Bebel
me convidou com umas duas semanas de antecedência: “Estive na casa da
Riachuelo, os figos estão quase bons para doce. Tu vais comigo daqui uns dias ajudar
a colher?” Ora, claro, aquela casa era um lugar super interessante que eu não
tive muito acesso. Me alertou para as dificuldades, teríamos que por roupas de
manga comprida, touca e luvas, porque a figueira causa muitas coceiras. A
proposta me pareceu bem aventuresca, eu tinha uns 10 anos e aceitei na hora. Minha
mãe e eu tínhamos muitas afinidades, se armar para enfrentar a natureza era uma
delas.
No
dia combinado, lá fomos nós, preparados e cheios de sacolas e bolsas para
trazer a produção. Caminhamos Riachuelo afora até o 421, minha mãe ia relembrando
os vizinhos e os comércios que costumava frequentar. Sua casa de infância estava
toda fechada, como muitos outros sobrados do centro pelos quais passamos,
estavam sendo trocados por pequenos edifícios residenciais. Nossa caminhada
pela rua foi cheia de lembranças alegres, mas melancólica. Aquele mundo
descrito por minha mãe ja não existia.
A
casa estava há uns tempos sem ninguém morar, depois de alguns anos alugada, agora
estava à venda. Bebel tirou um grosso chaveiro da bolsa e abriu a pesada porta.
A luz do sol entrou e entramos atrás. Subimos a escadinha e um ar frio nos
cercou. Nossas vozes ecoavam nos espaços vazios. Um cheiro conhecido, mas ao
mesmo tempo estranho, com uns longes de mofo, me encheram de curiosidade. Antes
de começar a tarefa, subimos as escadas para o segundo piso segurando no
corrimão torneado, ouvindo as tábuas rangerem. Lá em cima, minha mãe foi me
mostrando cada quarto, comentando quem havia morado ali, o que gostava de
fazer, os costumes de meus tios e avós. Abrimos com dificuldade algumas janelas
já emperradas para olhar a rua e o pátio, arejando os cômodos. Descemos para as
salas, copa e cozinha. Bebel ia relembrando ricas histórias, com objetos e
personagens que não estavam mais ali, mas conseguia fazer com que eu imaginasse
tudo e me emocionasse com os acontecidos. Ficamos por uns instantes em silêncio,
observando a casa vazia. Bebel estava mexida.
Saimos
para o pátio atrás da casa, muros altos, o galinheiro calado, abandonado. Entre
outras frutíferas, a figueira carregada. Vestimos nossa “armadura” de proteção,
Bebel colocou até um lenço no rosto. Passamos uma manhã rodeando aquele pé, trepados
nos galhos. Tiramos muitas sacolas de figo, até que ela ficou satisfeita. Chega,
nem poderiamos carregar mais. Colocamos em mochilas e bolsas, trocamos de roupa e entramos na casa de novo. Olhávamos os figos como se fossem
troféus. Celebramos a difícil colheita como uma grande vitória. Lavamos as mãos
na torneira que primeiro guspiu ferrugem, depois água. Fizemos um lanchinho sobre
a pia, meio na penumbra, com um sanduíche que Bebel trouxera. Minha mãe tinha o
hábito de transformar uma trabalheira em uma grande aventura. Era uma super
amiga.
Fechamos
tudo e saímos carregados, foi a última vez que estive naquele sobrado da Riachuelo.
Logo a casa foi vendida e não pudemos mais entrar. Quando minha mãe chaveou a
porta, selou o caixão da história daquela família, daquele núcleo familiar. Por
essa época, somente minha avó Izar já havia falecido, mas todos os moradores originais da casa tinham se mudado para outros lugares. As paredes
das salas vazias eram testemunhas de uma história, de pessoas, objetos e
eventos passados que nunca mais poderiam ser revividos. Situação exatamente
igual a que vivemos agora na mansão da Rondon. O mundo já deu tantas voltas.
Bebel morreu, meu avô Dante, tios Cyro e Luiz também. Quando agora vou na casa
em que cresci, uma grande melancolia me invade. Fico mexido como Bebel na
Riachuelo. Caminhar pela Rondon é como caminhar numa rua estranha. Meus pontos
de referência foram substituídos por construções mais novas, meu mundo está
sumindo. Na esquina onde havia um armazém, agora tem um shopping! Quando eu era
criança nem existiam shoppings! Fico incomodado olhando minha própria história
que se escoa inexoravelmente. Eu mesmo já sou um velho, sou eu que tento, sem
sucesso, contar para meu filho alguma coisa que vivi ali. Surgem conversas de
vender a casa que agora, afinal, só é usada para almoços familiares. Caminho pelos
corredores da casa com a mesma sensação daquela vez na Riachuelo, uma angústia
de fundo, entro nos quartos vazios visualizando cenas passadas. O ruído da casa
é oco, o cheiro é conhecido mas ao mesmo tempo estranho e também com longes de
mofo, penumbra por todo lado, não se abrem mais as janelas porque emperraram. Os
móveis estão sendo consumidos pelos cupins. Algumas torneiras cospem ferrugem
antes da água. Ainda colho uvas e goiabas, acendo a lareira para fingir normalidade
e dar uma vidinha, mas são os últimos suspiros de um moribundo. Fico um momento
em silêncio refletindo: Aquele núcleo familiar também já não existe mais. Estamos vivendo as últimas colheitas da figueira da família. Não
há nada que eu possa fazer para mudar isso, nem todo dinheiro do mundo mudaria.
A única coisa que posso fazer é serenamente aceitar as mudanças, na rua, na
casa, na família, no corpo e aproveitar os últimos momentos no lar.
É
aterrorizante perceber a velocidade dos fatos. A vida é de uma fugacidade
impressionante. O mundo não para e tu percebes que já estás mais próximo da
porta de saída. Depois que duramente admites tua finitude, começas a te perguntar
se viveste tudo que sonhaste viver. Viveu mesmo ou só trabalhou? Te flagras que
a vida é uma só? Amanhã, como vais aproveitar teu dia? Uma ocasião, no final de
sua vida, Bebel ainda me surpreendeu uma última vez. Comentei como ela havia
vivido intensamente, chamei sua atenção para o tanto que estudou, tantos cursos
concluiu. Ela me olhou nos olhos e perguntou impiedosa: Para que? Amanhã tenho
que trabalhar, mas também, aprendi com ela, sempre me pergunto, para que? Somos
somente um agenciamento atômico, uma centelha de energia que dura não mais que
alguns instantes, logo seremos esquecidos. A vida só serve para ser vivida, não
tem mais nenhuma função nem é ensaio para outras. Viva, porque é só isso aí mesmo!
“Eu
vejo o futuro repetir o passado
Eu
vejo um museu de grandes novidades
O
tempo não para
Não
para, não, não pára”
Cazuza
“Tempo é alguém que permanece
Misterioso impenetrável
Num outro plano imutável
Que o destino desconhece
Por isso a gente envelhece
Sem ver como envelheceu
Quando sente aconteceu
E depois de acontecido
Fala de um tempo perdido
Que a rigor nunca foi seu.”
Jayme Caetano Braun
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