Vestibular
Há
uns dias, recebi a notícia que minha sobrinha passou no vestibular. Fiquei
faceiro, assim como toda família. É um vestibular concorrido aquele da UFRGS,
ainda mais para direito! Pensei em escrever alguma coisa para ela, não que ela
vá ler, já fui adolescente e eu, pelo menos, lia o mínimo possível. O tempo era
precioso e tinha muitas bundas para olhar, não sentava para leituras
diletantes. Cartinhas de tios babões são tão aborrecidas como ler um guia
telefônico, certamente não é uma coisa para pular de alegria, então porque eles
as escrevem? Pergunta difícil! Sei lá! Mas agora que fiquei para titio, sinto
uma verdadeira compulsão! De forma que, para exercitar minha escrita, comecei a
recordar algumas coisas. Tive a sensibilidade de não mandar para seu email, mas
sim escrever no face, aberto ao público. Lá, como ela mesma me ensinou, em
caso de constrangimento: “eu sempre posso me desmarcar”! E no face outras
pessoas podem vir a apreciar. Sei daqueles três ou quatro leitores diletantes
que sempre comentam meus escritos, desde gosto da abóbora até os aforismas de
Nietzsche!
Adolescência
é um tempo incrível na vida do sujeito. Um manancial de mudanças bruscas e
decisões importantes. A chance do cara sair sequelado dessa idade é enorme! Capotar
o carro do pai é comum, muitos amigos meus o fizeram. Alguns saíram tapeando o
pó da roupa de festa, outros não sobreviveram à brincadeira. Não foram poucas as
noites que eu saí silenciosamente empurrando a Belina verde para a rua até algum
lugar que o ruído do motor não acordasse ninguém. Quantos pegas emocionantes eu
corri contra desconhecidos naquela chacoalhante camionete familiar!! Sim, tem
outros adolescentes a solta na madrugada, éramos muitos e fomos todos, não há
como negar!!! Tem coisas que os pais conseguem evitar, por exemplo: Moto para
adolescente é como dar faca para nenê, vai dar sangue na certa. Outras são
impossíveis!!! Sexo vai sair mesmo que seja no mastro de um veleiro em noite de
tempestade!! Todos os hormônios te mandam agir... e rápido!!! Procuramos
parceiros para sexo aos bandos... E formamos bandos, claro! Ouvimos todas as
músicas de tal banda porque aqueles que eu considero do meu grupo o fazem. Signos
de todos os tipos são orgulhosamente ostentados: Camisetas, cabelos estranhos,
pulseiras, colares, coturnos! Qualquer coisa!! Fazemos questão nessa idade de
provar para todos o quão engajados somos ao grupo, ainda que para isso precise
marcar no corpo a fidelidade ao bando. Mas, se há uma coisa certa na cabeça de
alguém de 17 anos, é isso: eu já sei tudo!!! A tatuagem do dragão nas costas é
a mais legal e vai se amar para toda a vida, não há dúvidas na vida de um
teenager!!!
O
presente é tão cristalino para o adolescente que é até irritante para ele quando
alguém o questiona. Já o futuro, está tudo em aberto e não se tem a menor idéia
de onde se vai... Mas há de ser glorioso!! Não são dúvidas, mas sim, opções a
ser melhor analisadas. Temos certeza que vamos ser ricos, famosos, felizes e
desejados. Mas, para isso, temos que percorrer um caminho que nossos pares nos
indicam. São meras formalidades, formulários a preencher e tal, até se atingir
o carro zero e a casa na praia. Basta escolher a mais tesuda que ela cairá aos
teus pés, já pré arretada, óbvio! A metodologia para atingir esses objetivos deve
ser fácil de aprender. O único empecilho, claro, é a família, que nos aporrinha
com afazeres que aborrecem sobremaneira e teimam em nos alertar para perigos
tolos. Um deles é o vestibular. Que estúpido que é o sistema de ensino que
coloca os adolescentes a escolher o que vão fazer para o resto de suas vidas! Para
uma minoria ridícula até que dá certo, mas a grande maioria entra, anda de lado
um tempo, finalmente abandona.
Eu
ouvia Cascavelletes e tinha cabelo comprido. Usava macacão de brim e botinhas
militares. Andava de bicicleta o dia todo pelos morros em Porto Alegre,
sozinho!!! Um amigo me emprestou a fita cassete com a capinha de xerox. Levei
para casa e ouvia uma vez atrás da outra aquelas maravilhas, deitado no chão da
sala, no escuro. Eram letras sensacionais, exprimiam meus desejos da forma mais
clara possível e ainda tinha uma melodia que me agradava!! Punk rock!! Masturbação,
estudos obrigatórios para o vestibular, desejos de arrancar a roupa da gostosa
e cair de boca ainda no bar, matar o rival que “ganha” as gurias, surf, estupro
com carinho, etc. Enlouqueci com aquela fitinha. Duas semanas depois meu amigo
exigiu o cassete de volta e por sorte eu já tinha ouvido umas 4000 vezes a fita
toda e decorado minhas preferidas. Claro que, um sujeito assim, atarantado com
tantos pensamentos desviantes, jamais faria uma escolha adequada. Eu escolhi
Engenharia Mecânica.
Eu
até que era bom nesse negócio de vestibular. Me inscrevi só na UFRGS, porque era
grátis e eu ainda queria acabar meu curso técnico em mecânica, era divertido e
prático. Naquele tempo o vestiba era em duas etapas: um provão e umas provas
específicas. O provão era para eliminar pobres! Só ficava a nata, quem estudou
em escola pública já nem precisava aparecer para encher o saco nas provas
seguintes. Como eu frequentei escola pública e não estudei nada, até me
surpreendi por ter passado no provão! Nas específicas resolvi estudar. No dia
anterior a prova de matemática eu olhei o caderno do terceiro ano do segundo
grau. É que para a Engenharia tinha mais peso a matemática. Funcionou, passei 62°
lugar para Mecânica. Fui o único da minha família que passou de cara no
vestibular, foi um assombro para todos, porque eles me consideravam meio burrão.
