A fauna ensandecida do Ocidente
Uma ocasião, quando adolescente, era o finalzinho da
ditadura, talvez 85, veio a calhar de eu ir ao bar Ocidente no Bom Fim em Porto Alegre. Queria
muito conhecer, mas jamais teria iniciativa para ir sozinho lá. Fui arrastado
por uma de minhas irmãs mais velhas, ela combinou de encontrar alguém. Na
época, era o lugar mais avant-guarde da cidade, era a referência do que havia
de fantasticamente inovador no cenário cultural. Subimos a escadinha, o lugar era escuro e pequeno,
no segundo andar de um antigo prédio caindo aos pedaços, não fiquei nem um
pouco impressionado. As paredes eram pintadas de preto e umas luzes neon roxas
iluminavam o balcão. Como em qualquer bar, não tinha nada para fazer, só sentar,
beber e conversar meio aos gritos, atrapalhados pela fumaça e som alto da
bandinha no canto. Achei um saco, nem beber eu bebia, o bar lotado, todo mundo meio
se coxando e fumando no aperto. Mas precisava ver alguma coisa legal lá,
afinal, todo mundo desejava estar ali e eu estava. Fiquei olhando os
frequentadores, eram muito esquisitos! A fauna presente era variadíssima, como no
bar do Guerra nas Estrelas. Eu tinha uns dezesseis anos e achei todos eles
muito adultos, alguns até velhos. Um casal, sentado numa mesa a minha frente, dividia
uma cerveja e se olhavam sem parar nos olhos com tédio. Porém, de cinco em
cinco minutos, tiravam as línguas para fora e davam uma enorme lambida na
língua do outro. Não era um beijo, era uma lambida mesmo, como se um fosse o sorvete
gigante do outro. Pela primeira vez vi piercings e alargadores de orelhas, beijos
gay, tatuagens e cabelos raspados só de um lado. Era um povo livre,
democrático, de outro mundo, muito a frente de seu tempo careta do Brasil de então, artistas, pensadores,
nunca os tinha visto de dia na rua. Minha irmã apontou alguém e falou seu nome,
disse que era músico. Já tinha ouvido falar do cara, mas não conhecia nada
dele, não me interessou. Finalmente, encontrado o amigo naquela confusão e bebido
um único gole gelado, minha irmã e ele resolveram sair do bar apertado. E eu sai
junto, claro. Eu era um guri super passivo, ia onde mandavam, mas agora estava feliz.
Eu havia estado no inferninho da moda, teria algum status para me gabar na
escola. O ar fresco e puro da noite primaveril nas calçadas da redenção era
muito melhor que o abafamento daquele ambiente fumacento. Mas a experiência me
marcou.
Muito depois, aos vinte anos, ativamente tive a iniciativa
de ir morar um tempo no exterior. Dias antes da Eleição de 89, quando Lula
perdeu para Collor, fui parar em Amsterdam sem querer, não me deixaram entrar
em Londres que era meu objetivo inicial. Peguei meus quatro primeiros aviões da
vida num único dia e estava bem cansado, apesar da euforia da epopeia intergaláctica.
Ao desembarcar, na estação central da cidade, sai caminhando a esmo, procurando
a pousada para dormir. Era uma noite fresca de outubro, outono europeu, e logo
percebi que tinha chegado no bar Ocidente do mundo. O albergue era no bairro da
luz vermelha, me surpreendi com as prostitutas nas janelas. Punks, putas
rebolando só de sutien, cabelos pintados de azul, gays de bigode e quepe como
Freddy Mercury se beijando na boca no meio da rua e todo mundo fumando. Eu
olhava tudo com grande curiosidade, mas fingia normalidade e tentava não
demonstrar espanto, pois eu era um cidadão do mundo democrático depois de ter
frequentado (por quinze minutos, mas valeu) o bar Ocidente na adolescência. Me
senti o próprio Luke Skywalker negociando informações nas esquinas do bairro com
seres tatuados e caudas coloridas.
Passados uns quinze anos voltei ao bar Ocidente, agora de
curioso, por iniciativa própria. Estava andando a esmo pelo Bom Fim, saindo de
uma festa de um curso que fazia a noite e passei na frente do inferninho pintado
de negro. Lembrei da atmosfera de vanguarda e da sensação de estar visitando o
futuro em outro mundo. Subi as escadinhas e encontrei mais ou menos a mesma
cena, escuridão, barulho e aperto. Mas agora achei todos os frequentadores bem mais
jovens do que eu e não vi nada de interessante, não fiquei nem cinco minutos e
sai desapontado. Comentei com um tio o quão decepcionante foi a visita. Agora
eram adolescentes que frequentavam o lugar. Que decadência triste. Meu tio me
alertou que o bar não tinha mudado, agora eu é que era outro. Naquela primeira
visita, a média de idade era a mesma da atual. O mundo não para e muitas noites
frescas já abraçaram meu corpo. A impressão que tenho é que eles ficaram mais
jovens, mas fui eu quem envelheceu.
