a menor ideia do que fosse Espectro Autista, nem profissionais da saúde mental. Aos seis, minhas irmãs debochavam de mim por falar tudo errado, inclusive a caçula, um ano mais nova que eu. Na primeira série, em setembro, minha mãe foi chamada na escola para explicar que eu ia ter que repetir o ano, eu ainda não escrevia nem lia. Ela se envolveu no meu aprendizado e deu o suporte que precisava. Bastou. Em dois meses aprendi a ler e escrever e passei sem a necessidade de uma segunda época. Como Steve Jobs, eu também era um péssimo aluno na escola e não me interessava por esportes por completa incapacidade motora. Assim como ele, implorei aos meus pais para me trocar de escola. Sofri a vida escolar inteira com toda sorte de bullying por ser pequeno, ruim de bola e considerado lerdo e burro. Na refeição servida aos sádicos, eu era o prato principal. Como Jobs, Darwin e Descartes, ao chegar à idade adulta, deprimido e me sentindo inadequado em qualquer lugar, fui viajar por dois anos para ler o livro do mundo e tentar me encontrar. Como Sócrates, eu usava sempre as mesmas roupas surradas, um blusão furado nos cotovelos, os tênis tão velhos e rasgados que parecia um mendigo, com certeza era fedorento também. Nos diversos hiper focos que mantive ao longo da vida, sempre me senti como Copérnico: devo estar cometendo algum erro porque o que penso não tem nada a ver com o que a maioria pensa. Como Kepler, sempre faço ligações inusitadas de assuntos diferentes deixando desconfortáveis as pessoas em volta, pois não consigo conversar amenidades do futebol, do tempo ou do trânsito sem misturar a influência das bactérias e fungos do intestino no cérebro ou a inexistência do livre arbítrio. Como Copérnico e Kepler, estou sempre me policiando para não soar herético falando mal de alguma coisa sagrada para o senso comum. Para desgosto de meus pais, troquei de curso universitário no meio, da prestigiada Engenharia para a desvalorizada Educação Física, trajetória semelhante à de Galileu. Como ele, Jobs e Darwin, vaguei pelas universidades sem me achar até sair pelo mundo contra a vontade de meu pai. Como Van Gogh, me afastei da família e procurei as paisagens bucólicas do interior para procurar alguma paz interior. Ainda como Galileu, tenho interesses variados mas ainda não criei nada como o compasso para me render algum dinheiro. Como ele e Descartes, passei um tempo na Holanda para conhecer um lugar mais compreensivo com as diferenças e me senti muito bem, Van Gogh só se afastou de lá porque era onde estava o ranço familiar. Participei de um sindicato e gostava de colocar minhas opiniões nas assembleias. Fiz sucesso como orador, a maioria dos trabalhadores esperava minha fala para decidir o que fazer, me tornei uma liderança sindical, era sempre ovacionado pela pertinência de minhas falas. Partidos de todas as tendências políticas vinham me convidar para participar de reuniões. Porém, o que ninguém sabia, é que ensaiava muito minha palestra, assim como Newton, e o que eu iria dizer anotava em tópicos num papelzinho para ficar coerente e servir de lembrete. Porém, no debate “tête a tête”, eu era um desastre e como Newton e Darwin, me recolho quando sou questionado ou debochado pelo que penso. Com 44 anos, criei um blog para guardar textos subversivos, que escrevo mas não publico, como Copérnico e Darwin, muitas vezes com medo da reação dos neurotípicos me acusando de herético. Meu blog se chama “Viver é subverter”, talvez caro leitor, tu estejas nele agora, lendo essas confissões. Aliás, será que Santo Agostinho não era neuro divergente também ao escrever suas Confissões?  

