Numa
dessas últimas feiras do livro de Porto Alegre, estava eu a fuçar naqueles
balaios de ofertas de cinco reais, despreocupadamente, nunca tem nada bom
naquelas caixas. Mas igual, como todo mundo, examinava as lombadas deixando o
fluxo de pensamentos aleatórios me guiar. Lá pelas tantas acho um Alain de Botton
novinho, examino e está inteiro, o copyrights é de três anos atrás. Confiro com
o vendedor e, sim, está certo o preço, cincão. O título acho que explica o
encalhe do livro - Religião para ateus. Ser ateu é uma raridade e religiosos
encontram esse título como a lesma encontra o sal, melhor evitar. Mas, como sou
ateu de carteirinha e gosto muito do que já conheço do Alain, paguei e fui
embora meio rápido para o livreiro não ter tempo de dizer: ah, não, péra!
Ateus
são pessoas diferentes de agnósticos. O agnóstico não vê relevância em
responder se existe ou não uma força superior, uma divindade criadora e
cuidadora, portanto não se faz a pergunta. Ou acredita que é uma pergunta
impossível de ser respondida, além da razão humana, por isso não é pertinente,
nem precisa ser feita. O ateu, ao contrário, se perguntou e se convenceu que
não existe nada no além, estamos sós no universo, por nossa conta mesmo. Na
verdade, um ateu, como eu, acha a crença em deus uma tolice total, uma muleta
metafísica, uma criancice: Não existe nenhum amiguinho imaginário, nenhum papai
do céu vai te ajudar nunca, te vira! Teus familiares morreram mesmo, estão sendo
comidos por bactérias no caixão e tu nunca mais vais vê-los, aceite o fato. Ateus
adultos abdicam de consolos bobos como ursinhos de pelúcia para dormir. Não tem
céu, nem inferno tampouco. Um ateu assume resignado suas cagadas e acidentes,
não é um deus te dando uma lição! Só mais um substantivo masculino, deus não
tem letra maiúscula. De formas que as religiões são um verdadeiro mistério para
um ateu. Como alguém sadio da cabeça perderia algum tempo ou energia se
dedicando a algum culto ao sobrenatural? Alain de Botton nos dá a resposta no
seu livro. As religiões são produtos culturais, cada cultura tem a sua. Dentro
do seu contexto, faz todo sentido, mas, aos olhos dos outros que vivem distante
daquela sociedade, é no mínimo bizarra. No entanto, todas as religiões tem
pontos em comum que são muito acolhedores para qualquer ser humano. Todas
organizam encontros diários ou semanais. Todas costumam entoar canções quando
juntos. Todas incentivam a ajudar seus próximos. Todas tem um calendário de
comemorações que relembram seus valores. Essas iniciativas contribuem
decisivamente para que a comunidade fortaleça seus laços sociais e conserve sua
unidade. Alain de Botton, ateu militante, ensina que temos muito o que aprender
com as religiões e deveríamos seguir seus bons exemplos.
Quando
estava na faculdade, achava tudo uma festa. Nos víamos diariamente e
celebrávamos a vida com alegria. Organizavámos festas quase toda semana e
sempre tocávamos e cantávamos juntos. Nós nos ajudávamos no que podíamos, desde
o dinheiro para a passagem do ônibus, lanches, trabalhos de alguma cadeira,
estudos para as provas ou arrumar uma namorada. Eu achava aquela comunidade uma
maravilha sem males e os de fora não sabiam o que estavam perdendo! A ESEF da
UFRGS era minha religião e eu botava muita fé nela. Completamente laica, nunca
ouvi falar em outra fé por lá, no entanto sei que quase todos tinham alguma
crença do lado de fora da universidade. E eram as mais diversas! Eu me
esforçava para atrair e reunir todo grupo para nossas celebrações e não foram
poucas as vezes que organizei festas embaixo do flamboyant florido na frente da
garagem dos meus pais. Aquilo me deixava sempre muito feliz. Nesse sentido, eu
seguia as orientações de Alain de Botton antes mesmo dele ter escrito seu
livro. Mas, depois de sair da faculdade, fui perdendo o contato com os colegas
e os laços sociais desapareceram. Minha “religião” acabou.
