Conheci o Nélson através de sua filha, ela era minha colega
na ESEF. Como eu ia sempre de bici para as aulas, ela um dia se convidou para
conhecer minha oficina. Para evitar mal entendidos, foi logo avisando que
levaria junto seu pai, que também era fanático por bicicletas, como eu. No dia
marcado eles apareceram numa caríssima bicicleta americana de dois lugares, uma
tandem. O Véio vinha atrás, saquei na hora. Fiquei felicíssimo, não só pela
oportunidade de ver, tocar e andar em bicicleta tão especial, mas por conhecer
o cara, que também é muito especial. Ele é coroa, tem 58 anos. Ficou cego aos
33, com uma doença degenerativa. Ainda trabalha, apesar de aposentado. Ele era
funcionário concursado do “tribunal” (sei lá que tribunal!) quando ficou
doente. Passou para a função de telefonista com o avanço da cegueira e ali se
aposentou. Fez um curso de massoterapeuta na ESEF na década de 70, para
melhorar o tato. Hoje ele é massagista. Além disto é presidente da Associação
dos Cegos do Rio Grande do Sul (ACERGS) e um atleta de corrida! É um herói, te
dás conta?!
Bueno, o cara e eu saímos algumas vezes para andar de bici
juntos. Chegamos a ir até o Lami, até planejamos uma viagem a praia. Eu adorava
“dirigir” aquele “caminhão” finíssimo enquanto ele gostava que meu alcance era
muito maior que o das filhas dele. Para ele ir “vendo” também os lugares belíssimos
por onde passávamos eu ia irradiando a paisagem. Quando voltávamos dos
passeios, me impressionava muito a perfeição do relato que ele fazia para
esposa, sem esquecer uma palavra do que eu tinha dito e ainda acrescentando
detalhes de aromas e do estado dos pisos das estradas por onde nós havíamos
passado. Quando a faculdade apertou eu não conseguia mais tempo nem para
bicicletiar sozinho, quanto mais com o Seu Nélson. Ele arranjou outros olhos
para guiá-lo, passou a correr a pé. O tempo passou e eu, sem querer, me afastei
do amigo.
Dia destes ele me liga, era uma sexta à noite. Me convidou
para acompanhá-lo numa corrida no sábado à tarde. Seu guia, que era o sujeito
que deveria ver, não viu um hidrante e machucou o joelho. Isto aconteceu dois
dias antes da rústica dos 90 anos do Grêmio. O Nélson tinha treinado um monte
para esta competição. Tinha até prêmio em dinheiro para a categoria dos
deficientes visuais. Ele queria muito correr, estava bem motivado e preparado.
Não pelo dinheiro, claro que não, mas pelo símbolo que a premiação representava
para a categoria. Eu, muito contente e realmente honrado pela lembrança,
aceitei na hora o convite.
No outro dia estávamos lá. Era uma festa enorme, com muitas
bandeirinhas e vendedores ambulantes. Tinha muita gente se acotovelando pelo
pátio da entrada do estádio. Corriam para lá e para cá se aquecendo para a
corrida. Além disso, tinha uma música muito alta e um cara animando os atletas
num alto-falante. Logo que chegamos, fui encarregado de procurar o guichê dos deficientes
visuais para fazermos nosso registro. No meio daquela multidão tremenda,
daquela barulheira e entre tantas filas, de quinhentos guichês diferentes das
várias categorias, não era uma tarefa muito fácil apontar o caminho. Mas não é
que o véio cego me acha um amigo, também cego, mal a gente entrou no pátio, no
meio daquele baita fuzuê! Não deu vinte segundos de animada conversa e
encontram ainda outro amigo cego! Um minuto depois os três já tinham achado seu
próprio guichê, sem a menor necessidade da ajuda de nossos olhos. Nós, os três
patetas que acompanhavam, nos olhávamos atônitos, impotentes e inúteis. Com
aquela balbúrdia toda, fiquei admiradíssimo com a capacidade do meu guiado:
Além dele ter me orientado para o meu registro, ao invés de ser ao contrário,
ainda tinham amigos dele gritando em volta de nós para que ele deixasse algum
outro ganhar desta vez! Fiquei pensando que talvez eu não tivesse o preparo
suficiente para acompanhá-lo.
Corremos. Eu servia só para ver o caminho, segurava uma cordinha
numa ponta e ele na outra, a estratégia de corrida era toda dele. A largada foi
uma loucura, com todas as categorias juntas. Ele mandou dar o máximo nos
primeiros cem metros para se livrar da massa que só vinha para brincar. O véio
era muito corajoso. Dava passadas largas e confiantes e ia abrindo espaço na multidão
com os braços. Tu já tentaste correr de olhos fechados? Eu já, lá na ESEF, dá
um medo enorme, uma baita insegurança. Isto que era numa pista plana, sem
buracos ou ondulações e sem ninguém para atrapalhar. Imagina correr cegamente,
numa rua de paralelepípedos e no meio de um estouro de manada! Ele corria forte
mesmo, mas não tanto que eu não conseguisse acompanhar. Só na curva do Parcão,
quando começamos a voltar para a Azenha, podemos avaliar nossa posição na
corrida conforme íamos passando os outros cegos que vinham em sentido
contrário. Percebi que estávamos na liderança, era só agüentar o ritmo. Foram
13 km, todo tempo ele me orientou sobre o que deveria fazer.
Ganhamos, para minha surpresa, primeirão, com direito a
pódium, ovação, um enorme troféu e cheque! Isto que na nossa categoria tinha
uns garotões na casa dos vinte, vindos até de outras cidades. Ele queria me dar
metade do dinheiro, não aceitei. Negociei com ele uma massagem e uns dias de
tandem emprestada. A massagem ele me fez no mesmo dia quando chegamos na sua
casa. A super tandem eu peguei várias vezes, nos dias seguintes. Levei umas
colegas da ESEF, umas do Pós, meus alunos grandes o suficiente para alcançar os
pedais e até uma professora que era minha aluna de personal. Um cada dia. Todos
adoraram a experiência, naturalmente!
Tu conheces alguma coisa mais altruísta que guiar um cego à
vitória? Eu sou mesmo um amorzinho, não acham?
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