Os
Silveira paz e a amor
Aos
dois anos de idade, acredito eu, num entardecer de verão, tomei meu primeiro e
último banho no lago Guaíba em Porto Alegre. A população já sabia que as águas
estavam poluídas por esgoto e resíduos industriais que toda região
metropolitana despejava livremente nos rios. No entanto, nas praias distantes
do centro da cidade, ainda se considerava próprio o banho. A forte lembrança
que tenho daquela prazerosa tarde foi de um momento muito alegre com meus pais,
minhas irmãs e os Silveira, no fundo do pátio da casa deles em Ipanema. Eles
moravam numa grande chácara, às margens do lago. Lembro bem de Maria Augusta, a
matriarca da família, com água pelos joelhos, me encorajando a entrar um pouco mais
para dentro do lago para observar o belo pôr do sol. Mas me sentia mais seguro
de mão com minha mãe, com as marolas lambendo minhas canelas.
As
visitas aos compadres de meus pais, eles foram padrinhos de minha irmã caçula,
eram sempre maravilhosas e marcaram minha memória de forma muito positiva.
Aquela chácara era mágica. Tinha um enorme jardim e uma linda casa de madeira
com corações serrados nas janelas, tinha lareira e era decorada em todos os
cantinhos, por dentro e por fora, parecia de contos de fadas. Dava para correr
a vontade lá, muito gramado e canteiros de flores. Tinha casinhas de bonecas e
de passarinhos pelo pátio da mesma madeira e cor da casa principal. Horta,
pomar, várias composteiras, casa de caseiro, tinha até uma torre da Rapunzel!
Ir lá era sempre uma diversão de muito aprendizado e fantasia. Eles tinham
muitos filhos, mas eram um pouco mais velhos que nós, adolescentes, já estavam
noutra onda, nunca os encontrávamos. Quem sempre nos recebia com toda a
paciência era Maria Augusta. Ela era de origem alemã, então sempre nos ensinava
alguma coisa da cultura ou do idioma germânico. Uma ocasião nos levou para cozinha
e sentamos num “canto alemão”, um banco almofadado em “L” atrás da mesa. Nos
serviu uma “apfelstrudel”, uma torta de maça, com chá. Ela falava docemente com
uma vozinha agradável e rouca, com um vocabulário muito grande que nos enchia
de perguntas e sempre tinha um grande repertório de histórias que acompanhavam
as surpresas que ela nos proporcionava. Na sala tinha um relógio cuco, que a
cada tanto saía e piava. O chá não era de saquinho, mas sim colocado num ovinho
de metal que era mergulhado numa chávena de porcelana. Maria Augusta, assim
mesmo a chamávamos, era orgulhosa dos filhos e nos contava suas aventuras:
Sérgio criava abelhas e fazia mel, Francisco Alberto andava de bicicleta e
corria, Cecília estudava música. A vida daquela família era cheia de belos detalhes
carregados de histórias, fantasias, sonhos, cultura e erudição.
Àquela
época, começo dos anos setenta, era de muito sofrimento no Brasil. Toda América
Latina estava submersa em ditaduras de direita. Estávamos em pleno regime
militar e, com as forças do mal no poder, muitas coisas eram proibidas,
inclusive aglomerados de pessoas. Eu mesmo, nasci dois meses depois da emissão
do Ato Institucional nº 5, que fechou o congresso nacional e tirou diversos
direitos civis. Reuniões, para qualquer assunto, eram subversivas à ordem. Os
Silveira, no entanto, inteligentemente resistiam à opressão. Construíram no
pátio um templo, uma espécie de igreja católica informal, ou algo assim: era um
local de reuniões subversivas. Era um casal ativo do MFC, Movimento Familiar
Cristão. Organizavam encontros internacionais de casais católicos. Não havia
nenhuma objeção do governo ditatorial a isso, porque o movimento era bem
alienado nas suas análises. Porém, estavam a refletir as ideias de um comunista
radical, Jesus. Aquelas reuniões deixavam angustiados alguns que queriam maior
envolvimento político da igreja nos países. Meus pais, por exemplo, saíram do
movimento e procuraram outras formas de luta mais efetivas. A teologia da
libertação começava a surgir em defesa dos mais pobres, como Jesus ensinava. Lideranças
como Frei Betto, Dom Hélder Câmara, Leonardo Boff ou mesmo Jorge Mario
Bergoglio, o atual Papa Francisco, surgiram nessa época preocupados com os mais
pobres. O trabalho de formiguinha nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s)
dessa gente começou a render frutos políticos. A volta da democracia, a
constituição de 88 e a eleição de um operário para a presidência do país, Lula,
fortemente apoiado pelas CEB’s e a igreja católica. Acredito que esses avanços
progressistas vieram a culminar com a eleição da primeira mulher para
presidência, Dilma. Talvez, aquele ato de construir o espaço de reuniões
religiosas dos Silveira, aparentemente ingênuo, tenha sido revolucionário.