Muitas voltas deu o mundo e minha irmã do meio arrumou um namorado
compositor. Ele já estava coroa, mas tinha sido um grande personagem da minha
trilha sonora de adolescência. Me agradava o relacionamento entre eles. Uma de suas
canções comparava o Bom Fim com Berlim. Nunca estive em Berlim, mas acredito
que na época que ele compôs, 1987, realmente não era muito diferente. O bairro era
onde se reunia a nata da intelectualidade portoalegrense. Lá pelas tantas na
música ele se refere aos frequentadores do bar Ocidente como uma “fauna
ensandecida”. Essa frase me tocava muito, pois traduzia perfeitamente o que
senti naquela primeira visita ao bar. Infelizmente, minha irmã acabou com o
relacionamento antes que eu tivesse tempo para partilhar com ele minhas
impressões do Ocidente e como sua música havia me preparado para não me
espantar tanto com Amsterdam.
Passados trinta anos da primeira visita ao Ocidente, a mesma
irmã que me levou lá convidou para o teatro. Volto a Porto Alegre numa noite
fresca de outubro, primavera brasileira, dias antes da eleição de 2018, que Lula perdeu
para o golpe. Chegamos bem cedo e podemos esperar tomando um café no foyer. Aos
poucos foi chegando o público e, estranhamente, todo mundo me pareceu muito
esquisito e familiar, apesar de não conhecer ninguém. Minha irmã me disse que o
público desses eventos é sempre mais ou menos o mesmo. Bueno, concluo que ela
mesma é uma das habitués, já os reconhece e com alguns até conversa. Num estalo
me dou conta de onde os conheço: do bar Ocidente! Eram eles, os mesmos
frequentadores, mas agora idosos. Tatuagens desbotadas e cabelos brancos, batas
indianas disfarçando os quilos a mais e moccasins comportados. Distintos
senhores e senhoras, um pouco esquisitos, dificilmente a gente os vê na rua de
dia. São animais noturnos, como as prostitutas de Amsterdam. E noutro estalo
caiu a ficha, estou eu ali no meio de novo, por mais quinze minutos, fingindo
normalidade para não chamar a atenção, mas meio espantado e por dentro
percebendo as voltas que o mundo dá. Eu também sou um bicho daqueles, agora de
cabelos brancos. De tanto conhecer bares, ouvir canções, pedir informações para
gente esquisita, assistir a peças de teatro, fazer viagens e estudos, muitos namoros
e casamentos fracassados, trotar por Amsterdam ou Berlim, eu também sou um dos
esquisitos frequentadores do bar. E também envelheci. A única coisa que não dá
voltas é o tempo, ele é o único que segue sempre em frente, mas permanece
imóvel e imutável.
A peça de teatro que assistimos, O Rei da Vela, era uma
remontagem de um texto de 1933. Apesar de antiga, com poucas alterações nos
nomes a peça ficou atual. Dá até dó de ver que o mundo dá várias voltas, mas as
mazelas brasileiras seguem as mesmas. Ao final da encenação, o experiente ator/diretor
da peça, Zé Celso, de 81 anos, fez um pequeno discurso. Ele lembrou de outros
momentos que esteve em Porto Alegre. Alguns durante a ditadura, como tinha sido
duro. Quando militares paravam a peça de teatro no meio e revistavam a plateia,
coisas do tipo. Mas lembrou que o inverno mais rigoroso também passa e a
primavera vem. E voltam as cores e a alegria. A arte volta também. Ele falou
que aquele momento nosso, ali ao final do espetáculo, de alegria e arte, era
uma primavera. Que os governos do PT no Brasil tinham sido uma primavera para o
país. Que os Negros puderam existir, os pobres estudar, os gays aparecer. O
país inteiro floriu. Falou que Haddad e Manuela são uma primavera também,
lindos e jovens, como a arte, que se renova sempre. Como meu tio fez, Zé Celso
também tentou chamar a atenção para a passagem do tempo e como nossas
percepções das situações vividas podem mudar. Foi bem emocionante ver um
velho experiente tentando nos dar esperança para o segundo turno e para um
eventual governo Bolsonaro.
Não se apoquente, o mundo dará voltas independente do
resultado das eleições e sempre haverá um Ocidente para ir encontrar uma fauna ensandecida pensando e fazendo
um mundo mais colorido e alegre.
Adorei! Que bom que sempre podemos transcender e felizes sair da casinha planejada pra nós por outros! Eu sua humilde irmã mais nova, saí da casinha ao nascer e quero ir em bares intergaláticos se um povo do céu me convidar!
ResponderExcluirRaquel Alfonsin
ExcluirEu ia direto no Oci com a Sabrina na nossa adolescência na década de 80, ficávamos no eixo Oci-Porto de Elis,às vezes trocando de buteco 3x na mesma noite! !! De busão heim!!!!
ResponderExcluirRaquel Alfonsin
ExcluirShow!!! Adorei
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