Escola
sem partido
Meus
pais me colocaram numa escola no centro. Era particular, cara, chique, um
status e tanto! Foi um esforço grande para a família, queriam o melhor para
mim. Era para eu gostar, mas não foi o que aconteceu, odiei. Para se obter o
respeito do grupo no mundo masculino de uma escola particular, alguém deve ser grande
e forte, rico ou ser craque no futebol. Eu tinha exatamente as qualidades
opostas a essas. Ninguém me conhecia, eu era pequeno e ruim de bola, além de meio
pobre. Receita perfeita para sofrer bullying. Foi o que aconteceu, agressões e
humilhações diárias, apelidos jocosos, passei três anos sofrendo naquela escola. Conheci as
pessoas mais cruéis, perversas, canalhas, vis, obscenas, degeneradas e
repugnantes da minha vida lá. Hoje em dia, alguns daqueles colegas são juízes de
direito, médicos, empresários, engenheiros e até políticos conhecidos. São a elite
de Porto Alegre. Durante todo tempo que estudei lá, pedia, às vezes até
implorava, para me colocarem de volta na escolinha pública perto de casa.
Naquela que as crianças eram as mesmas da rua, íamos caminhando para o colégio,
todos éramos do mesmo tamanho e habilidade com a bola, vivíamos uma camaradagem
muito leal, correta, altruísta e educativa. Mas não, minha mãe me explicava que
lá no centro eu teria uma educação melhor, teria que aprender a conviver com os
opressores. A opressão é inexorável, ela nunca deixará de existir, eu tinha que
me afastar e construir minha vida longe dos opressores. Foi dureza esse tempo,
tinha até medo de ir para escola. A hora do recreio e a Educação Física eram
momentos de terror. Eu era a caça e haviam muitos caçadores querendo se
divertir. Realmente, percebo agora, minha mãe foi sábia em me obrigar a passar
um tempo naquela escola de opressores, ela tinha razão, eu aprendi a me afastar
da súcia. Minha vida passou a ser um diligente afastamento do que significa
opressão, em todos os sentidos: político, econômico e social.
Uma
das coisas que tivemos que aprender a fazer para estudar no centro foi andar de
ônibus. O pai nos levava de Brasília amarela pela manhã e nos trazia de volta
ao meio dia, mas sempre tinha umas atividades à tarde, fora do horário que o
pai podia nos transportar. Naquele tempo, finaleira da ditadura militar, o povo era
visto como gado, só servia para puxar a carroça da economia. Portanto, não
precisava de luxo. O último presidente militar, João Figueredo, chegou a afirmar,
sem constrangimento, que preferia o cheiro de cavalo do que o de povo. Diante
de tal liderança política, os ônibus eram péssimos, velhos, escuros, poucos e
apertados. Na hora do pique, havia filas quilométricas nas paradas e as pessoas
iam se socando para dentro como podiam. Os cobradores apressavam os passageiros
com frases icônicas: “Um passinho a frente, por favor!” Queriam dizer que lá na
frente, em cima do barulhento motor do ônibus, ainda dava para se amontoar uns
dois ou três. Outra frase incrível que usavam, era: “Ainda tem lugar no
corredor do meio!” Essa queria dizer que deveria ter três corredores em pé! Um
sobre as pessoas sentadas nos bancos do lado direito, um sobre os passageiros
do lado esquerdo e o terceiro entre esses dois. Os corredores dos lados eram
privilegiados porque tinham onde se agarrar na barra do teto, o brabo era aguentar
a catinga de tanto sovaco exposto. Os do corredor do meio eram jogados para lá
e para cá, conforme o movimento do ônibus, por sobre os outros, fazendo que muitas vezes
tu caísse de boca nalguma paleta suada. Outra frase boa, muito usada, era: “Vamos
subir mais um degrau para poder fechar a porta, por favor!” Significava que o
veículo já estava tão lotado que os passageiros deveriam se apertar uns contra
os outros para que a porta fechasse e aqueles que ainda estavam na fila do lado
de fora se resignassem a esperar o próximo horário. Quem olhasse de fora,
quando a porta finalmente fechava e o motorista arrancava acelerando irritado,
via uns corpos espremidos como uma rolha de champanhe, colados ao vidro da
porta. Pudores frívolos como paus e mãos se esfregando nas bundas e seios
tinham que ser deixados de lado ao “optar” por ser usuário de ônibus. Ao entrar
na escola do centro, aos dez anos de idade, fui aprendendo a conviver também
com o sensacional (sensações de tato, equilíbrio, olfato, visão, audição e até
paladar) sistema de transporte coletivo brasileiro planejado por opressores. Mas,
hoje de novo percebo, foi muito educativo, minha mãe tinha razão.