Toda
minha vida escolar foi durante o período militar. Os milicos viam as artes como
inimigas. Pensadores que escreviam, atuavam no teatro, compunham músicas,
pintavam ou esculpiam eram perseguidos. As cabeças criativas e pensantes eram
inibidas nas escolas. Quem pensasse muito poderia vir a derrubar o governo. Na
minha infância nunca tive oportunidade de viver a arte. Não tive aulas de
música, teatro ou mesmo uma oficina de modelagem. Uma geração inteira, a minha,
ficou cronicamente carente do convívio com o belo. Não sabemos fazer nem
interpretar a arte, somos infantis nessa área como desenhos de pessoas palito.
Eu não sei desenhar, pintar, cantar, atuar numa peça de teatro, tocar uma
flauta doce, ler uma partitura, ou modelar argila. É triste. Somente a marcha de
sete de setembro permitia algum esforço artístico. Mas, como eu tinha péssima
coordenação motora, não conseguia entrar para a banda ou mesmo fazer alguma
acrobacia com bambolês na avenida. Por ser loiro, me colocavam em destaque e deixavam
carregar faixas no desfile. A pobreza estética dos prédios, dos uniformes, das
salas de aula era evidente. A coisa toda era proposital. Pela manhã, ficávamos
em fila e cantávamos o hino da escola e do Brasil ao hastear a bandeira. Então
aprendíamos “Educação, Moral e Cívica”, disciplina regular ao lado de
matemática e português. As artes eram relegadas a um terceiro plano, quando
sobrasse um tempinho, para fazer decoração de páscoa ou cinzeiros para os pais.
Precisava ser totalmente desapegada da realidade, no máximo uma natureza morta.
Felizmente
o mundo muda. Em Porto Alegre foi eleito um governo democrático em 88 e foi
como uma primavera para as artes. Criaram o orçamento participativo, onde
qualquer cidadão poderia sugerir e decidir sobre onde seria aplicado o dinheiro
arrecadado. A educação passou a valorizar as artes no currículo e começaram a
surgir diversas escolas nas favelas e nas periferias mais excluídas da cidade.
Muitos professores tiveram que ser contratados nessa época, pessoas formadas
naqueles anos de chumbo da ditadura militar. Com aquela formação quadradona,
dificilmente alguma coisa muito especial poderia surgir. Mas, o governo estava
disposto, abria espaço e disponibilizava verbas para quem fizesse um projeto
inovador. Uma que outra professora iluminada
conseguiu proporcionar a seus alunos experiências de qualidade. A maioria
reproduzia aquilo que aprendeu, no entanto, a possibilidade estava aberta e
alguns pesquisavam e, com grande esforço pessoal traziam as artes para onde
elas sempre mereceram estar, a ponta de lança do desenvolvimento social. Uma
outra geração teve oportunidades incríveis e agora, passados trinta e quatro anos
da redemocratização, a contaminação das brumas do inverno militar finalmente
dissipou.