O meu superpoder, no fim das contas, é o mesmo de todos os autistas, o poder de resistir às tentativas de invalidação constantes que todos neuro divergentes sofrem o tempo inteiro. Autistas são aqueles super herois que precisam vestir seus disfarces, suas capas protetoras, suas máscaras, para interagir com um mundo hostil e impiedoso, e se armar com toda sorte de mecanismos de defesa com antecedência. Um bat-papelzinho organizador com lembretes pode te fazer parecer neurotípico, ajuda a manter o emprego ou falar bonito na assembleia do sindicato. Karl Marx, provavelmente outro neuro divergente subversivo e descrente no livre arbítrio nos ensinou: Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” Herdamos uma genética que nos dá características físicas e intelectuais que não escolhemos e não temos culpa, herdamos uma memética que nos impõe língua, cultura e interações sociais aceitáveis ou não que não escolhemos e não temos culpa, e é carregando o fardo dessas heranças que precisamos nos virar, mas sempre podemos escrever nossa história no livro do mundo… Bom, pensando bem, nem sempre se consegue escrever nossa própria história. Quantos autistas ou gays sucumbiram à depressão e ao sentimento de inadequação e preferiram abreviar suas existências? Mas Marx, sem perceber, já ajudava a comunidade autista. Sua conhecida frase “De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo a sua necessidade” é uma aula aos neurotípicos para lidar com autistas e suas diferentes necessidades de suporte. 

A Holanda foi um lugar mágico que me fez muito bem e me transformou. Longe da opressão da família e dos demais brasileiros, meu cérebro se arejou. Se o autismo é um transtorno do desenvolvimento do cérebro, estou certo de que ali consegui desenvolver muita coisa que faltava. Foi um florescimento, passei a conversar com as pessoas na rua sem medo de errar, exatamente como Sócrates, pois era em outras línguas e todo mundo compreende que estrangeiros falem errado e tenham dúvidas estranhas. O ato de praticar a fala treinou minha língua e passei a gostar de falar, virei um pequeno professor, como Asperger dizia que alguns autistas eram. Passei a escrever muitas cartas ao Brasil, encontrei na escrita uma forma eficiente de me fazer compreender. As respostas vinham lentamente e conseguia manter um diálogo inteligente pelo correio. Meus interlocutores muitas vezes manifestaram surpresa que eu sabia escrever, pois não percebiam em mim, quando pessoalmente, nenhuma ideia relevante, pois não consigo vocalizar rapidamente o que penso e sinto. Sempre andei muito de bicicleta para ficar a sós com meus pensamentos, meditando sem interferências e em Amsterdam as bicicletas são o meio de transporte dos adultos, me senti acolhido. As pessoas, cidades, pontes, casas, carros, motos e bicicletas eram completamente diferentes das do Brasil, cheias de detalhes que me enchiam de prazer em contemplar, assim como Darwin na mata atlântica. Meu cérebro ficava o tempo todo em êxtase eufórico com tanta novidade. Depois da Holanda, estive em outros países europeus, mas nem de perto a visita teve o mesmo impacto. Paris, por exemplo, me pareceu tão chinfrim depois de Amsterdam. Vinte anos depois dessa estadia na Holanda conheci Estrasburgo, na França, outro lugar que me enfeitiçou. Mal comparando, talvez tenha sido minha Galápagos, o lugar onde muitas ideias se catalisaram.  

Mas porque as pessoas, como eu ou a atriz Letícia Sabatella, estão se dando conta só agora de seu autismo, com mais de 50 anos? O que aconteceu é que se passou a compreender o transtorno muito mais e se identificar as pessoas. Em 1973, quando minha mãe procurou o pediatra para saber se eu era surdo ou retardado, nem o médico tinha ideia da magnitude do espectro. O filme “Meu filho, Meu mundo” (Son Rise), de 1979, apresentou ao mundo um autista nível 3 de suporte e o drama que era ter uma criança com o transtorno. Na época se acreditava em amarrar os braços das crianças e até na aplicação de eletrochoques para que parassem de se mover daquele modo estranho. Assistimos o filme em família, como era comum naquela época, jamais suspeitariam que eu fosse um autista, pois eu não me balançava daquele jeito. O filme “Rain man” de 1988 ou “Forrest Gump” de 1994, reforçaram o estereótipo. Foi preciso o mundo dar muitas voltas, sofrer com as trevas da inquisição, se encher de esperança com o iluminismo, passar por revoluções teocráticas pós Descartes, crises de escassez de energia, Mavericks se transformaram em Fiestas, crises econômicas, Imacs roxos viraram Ipods discretos, idas e vindas de toda a sorte para que a humanidade percebesse todo o arco íris do que pode ser uma pessoa com TEA. 