Havia
três linhas de ônibus do centro para casa que poderíamos escolher para voltar:
Juca Batista, Serraria e Ponta Grossa. Uma ocasião, seguindo dicas de uma irmã
mais velha, ao sair da escola à tarde, entrei para a fila mais vazia das três
linhas. Assim, eu conseguiria sentar. O Ponta Grossa tinha acabado de arrancar
e a fila estava sem ninguém. Eu era o primeirão! No Serraria e no Juca as filas
já viravam a esquina da Borges com a Jerônimo Coelho. Esperei. Assisti sairem
cheios as duas linhas e pensei, orgulhoso, sou mais esperto, vou sentado. Esperei
mais e percebi em júbilo as filas das três linhas crescendo sem parar. Mas já
me aborreci vendo outros dois Jucas e Serrarias indo embora. Droga, o Ponta
deve ter quebrado, situação extremamente comum naquele tempo eram as
baldeações. A minha fila já virava a esquina quando cogitei que deveria ir em
pé amontoado mesmo, azar, quando uma terceira dupla de Jucas e Serrarias saíram
lotados. Mas, eu era o primeirão, e já estava ali esperando há 45 minutos! Seria
uma vergonha e um desperdício não usufruir daquele privilégio. Finalmente o
Ponta chegou, junto de outros dois das linhas concorrentes, depois de mais de
uma hora de espera. Subi triunfante, passei a roleta e fui lá para frente
sentar na janelinha. Mas, pena, uma senhora idosa, com dificuldades para caminhar,
o motorista deixou entrar pela frente quando o ônibus lotado já ia arrancar.
Ela pediu meu lugar e eu, uma criança educada, cedi e me senti o mais estúpido
dos seres. Depois fiquei sabendo que o Ponta Grossa tem um por hora, enquanto
as outras linhas são mais frequentes. Minha mãe tinha razão, havia muito o que aprender
estudando no centro.
Depois
de três anos de inferno e muita súplica, minha família autorizou que eu
voltasse a estudar na escolinha pública do bairro. Terminei a oitava série lá e
fui fazer o curso técnico noutra escola pública, mas agora no centro, tinha
muito ônibus na minha vida de novo. Diferente da particular, essa era bacana,
não tinha bullying comigo. Eu cresci, fiquei até mais alto e forte que outros
colegas, nunca fiquei bom de bola, mas agora eu era um dos mais ricos, sem
dúvida, da turma. Meus colegas eram muito pobres, muitos do interior,
trabalhavam para ajudar a família, enquanto eu era o almofadinha, um dos raros
que não ajudava com dinheiro em casa. Nessa escola me sentia muito bem, era
respeitado pelos colegas. O ambiente era de eterna festa. Vivíamos unidos, as
gargalhadas, tínhamos um circulo de amizade muito grande. Todo recreio saiamos
caminhando da escola para uma confeitaria popular que existia ali por perto.
Íamos olhando as bundas, debochando uns dos outros, fazendo planos de carreira
em empresas ou empreendimentos próprios, discutindo os problemas de estágios e
argumentando sobre o melhor veneno dos carros que passavam. Era uma época de
muita camaradagem, franqueza, fraternidade, alegria, sonhos e esperanças.
Emprestávamos trocados uns para os outros e dividíamos a mil-folhas, um que
outro conseguia comprar uma coca-cola caçulinha, mas já sonhávamos com nosso
primeiro emprego, com nosso primeiro carro, com nosso primeiro filme pornô, com
nossa primeira namorada, com a nossa primeira transa, com nosso primeiro
qualquer coisa. O tempo de ócio juntos nos era muito mais caro e precioso que o
tempo em aula. Muitas vezes matávamos aulas para vagabundear pelo centro,
passear e conversar. Nos sentíamos culpados e receosos de sermos flagrados por
alguém conhecido, mas o risco valia a pena. Aprendíamos muito mais o que
precisávamos aprender na adolescência no ócio com amigos do que em aula. Nunca
me senti oprimido nessa escola, talvez porque o opressor era, de alguma forma,
eu.