Fui
convidado por uma irmã para assistir uma orquestra de estudantes de uma escola
básica da rede municipal de Porto Alegre. Segundo ela, seria regida por Cecília
Reinghantz Silveira. Lá fui eu ao teatro São Pedro, na noite de uma terça-feira,
com a menor das expectativas. Imaginei crianças com flautinhas tocando Coelhinho
da Páscoa, como seria na minha época. Porém, minha ideia de arte nas escolas
foi estraçalhada no espetáculo. Uma orquestra enorme, com violinos, violoncelos,
percussão e acompanhada de dois corais de adultos convidados me fizeram chorar
profusamente. O espetáculo era um portal mágico de elevação espiritual. Nas
duas primeiras músicas eu soluçava emocionadíssimo. O nome do espetáculo era
Paz e Amor e apresentou músicas da resistência dos jovens na época da ditadura
militar. Todas as músicas eram acompanhadas de um grande corpo de baile que
coreografava tudo. Na frente da orquestra aquela frágil senhorinha de cabelos
brancos, filha caçula dos Silveira, Cecília.
A
vida vem em ondas como o mar, já nos ensinava Lulu Santos. No recuo da maré
política, vivemos um momento de volta às trevas obscurantistas da ditadura. A
volta dos militares ao governo, da direita, do autoritarismo, do asco às artes,
do repúdio aos avanços sociais. Essa virada grotesca também foi impulsionada
pela religião, mas dessa vez pelos evangélicos, numa interpretação distorcida
dos ensinamentos de Jesus. De alguma forma bizarra, “amai-vos uns aos outros”
virou “bandido bom é bandido morto”. Em vez de “perdoa setenta vezes sete”
agora é “compra tua arma para se defender”. No lugar do “dividir o pão” ficou o
“salva o teu e o resto que se lasque” da teologia da prosperidade de pastores pentecostais
capitalistas. Justo agora que chega aos grandes teatros o resultado de uma
geração formada em escolas progressistas, quando as artes estão maduras, doces
e cheias de sementes, estamos mais próximos da burca que da Sorbonne.
Não
conheço nenhuma outra forma mais efetiva de resistência do que a exercida por Cecília
e seus alunos de escola pública. Ela é um rochedo que não se mexe mesmo nas
piores ressacas. Devemos observá-la pois é um farol da liberdade no meio dessa
tormenta. Se alguém que testemunhou o espetáculo era de direita, teve toda sua
estrutura ideológica rachada. Tudo o que o atual governo abomina estava no
espetáculo: gays, negros, cabelos black power e coloridos, dança, teatro,
poemas de protesto, música boa e questionadora, diversidade total e beleza. O
espetáculo todo era uma aula de civilidade. Eu mesmo, criado num ambiente mais
sombrio, vi uma gordinha negra sair da fileira dos violinos da primeira para
segunda música e preconceituosamente pensei: Claro, os piores só sabem uma
música então saem para dar espaço para quem realmente sabe tocar. Em um minuto
esse pensamento se provou machista, racista, gordofóbico, misógino, repugnante.
A gordinha voltou para a frente do palco, acompanhada de várias outras
gordinhas negras e começaram a coreografar a música com um sapateado. A guriazinha
brilhava, era um diamante. O tosco era eu. Ainda bem que calado e chorando no
escuro ninguém percebeu que eu sou um fóssil mal cheiroso, um bicho escroto.
Que
educação maravilhosa os Silveira receberam. Conseguiram atravessar os anos de
chumbo da ditadura fazendo com que seus rebentos tivessem acesso a arte e crescessem
sua capacidade intelectiva. Que pessoas privilegiadas viveram naquela casa, em tanta
paz e amor que transbordou para seus alunos de escola pública. Agora imagina se
tivessem vivido lá em tempos democráticos! O que não sairia de lá?! Ainda bem
vivi também numa casa bem abastada, não só em termos materiais, mas também em
intangíveis culturais. Só assim posso reconhecer a magnitude do feito da Maria
Augusta e do José Silveira que criaram a Cecília para ser um polo de amarração
do belo, para que não fosse levado pelas ondas que de quando em quando assolam
o país. Obrigado aos Silveira pela paz e amor que vocês, resistindo bravamente
as ondas de ódio e guerra, com muito esforço nos oferecem. Acho que aquele
cuco, as casinhas de boneca com janelas de coração, a chávena de porcelana e as
apfelstrudel foram fundamentais para isso, mas também a vozinha rouca e os
banhos de Guaíba ao pôr do sol.
Maravilhoso, Tiago!
ResponderExcluirTens um talento ímpar!
Amei! ❤️