A minha história pessoal se confunde com a do mundo onde estou inserido. Fui descobrindo minha especificidade junto com as descobertas sobre o transtorno, por isso meu diagnóstico foi tão tardio. Fiz muitas contas e, como os gigantes que me antecederam, cheguei a conclusões subversivas e muitas vezes heréticas aos dogmas modernos. Vamos lá. Para esse neuro divergente que vos escreve, o Deus aquele que as pessoas crêem é uma besteira total. Talvez, como Albert Einstein, outro famoso autista, se possa conversar sobre o deus de Espinosa. Espinosa, ele mesmo, outro neuro divergente subversivo. A família é uma instituição opressora, que foi criada artificialmente para perpetuar o establishment do mercado. A escola atual é uma fábrica de operários homogeneizados que não ensina a pensar, mas sim a calar e obedecer. A meritocracia é uma falácia criada para perpetuar os dominantes dominando. Os esportes são um veneno social semelhante a inquisição, põe uns contra os outros numa guerra simulada constante e sem fim e mantém todo mundo de cabeça baixa diante do deus mercado e sua idolatria à livre competição. As religiões são uma forma de interação social semelhante aos esportes, todo mundo torce para seu time e quer que as outras todas sejam eliminadas do campeonato da virtude. Só atrapalham a construção da paz e do amor mundial. O livre arbítrio é uma ilusão como um dia já foi a terra ser o centro do universo ou mesmo plana. Precisamos recriar o sistema jurídico sem esse componente, o mundo vai ficar mais humano e compreensivo. A democracia é um sistema péssimo de decisão, dá voz a qualquer boçal, temos que repensar urgentemente para reformar de forma profunda ou criar logo coisa melhor. Todos esses temas debati exaustivamente ao longo dos anos no blog Viver é Subverter. Agora penso em fazer uma seleção de textos para publicar um livro e tentar deixar minha contribuição na elaboração de um mundo melhor. Atualmente, meu hiperfoco está na busca da língua do universo, acredito que não é a perfeita e exata matemática, mas sim a caótica e imprecisa língua das bactérias. Eu sou, na verdade, nós: mais da metade das células de meu corpo não são humanas e meu pensamento é determinado por bactérias e fungos que vivem nas minhas entranhas e elas produzem neurotransmissores que modificam meu comportamento. 

E aqui volto ao início desse texto. Estou procurando descobrir quem foi o entomologista neuro divergente que percebeu aquela formiga que subia e descia o capim, acho que ele vai fazer o mundo dar uma guinada incrível. Obrigado, gigante! Obrigado por não se matar se achando inadequado e esquisito ajoelhado na grama molhada! Obrigado por viver e subverter!

P.S.: Um último autista histórico como gancho para o próximo texto herético. Jesus era obviamente neuro divergente. Já com doze anos ficava dando aulinha para os rabinos na sinagoga. Sumiu do mapa por vinte anos, decerto dando um rolê pelo mundo para se encontrar e ler o livro do mundo. Ficou 40 dias isolado meditando no deserto. Depois veio com aquele papo subversivo de amar ao próximo como a si mesmo, perdoar setenta vezes sete, oferecer a outra face se levar uma bofetada, dividir o pão, todo mundo é irmão filho do mesmo pai. Podia ter fugido da crucificação, mas como Sócrates, Jobs e Van Gogh, se deixou matar… Figurinha fácil do álbum dos autistas históricos. Óbvio autistão!