A
experiência da escola pública bacana, com ambiente alvissareiro, se repetiu
quando entrei na UFRGS. Na engenharia havia muitos bravos colegas do interior e
até de outros estados que trabalhavam, além de muitos almofadinhas da capital
como eu. Os de Porto Alegre eram oriundos de escolas particulares, felizmente não
cruzei de novo com nenhum ex-colega pulha daquela minha antiga escola particular.
Fiquei amigo de dois colegas que moravam próximos a minha casa. Os dois vinham
de outras escolas particulares, ainda mais caras e com um status maior daquela
que frequentei, eram muito parecidos ideologicamente mas diferentes em
aparência, uma gordinha baixinha e um altão magro. Era uma hora e meia de
ônibus até o Campus, então íamos conversando muito sobre as aulas de cálculo e
física e fazíamos muitos planos de viagens juntos. Os dois me encantavam com
sua inteligência e erudição, eram fluentes em inglês e iam bem nas disciplinas
que eu me ralava, aprendi muito com eles. Agora eu já era grande e forte, minha
aparência física, meus conhecimentos e o local onde eu morava contribuíam para
que eu tivesse um salvo conduto entre aqueles dois personagens. Larguei a
faculdade e fui viajar por dois anos, me afastei um pouco dos dois amigos. Ela
largou também e foi fazer medicina, ele seguiu e se formou engenheiro civil.
Estou
escrevendo esse texto, caro leitor, porque revivi algumas situações da infância
e adolescência uns tempos atrás, mas agora do ponto de vista de um adulto, já
orfão de mãe. Há muito tempo, há 15 anos já, me afastei de Porto Alegre, construí
minha vida longe da opressão. Foi uma decisão consciente, não foi uma fuga. Mas
seguidamente volto, por um motivo ou outro. Uns meses atrás, depois de um cineminha
num shopping perto da casa de meu pai, procurei um lugar para jantar na praça de
alimentação. Escolhi um fast food qualquer, fiz meu pedido e esperei. Nesse
momento, chegou meu colega altão da engenharia reclamando de um erro no seu
pedido. Nem me percebeu ali. Estava bem barbeado, cheiroso, penteado, roupas
novas, passadas, figurino clássico do capitalista com fé no sistema. Refleti um
pouco se fingia que não o tinha visto, recentemente ele me excluiu do Facebook
por um fosso de diferenças ideológicas de magnitude abissal. O cumprimentei com certo
receio, era impossível não notar o agora gordo e gigante amigo a trinta
centímetros de mim. Ele me olha com uma alegre surpresa, mas logo se contém, seus
olhos se tornam opacos, mas segue com os cumprimentos protocolares, tentando
demonstrar uma alegria ritual em honra a nosso passado comum de colegas universitários.
O mesmo faço eu. Nós dois evitamos política e nos esforçamos em manter uma
conversinha de balcão. Comentamos dos filhos, que grandes e espertos estão, de
como estamos gordos, dos quilos que os médicos mandaram nós dois perder. Chegam
nossos lanches e nos despedimos educadamente. Ele não me convida para a mesa de
sua família, nem eu me convido para sentar com eles. Escolho uma mesa distante,
como com calma, mas não olho mais para o salão. Que momento triste. Faço uma
rápida avaliação de minha aparência: Clássica de esquerda, questionador do
sistema. Barba de 15 dias, roupas surradas, nem pente tenho, me lembro que
enforquei o banho e quase nunca uso perfume. Nós dois comendo um fast food
americano, o mais emblemático ícone capitalista. Ele deve ter pensado vitorioso:
loser. Sem dúvida, no jogo que ele compete, eu nem no banco de reservas fico, nem entro em
campo. Saí dali desacorçoado, meio engasgado, triste mesmo. Fui a uma livraria,
olho tudo diletante e resolvo levar uma revista superinteressante só para ter
alguma coisa para ler à noite lá no pai. Entro na fila para pagar e encontro
o irmão da minha outra colega de engenharia com toda sua família. Ela também me
excluiu do Facebook. A mesma cena se repetiu. Cumprimentos rituais,
conversinhas amenas enquanto esperamos a fila andar, desconforto de ambos os
lados. A mulher do cara me olhava como quem olha uma barata, com asco e
repulsa, discretamente afastava sua prole de mim. Esse também, mesmo visual barbeado
e lustroso pequeno burguês. Ele também era nosso contemporâneo de faculdade,
mas um ano a frente de nós. Engenheiro, vende piscinas. Os dois terminaram a
engenharia, eu larguei. Os dois casaram e tem família, eu nunca me entusiasmei com
isso. Não vi, mas tenho certeza que os dois tem carros grandes, sedãs caros
estacionados no subsolo, eu tenho moto mas fui de ônibus ao shopping. Na
engenharia eu fracassei, assim, como na busca por uma remuneração maior. Mas,
como dizia Darcy Ribeiro: “Fracassei em tudo que tentei, mas meus fracassos são
minha maior vitória, odiaria estar no lugar de quem me venceu.” Tenho orgulho
de não ter sucumbido a esse jogo de ganha-perde. Discordo nisso com minha falecida mãe, a opressão não é inexorável, é construída e ensinada em escolas. Me afastei e luto por uma
sociedade ganha-ganha.