Adivinhe? Larguei o curso, fui viajar pelo mundo e quando voltei tentei
retomar, mas não funcionou, eu não gostava daquilo. Fiz outro vestibular e passei
em sexto na UFRGS, agora para Educação Física.
Lá
pelas tantas, acho que eu estava no meio da faculdade, minha irmã Betânia engravidou
e ia ter o nenê. Ela avisou que ia ser uma menina e seria chamada de América!!!
Que horror!!! Eu vou chamar de Mariazinha, gritei! A guria nasceu toda torta,
parecia o Quasimodo com a cabeça do ET, um horror!!! A mariazinha era uma
américa mesmo, feia que dava dó!! Eu fui olhar no hospital já preparado para
falar algo como “que bonitinha!” Mas, ao olhar por sobre o berço, não consegui
ser hipócrita e saiu: “Que... que... compridinha!” Mas um sentimento muito
estranho se apoderou de mim naquele momento. Eu, por alguma razão inexplicável,
precisava ajudar a cuidar daquele serzinho medonho e fedorento.
A
América foi crescendo e sua simples presença me emocionava. Eu era personal
trainer e até ganhava um dinheiro legal para quem ainda nem era formado e
morava com a mãe. Então, aquela nenezinha feia passou a ser o foco das minhas
gastanças e eu comprava tudo que podia para agradá-la. Na faculdade, ficava
esperto para o que seria melhor para aquela idade e saia correndo da aula para
a loja comprar o que o professor recomendava. Bolas, legos, triciclos,
bicicletas, programas de computador e até uma máquina de fotografia de verdade
ela ganhou. Ela me gratificava com muitas risadas, conversas, sorrisos e olhares
de matar qualquer queixo duro. Aos poucos, comecei a olhar aquela criança e
achar linda. Com um ano de idade ela cantava músicas inteiras!! Não estou falando
de atirei o pau no gato, mas de Estrela Estrela do Vitor Ramil. Mal chegava da
casa de minha irmã e vinha me contar histórias do Teletubies, programa que eu
nunca tinha visto, mas ouvia com paciência e interesse as aventuras do Thinkie
Winkie ou da Pô. Rolos e rolos de filme gastei tentando captar algum sorriso
melhor, sabia que as crianças crescem, ficam adolescentes e te acham patético.
Eu nunca mais veria aqueles sorrisos. Levei-a para passear várias vezes, nas
praças, no rio Guaíba, admirar por do sol, jogar pedrinhas na água, conversar
com cachorros na rua e cheirar flores nos quintais dos vizinhos. Ela gostava!
Curiosamente, as mesmas coisas eu repeti com sua avó, Bebel, que a agradavam
igualmente perto do fim de sua vida.
Fui
morar em Florianópolis e lá fiquei por dez anos. Me perdi um pouco da América.
Uma ocasião até ela me mandou um email, questionando minha ausência. Prometi
resposta, mas até hoje não soube explicar. A complexidade da vida é muito
grande para um email. Eu e ela, de fato, crescemos na ausência um do outro, nos
afastamos um pouco.
América
seguiu sua trajetória de estudante com brio, nas melhores escolas que o
dinheiro poderia pagar em Porto Alegre. Filha de dois advogados e neta de outros
dois, todos os quatro ilustres, ela escolheu direito quando chegou naquela hora
de preencher o formulário do vestibular. Claro que ela passou, o concurso da
UFRGS é cuidadosamente planejado para referendar os melhores estudantes do
Anchieta e afins nos primeiros lugares. Na minha opinião, se é pública, deveria
ter vagas para todos, ou sorteio, vestibular é uma forma evidente de
privilegiar os já privilegiados, tanto social como geneticamente. Um grande
amigo meu da faculdade, o Rodrigo, era engraçadíssimo, ríamos muito e nos
dávamos super bem. Uma vez ele me contou que tinha tirado primeiro lugar na PUC
no geral e primeiro lugar na Engenharia Civil da UFRGS. Era mais uma anchietano
a arrasar a concorrência. Cursou os dois, mas depois de um tempo largou a
informática da PUC e ficou só com a Engenharia. Foi mais ou menos o que minha
sobrinha fez. Ela passou em sexto lugar para direito na UFRGS e em primeiro
para Letras na PUC. Vai cursar as duas, mas garanto que daqui a pouco larga a
letras.
Trocamos
poucas palavras desde que voltei de Florianópolis. Agora ela não é mais uma
nenenzinha que canta Vitor Ramil, tem algumas opiniões e ambições que são bem
diferentes das minhas. Tu vês, caro leitor, garanto que ela nem ouve 4000 vezes
Cascavelletes e seus estupros com carinho! Que absurdo!! Ela não é como eu
queria que fosse, mas ela é um amor. E, puxa, agora ela tá uma gata! Super linda,
tem até facebook e viaja para o exterior sozinha! Até com o nome me acostumei! As
crianças crescem, se tornam adolescentes, saem dos ninhos e voam, como nós
fizemos. Mas, quando é eles, a gente fica só olhando, angustiado. Ela voa para
onde quiser, mas, como em todo o período que eu acompanhei sua vida, me cabe aceitá-la,
admirá-la e amá-la como ela é. Agora te desmarca, América...
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