terça-feira, 14 de maio de 2024

         As enchentes no Rio Grande do Sul, os ribeirinhos e sua fé nos ensinamentos 

das aulas da Educação Física escolar 



A cena é comum. Você já deve ter visto na televisão porque é onipresente (como um deus): em algum esporte, qualquer um, um jogador dá um encontrão no outro e o derruba no chão, o juiz paralisa a partida e marca falta a favor do agredido, o agressor então retorna e ajuda o adversário que ele acabou de derrubar a se levantar. Agora é que vem a parte que me chama a atenção: o narrador da partida sempre elogia o ato do transgressor da regra que além de acatar a decisão do árbitro, sua obrigação, teria tido atitude nobre, pois ajuda o adversário a se recompor e voltar a participar da disputa o colocando em pé e isso não é obrigatório aos participantes do jogo. 

O espectador desatento nem percebe, mas aqui houve uma doutrinação religiosa abjeta. O narrador, obviamente, induz os ouvintes a acreditar, com pura fé e, portanto, sem questionamentos, que aquilo apresentado é normal, natural e lindo. Se narra como fato da vida que agir como um esportista não só é correto, como altruísta, justo e moralmente sofisticado. Se exibe, geralmente em horário nobre, na televisão aberta, acessível a todos como opção de entretenimento, num programa cheio de comentários elogiosos, os esportes: atividade que põe UNS CONTRA OS OUTROS como regra. É importante que os objetivos de uns sejam DIAMETRALMENTE OPOSTOS aos dos outros. A atividade apresentada é COMPETITIVA, uns sempre buscam DERROTAR os outros. Se intui que um cidadão de bem deve jogar dentro das regras (dentro das quatro linhas, metáfora esportiva usada largamente por um conhecido ex-presidente brasileiro) e buscar vencer na vida. 

Não é de se admirar que nossa sociedade se esforce para ensinar a todas as crianças da nação exatamente os valores ensinados pelos esportes: competições onde uns jogam contra os outros com o objetivo de derrotar os adversários. No Brasil as escolas são obrigatórias até se completar 18 anos e a maior sala de aula de qualquer uma delas é sempre o ginásio de esportes, o material didático mais caro é sempre o da Educação Física e as leis obrigam os professores da disciplina a ensinar esportes. Os professores testemunham diariamente o esforço das crianças em demonstrar como eles também podem chegar lá, naquele ideal mostrado na televisão. Vestem as caras camisetas de time de seus super herois, correm até ficar ofegantes e suados, entram em divididas como se ali estivesse sendo decidido seu sucesso ou fracasso na vida. Amaldiçoam e partem para briga com aqueles que por ventura vierem a atrapalhar que atinjam seus objetivos. Se apressam em levantar o adversário caído, exatamente como aprenderam na televisão, ainda que possuídos pelo ódio, para que o jogo continue. O importante é que o jogo continue.

Esse jogo onde pouquíssimos sobem no pódio e a maioria só assiste frustrada, o jogo da competição capitalista onde há um patrão para cada mil trabalhadores e todo mundo deve acreditar com fé nesse deus meritocrático que a vida justa é assim. Esse jogo social ensinado nas escolas através dos esportes só costuma parar se força maior obrigar. Na escola, a força maior é o professor que aparta a briga, no estádio o juiz da partida, na vida real, uma enchente devastadora. Aí é que todo mundo entende que é para dar a mão para aquele que caiu. Aprendemos na escola que só aí é que se deve parar e por o cara de pé. Mas é só para o jogo continuar. O importante é que o jogo continue, continue como sempre foi, sem mudança nenhuma na regra, só até o caído se recompor, para logo ser derrubado de novo.  