Sempre
que volto a Porto Alegre, evito dirigir, o trânsito é sufocante e opressor
naquela cidade. Basta tentar seguir a lei, parar em faixa de pedestres ou
obedecer a velocidade máxima, passas a ser agredido. Se tu não fores oprimido,
serás opressor. Umas duas ou três fechadas e buzinadas e tu começas a reagir no reflexo, tu começas a ser mais agressivo, passas a competir como um animal. Portanto
evito, não quero oprimir ninguém, não quero jogar esse jogo. Largo a moto na
garagem do pai, me recuso a competir, saio de transporte coletivo para algum
passeio que quero dar. Evito horários de pico, fico sufocado em
congestionamentos. Depois daqueles dois encontros tristes na mesma noite, saí
do shopping e me dirigi à parada já tarde da noite. Tenho medo de assalto em
Porto Alegre, fico atento as pessoas do entorno. Histórias de violência me
oprimem também lá. A diferença social dos que estão de um lado do balcão do
shopping para os que estão do outro tem aumentado muito e cada um usa as armas que
tem para tentar vencer. A parada é abrigada e iluminada a noite, muitos
trabalhadores do shopping aguardam comigo. Não esperei nem um minuto e chegou um Ponta
Grossa! Era um ônibus novo, claro, com ar condicionado, amplo, daqueles minhocões,
todo mundo está sentado e sobram lugares. Lembro daqueles antigos ônibus da
Trevo, empresa que faz as linhas que vão para a casa do pai. Que diferença! O
motor é embaixo, muito mais silencioso, super potente, arranca rápido. A viagem
até em casa é rápida e segura. Fico refletindo o que separa o Ponta Grossa do
João Figueredo para o da Dilma. Obviamente foram anos de governos de esquerda,
de caras com barbas por fazer e roupas surradas. A primeira ação de Olívio
Dutra, primeiro prefeito eleito depois da ditadura que era realmente de
esquerda, foi intervir nos transportes públicos. Depois o orçamento
participativo colocou casinhas e asfalto onde antes eram vielas escuras de
favelas em Porto Alegre. A melhor distribuição de renda foi responsável por um
boom econômico no Brasil durante os governos Lula e Dilma a tal ponto que o
país “comprou” em leilão internacional concorrido as olimpíadas e a copa. O
aumento do poder aquisitivo de classes menos favorecidas fez com que muitas
famílias comprasse carro, aumentando os congestionamentos.
Através dos posts eu
percebia, enquanto eram meus amigos no Facebook, que meus dois ex-colegas de
engenharia eram radicalmente contra os governos de esquerda. Vai ver é porque
congestiona as ruas para seus sedãs e põe nas filas do shopping, do mesmo lado
do balcão, pessoas como eu, desprovidas da fé no sistema depois de tanto
bullying e fracassos. Não existe escola sem partido, elas todas vão te ensinar
uma ideologia. A tentativa vil desses senhores que falam bem dessa proposta é a
de que aceitemos a ideologia deles, aquela que ensina a manter o status quo
atual, o status que os esportes ensinam: todo mundo tem que competir, mas só
alguns devem subir no pódio, lugar que tem degraus hierárquicos e não cabe
todo mundo. Não foi a toa que Barão de Coubertin resgatou os esportes olímpicos
logo após Marx e Engels publicarem o Manifesto. Os esportes vêm carregados de
ideologia aristocrática, mas com discurso de abnegado altruísmo. Não sejamos
tolos, democracia grega era aristocrática. Só cidadãos livres do sexo masculíno
podiam votar. Veja que nas últimas eleições, muitos candidatos de direita se
elegeram dizendo que não são políticos. Mais um pouco eles vão sugerir um
congresso sem partido...
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