Porto Alegre, 2 de fevereiro de
2006
Estou triste hoje. Sim, triste,
vendi minha moto ontem. Eu nem tinha sentido nada, a tristeza só bateu hoje.
Fiz tudo que tinha que fazer e fui para casa como se a vida continuasse
normalmente, mas não. Eu adorava aquela motinho. Ela era rara, muito pouco
vendida. Curtia um monte sair com ela, me orgulhava. Para mim, era a melhor
moto do mundo, me dava um baita prazer. Tinha o motor forte e uma aparência inovadora
que muitos achavam horrorosa, mas para mim era uma coisa a mais que a tornava
exclusiva. Eu andava com o peito inchado em cima dela e olhava com soberba para
os outros motociclistas que ignoravam a sua tremenda capacidade. Dava toda
atenção, enchia ela de cuidados, mas cuidando para não mimar. Em cinco anos só
dei seis banhos nela, para não atrair olhos de cobiça. Nada de gasolina ou óleo
especial, ela bebia o que todo mundo bebia. Claro, de vez em quando eu comprava
uma relação com retentores, muito mais cara, ou um pneu original só para ela
continuar especial. Ela já estava velhinha, com cinco anos, toda hora tinha uma
coisa para fazer. Mas até isso me dava alegria. Parecia que eu estava fazendo a
coisa certa: cuidar bem. Meu coração se preenchia. Não deixava estragar, só
fazia manutenção preventiva. Qualquer coisinha eu ia correndo no mecânico. Ele
é um cara legal, tão apaixonado por ela como eu. Sempre dava uma elogiada, como
ela estava bem conservada ou como era macia. Nós dois ficávamos olhando ela e
comentando sua beleza e boazudisse. Ele vê em mim um cara que gosta e entende
de moto, não só um cara que usa moto. Eu vejo nele a mesma coisa, ele gosta e
entende de moto, não é só um cara que conserta. A relação, minha e dele, com as
motos tem afeto envolvido.
A história da venda foi trágica,
mas talvez tu, leitor, aches divertida. Eu ia vir para Porto Alegre dia 16 de
dezembro com a firme intenção de vender a moto aqui, ela tem a placa da cidade.
Pergunta daqui, pergunta dali, pensei em vender por cinco mil. Alguém me alertou
que era bom eu trocar o pneu traseiro antes de vender, o estado dele é uma das
primeiras coisas que prováveis compradores olham. Serve como uma isca. O pneu
original era caríssimo, então resolvi por o do mercado paralelo mesmo, já que
não seria eu que ia usar e pouca gente percebe a diferença. Troquei o pneu, deu
150 reais, mas eu pensei: 150 é nada perto de 5000, além do que a viagem para
Porto Alegre seria muito mais segura. Também paguei o IPVA, para não ter
problemas na estrada e nem na hora de vender: R$ 228,00. Pensei: mas isso nem
conta, vai ser o último gasto mesmo! Vim. Na estrada do mar um polícia me
parou, na frente dele a moto apagou. Não fui eu que desliguei, ela apagou
sozinha. Olhou os documentos, minha carteira de motorista foi tirada em
Florianópolis e eu tô com barba por fazer na foto, fico meio bandidão. Ele não
deu muita bola para os documentos, mas se interessou pela moto, nunca tinha
visto aquele modelo de moto em 15 anos de PRE. Eu elogiei um monte a moto, como
era econômica e durável, nunca estraga. Eu disse que ia vender e ofereci, ele
disse não, mas gostou. Fiquei feliz, sinal de que seria uma barbada vender.
Vesti o capacete, coloquei as luvas e tentei ligar a moto: nhéco, nhéco, nhéco,
nhéco e nada, o polícia ali, olhando. De novo: nhéco, nhéco, nhéco, nhéco e
nada. Tiro as luvas, futrico um pouco, começo a suar: nhéco, nhéco, nhéco,
nhéco e nada. O polícia se desinteressou totalmente e foi parar outro carro.