Os flagelados da enchente são ribeirinhos, aqueles que vivem nas margens alagadiças dos rios, os pobres. Quem sofre nas enchentes são marginais, aqueles que moram nas beiras da sociedade. Eles moram ali não é à toa, é porque foi onde conseguiram se acomodar, as planícies de inundação são mais baratas para construir uma toca, afastadas das zonas nobres mais protegidas. Os bairros alagados da capital são aqueles negligenciados pelo poder público, onde operários humilhados pela vida lambem suas feridas: Navegantes, Humaitá, Farrapos, São Geraldo. Os bairros ribeirinhos, dos marginais, dos excluídos da sociedade, daqueles que nunca vão ao cinema ou ao teatro porque moram muito longe e não tem dinheiro: Lami, Belém Novo. Foram inundadas as cidades dormitório onde os trabalhadores das fábricas vão deitar, resignados e cansados ao anoitecer, escondidos, envergonhados: Eldorado do Sul, Canoas, Guaíba. 

É forçoso observar que quando há enchente, muita gente se comove, leva mantimentos para os abrigos mesmo sem ter obrigação de fazê-lo, se oferece como voluntário para ajudar no resgate das vítimas. Até mesmo William Bonner apresentou o Jornal Nacional dentro de lanchas dos bombeiros ou com os pés dentro d’água nas áreas alagadas, emocionado com as situações testemunhadas. Isso é maravilhoso, realmente, mas como nos ensinou o narrador do jogo, é só até o caído se recompor, o importante é o jogo continuar sem mudanças nas regras. Passada a tragédia, duvido que verei pessoas comovidas, ajudando a construir casas em locais melhores para os pobres ou levando mantimentos aos excluídos. Duvido que verei o Bonner apresentando o jornal numa laje da favela, horrorizado com a miséria do país que vive. Os ribeirinhos vão continuar à margem social assim que a água baixar, vão continuar a trabalhar calados, vão continuar a viver nas planícies de inundação e se resignar a ser vulneráveis, porque o jogo social que criamos, essa seita fundamentalista, é assim e assim é celebrado como justa. A fé no deus mercado é considerada normal, natural, justa, altruísta e linda inclusive pelos próprios ribeirinhos excluídos. Os dominantes da sociedade criaram uma religião com doutrina tão bem tecida que, por mais incrível que pareça, os dominados aceitam e se submetem a ela envolvidos com amor, fé e fidelidade às regras desse jogo perverso que ensinamos nas aulas aparentemente alienadas e despretensiosas de Educação Física escolar, mas que na verdade são extremamente engajadas numa ideologia política e econômica conservadora.

Eu, como professor de Educação Física nas escolas municipais do ensino fundamental, acabo sendo, ainda que contra a vontade, um agente reprodutor do sistema, verdadeiro sacerdote dessa seita macabra que leva morte e miséria à população. No entanto, me considero um herege dessa doutrina e pretendo transformá-la radicalmente. Jamais ensinaria esportes para meus alunos se não fosse obrigatório por lei. Pretendo subverter as regras e ensinar nas minhas aulas exatamente o oposto do que a doutrina atual prega. Sou sectário daquele judeu palestino que mandava “amar o próximo e dividir o pão” e daquele outro judeu alemão que dizia que a sociedade deve ser “de cada um, segundo suas capacidades, para cada um, segundo suas necessidades”. Quero que meus alunos se UNAM UNS COM OS OUTROS em COOPERAÇÃO, que colaborem entre si para atingir OBJETIVOS EM COMUM, que seus esforços sejam para que todos construam uma SOCIEDADE EQUÂNIME, onde não haja vencedores ou perdedores. Minha ação pedagógica será para ensinar que é possível que haja uma sociedade onde ninguém precise viver em brejos que inundam nas margens dos rios e, principalmente, que meus alunos não deem a mão para o próximo somente quando ele estiver caído.  


P.S.: Não quero jogar dentro das mesmas quatro linhas daquele ex-presidente que idolatrava Elon Musk, que vestia a camiseta de times de futebol, dizia o nome de Deus em vão e se fingia de humilde, digníssimo representante da atual doutrina religiosa, capitalista, excludente, venenosa, mortal, genocida e esportiva.