Minha
irmã mais velha sempre gostou de viver em grupo. Sempre participou de corais,
grupos de igreja, grupos de poesia ou simplesmente amigos de bar. Se esforça
para manter vínculos afetivos importantes durante décadas e não mede esforços
para isso. Um dos grupo que ela está engajada atualmente é de canto. O que as
une, quase todas são mulheres maduras, é o prazer em cantar. Parece pouco, mas
é o suficiente para uní-las de uma forma consistente. Se reúnem semanalmente para
ensaiar, verdadeiras papa-hóstias do grupo e, obviamente, pela alegria dos
encontros, todas acreditam que fazem parte de um todo maior. O grupo Sol de Si
é vibrante e espiritualmente pleno. Sempre me sinto bem observando a fé das ditosas
beatas ao grupo, irradiam alegria! Essa semana, organizaram uma festa na
garagem da casa dos meus pais em Porto Alegre, como eu e minhas irmãs
costumávamos fazer há 20 ou 30 anos. Me convidaram para celebração. Cheguei antes,
faceiro com o convite e ajudei um pouco na organização do espaço. Alguém me
mostra uma foto da gente arrumando a garagem para a festa e vejo aquele senhor
de cabelos brancos, apertado numa camiseta polo, com um tronco massudo, não de
músculos, mas de graxas, suando, perfeitamente integrado aos outros veteranos
personagens da cena. Não me assusto nem me choco, só me resigno serenamente, aquele
senhor estranho do retrato sou eu.
A
festa foi marcada para às 19:30 e, em ponto, essa foi a hora que os convidados
religiosamente começaram a aparecer. Bem diferente das festas da juventude que
começavam a meia noite, agora ninguém precisa provar mais nada para ninguém,
mas precisamos todos dormir bem e cedo. As músicas vão se sucedendo noite
adentro. Desde Latino, Sidney Magal e trilhas sonoras de velhas novelas como
Estúpido Cúpido e Saramandaia, até Raul Seixas, Blitz e Rita Lee, passando por
Gloria Gaynor, Beatles e Bee Gees. Acho todas boas, parece que estou ouvindo
minha vida toda de novo. Me encaixo perfeitamente na festa e meu corpo se
embala junto com o resto do povo. Logo estou viajando no tempo, fora as
luzinhas coloridas girando no teto e os corpos experientes, tudo é igual. Vi êxtase
eufórico, gozo, júbilo e regozijo. Vi beijo na boca e olhares apaixonados. Vi
homens de braços cruzados nos cantos, eu inclusive, mulheres dançando animadas
em círculo. Vi hustle e todo mundo cantando e dançando junto. Estava todo mundo
celebrando a simples existência. De novo o grupo Sol de Si me surpreende e me
ensina a ter fé e um amor religioso pela vida.
Observando
a festa do grupo Sol de Si, aquele monte de mulher coroa rebolando ao ritmo do
Abba, começam a surgir pensamentos machistas na minha cabeça. Aquela eu comia,
aquela também, aquela não. Mulher cinquentona é tudo de bom. Todas já passaram
por diversos relacionamentos, já não tem expectativas de encontrar principes
encantados. Todas já passaram por diversas dietas e cirurgias, seus corpos já não
lutam pela ilusória beleza e nem procuram algum Adonis perfeito. Até eu e meu
tronco massudo posso estar no páreo! Todas já não tem preocupações de gravidez
indesejada. Todas já pagam suas contas com relativa facilidade sozinhas. São
atraentes, charmosas, cheirosas, gostosas, bonitas e inteligentes e tem muitas
histórias para contar. Todas já estão no “mode” tô viva, me comando e foda-se. Ou
seja, põe os homens em pânico.
Estou
ali na festa olhando as bundas que passam e deixando o fluxo de pensamentos aleatórios
me guiar, exatamente como quem examina as lombadas de livros procurando uma boa
oferta acessível. Como um jacaré que pacientemente espera imóvel a presa passar
perto o suficiente, estou pronto para o bote machista. Eu quero, estou excitado,
desejante. Mas, em pânico. Os pensamentos atrapalham minha caçada, maldita
consciência. Toca Help, dos
Beatles. I'm not so self assured. Now I find I've changed my mind and opened up
the doors. Se fizer isso para saciar meus apetites de homem,
vou possivelmente me queimar no grupo todo. Já estou quase cinquentão e a mulher
vai estar com uns 50 anos de bagagem emocional também. A negociação vai ser
densa e tensa. Posso sair machucado ou pior, machucar alguém. Agora me considero um feminista. Estrategicamente,
recuo a tropa, saio de fininho da festa e resolvo escrever para elas, me
declarar. Não posso dizer na cara: olha, vamos trocar carícias íntimas e
melecas corporais de forma lúdica e sem fins reprodutivos? Tenho que começar de
mansinho, falar do gato que subiu no telhado. Acho que já sei como começar a
conversa: Tu és agnóstica? Li um livro, muito interessante, do Alain de
Botton...
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