Futrica um pouco mais, suo profusamente de casacão e capacete no solão, mas ela
pega... com quase todo acelerador puxado: RUUÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁ!!! Coloquei as luvas
correndo e sai dali antes que ele achasse um artigo para me multar. A moto ia
bem a 80 km/h ,
beleza, mas a 60 falhava e parada apagava. Cheguei em Poa e deixei a moto na
oficina com a ordem: limpa o carburador e troca a vela. No outro dia fui
buscar, R$ 37,50. Pensei que seria só isto, mas não era, ainda falhava. Como é
que eu ia vender uma moto falhando? Voltei lá: só pode ser a bobina, eles
disseram. Dois dias depois voltei de novo: R$ 220,00. Vai somando... Puta
merda, porque esta moto não esperou mais um dia para estragar? Não era a
bobina. É o coletor, me disseram, mas só tem na Yamaha. Fui na Yamaha: R$ 150,
mas não era o coletor. Cada vez que eu ia tirar dinheiro no caixa eletrônico
era um custo, o cartão tá todo descascado e a tarja magnética já nem funciona
mais direito, tem que fazer dez vezes a operação para dar certo. Deixei a moto
para uma investigação mais aprofundada, uma semana. Aproveitei o tempo para fazer
uma nova carteira de identidade, na minha eu ainda estava com 14 anos. Na foto
da nova, percebi depois, eu saí com a barba por fazer, meio escabelado e suado,
ficou pior que a antiga. Depois de passada a semana, me disseram: R$ 450! Era
um punhadinho de peças que o cara me apontava com o dedo mindinho para não
escondê-las. Somou? Pois é, R$ 1235,50, mas ficou boa, bá, ficou tri boa.
Pensei, vai ser uma sopa vender está super máquina por 5000! Anunciei no natal
na Zero e no Correio, não vendi. Para compensar, ganhei uma camiseta bem legal
do MST de natal do pai. Fui em todos os picaretas de Poa, ninguém queria a
minha já nem tão adorada moto. Percebi que tinha um elefante branco nas mãos.
Fui para Rio Grande e Pelotas (o tio Luís me disse que lá era certo que eu
vendia) mas lá, também, ninguém quis. Aquela aparência inovadora, que para mim
era linda, para todo mundo era mesmo horrorosa. Ofereci em Canoas,
Cachoeirinha, Alvorada e Viamão, nada. O motor forte, que para mim era um
prazer, para todo mundo era um gastador. Esteio, Sapiranga. A bela raridade
virou rapidamente uma bruxa medonha. Novo Hamburgo, São Leopoldo. Os outros
motociclistas, que eu, arrogantemente, sempre achei ignorantes, agora eu
invejava por serem tão espertos de terem uma bosta de moto para passar adiante
fácil. Vendi, então, para o primeiro que me fez uma oferta, a única que me
fizeram, em Gravataí; R$ 3000. Tirando a gasosa que eu gastei para ir pra lá e
pra cá com a moto e toda manutenção, sobrou uns R$ 1500 para mim dos cinco mil
que eu queria... Peguei o cash e levei correndo, de casacão e capacete na mão, 2 km até o banco, num solão de
rachar coco, três ridículos bolinhos de notas de cinqüenta. Cheguei todo suado,
com a camiseta do MST molhada, barba por fazer, todo escabelado, com aquelas
coisas na mão, tava uma coisa. A mulher do caixa começou a contar bem rápido:
vap, vap, vap, vap, vap, um bolinho, vap, vap, vap, vap, vap, outro bolinho,
vap, vap... Esta é falsa! Gelei. Como assim, falsa? É falsa, passa os
documentos! Eu passei o que tinha ali: identidade tirada ontem em Porto Alegre , com
barba por fazer, escabelado e suado na foto, carteira de motorista tirada em
Florianópolis, com barba por fazer, cartão do banco todo descascado e com a
tarja magnética sem funcionar! Eu argumentei: juro que só vim a Gravataí vender
uma moto... Mas já vi até as manchetes nos jornais: “Bandidão do MST tenta
passar dinheiro falso em Gravataí!”, me imaginei algemado na delegacia, o
delegado dando-lhe pau em mim num cantinho escuro, depois na cadeia, os
presidiários socando-lhe o pau em mim num cantinho escuro.
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