Competição
e cooperação
Dois
eventos importantes na vida escolar coordenados pela Educação Física ocorreram na
semana da criança e nos levaram a refletir muito sobre a prática pedagógica.
Ambos atraíram a atenção dos alunos com muita intensidade e exigiram muito
comprometimento e esforço físico dos participantes. A diferença fundamental
entre eles foi o foco da atividade que determinava envolvimentos de natureza muito
diferentes. Para os alunos mais velhos, pela manhã, tivemos uma competição, um
campeonato esportivo de futsal. À tarde, para os mais novos, os jogos
cooperativos.
Tanto
a competição quanto a cooperação ocorrem normalmente na natureza. Assim como
formigas e abelhas cooperam entre si para viver em colônias, zebras e leões
competem e somente o mais rápido sobreviverá. Como qualquer espécie, o ser
humano também convive com as duas formas de lutar pela sobrevivência. Compete e
coopera entre si e com outros animais. Porém, é forçoso constatar que, no mundo
natural, nossa espécie tem sido muito bem sucedida. Aparentemente estamos
ganhando uma grande competição entre os seres vivos. No entanto, nossa espécie está
longe de atingir o sucesso de formigas. Se colocarmos numa balança todos os
seres humanos e todas as formigas, elas são muitas vezes maiores que nós. E
mesmo todas as formigas do mundo não chegam perto do sucesso das gramíneas.
Examinemos
um exemplo muito humano: a fertilização do óvulo pelo espermatozoide. Algumas
pessoas veem ali uma grande competição. Milhares de espermatozoides que
carregam os mesmos genes competem para atingir o objetivo e somente um obterá êxito
na fecundação. Aí estaria uma grande prova natural da virtude da competição,
nascemos de uma luta para decidir quem é o mais apto, quem teria mais mérito
para gerar descendentes. No entanto, se estudarmos melhor, veremos que existem espermatozoides
de diversos tipos. Alguns servem como bucha de canhão, abrirão caminho, são os
mais rápidos, mas serão queimados pelo ambiente hostil das trompas, farão
somente um tapete protetor com seus próprios corpos para passagem dos outros. Terão
aqueles que serão guerreiros, são os mais fortes, lutarão contra espermatozoides
de outros machos que porventura tenham ejaculado antes naquela fêmea. Alguns ficarão
para trás propositalmente, são os mais franzinos, formando uma barreira que impede
a passagem de outros genes. Outros ainda, nem tão rápidos, nem tão fortes, nem
tão franzinos, serão protegidos pelos demais para que tenham um caminho livre
para nadar até o óvulo. Podemos concluir por, em vez de uma competição, um
esforço coletivo, uma grande colaboração para que o grupo atinja seu objetivo. Nascemos
de uma grande cooperação e a virtude estaria nela. Perceba que, pessoas diferentes
podem relatar de formas totalmente distintas observando a mesma cena da
fertilização humana. Suas conclusões dependerão muito de suas inclinações
políticas, sociais e culturais.
Voltando
ao campeonato de futsal na escola, é sempre impressionante ver o esforço das
crianças participando da atividade. Querem vencer de todo modo e para isso se entregam visceralmente a atividade. Começam discutindo
para decidir quais times jogarão primeiro, a maioria dos alunos terá que
esperar um longo tempo por sua vez. Também debatem quem entrará no time, fazem
uma “seleção” entre eles, pois somente cinco de cada turma pode jogar por vez e
os outros ficarão na “reserva”. Muitas outras divergências surgem durante as
partidas que provocam acalorada discussão. Se foi falta ou não, se a bola saiu
do campo de jogo ou mesmo de quem seria o direito de iniciar a partida. Um juiz
precisa decidir os conflitos de interesse quando há discordância. Ainda assim,
mesmo com a aceitação por ambos os times da legitimidade do árbitro, existem
brigas com ele sobre as decisões que toma. Os conflitos ocorrem porque o
objetivo de um time é diametralmente oposto ao de outro. Se um grupo atinge seu
objetivo, obrigatoriamente o grupo adversário não pode atingi-lo. Para um time
vencer, outro terá que sair derrotado. Ao final da atividade, alguns saem
felizes, aos gritos de “é campeão” enquanto a maioria sai frustrada, buscando
explicações, culpando uns aos outros pelo fracasso.
Já
nos jogos cooperativos, todas as crianças participam ao mesmo tempo, ninguém
fica excluído e o objetivo de um é exatamente o mesmo do outro. Assim, o sucesso
de um acarreta também o sucesso de todos os outros. Durante a atividade, não há
conflitos e ao final, todos saem faceiros com os resultados.
Aparentemente,
a competição gera exclusão, frustração e conflitos e a cooperação gera
inclusão, satisfação e paz. É claro que só posso descrever as cenas observadas
dentro de minha formação pessoal como professor, outra pessoa talvez observasse
coisas completamente diferentes como no caso da fertilização humana. Dependendo
da perspectiva, até mesmo os esportes podem ser interpretados como uma ferramenta
pedagógica de cooperação. Porém, é tal a importância das competições como valor
moral na nossa sociedade, que tendemos a tornar tudo uma competição e
investimos pesado nelas. Reflita comigo, vamos lembrar alguns fatos: Os maiores
e mais caros prédios, de qualquer cidade, são os estádios de futebol. Repare
que são construções bem ociosas, só são usados uma ou duas vezes na semana. Os
esportes tem espaço garantido no horário nobre das mídias, com diversas
empresas competindo para patrocinar as caríssimas transmissões ao vivo. A maior
sala de aula, de qualquer escola, é sempre o ginásio de esportes, assim como o
material didático mais caro é sempre o da Educação Física entre todas as
disciplinas ensinadas às crianças. Luciano Huck transforma a habilidade de
soletrar palavras ou empilhar copos plásticos em competição nacional para
crianças nos sábados à tarde. Faustão transforma cantar, dançar e atuar em
divertidas competições aos domingos. Promovemos até mesmo concursos de beleza
para decidir quem é a mais bonita ou bonito. Enfim, o entretenimento que é
promovido a população são competições de qualquer sorte. A onipresença das
competições no mundo de hoje, desde os momentos de lazer, até as decisões mais
importantes da sociedade como as eleições, deixa claro que quem tem o poder
quer que elas se perpetuem.
Para
esse professor, a discrepância é tão grande entre os dois eventos observados na
semana da criança no que se refere à paz e harmonia entre os alunos, que precisamos
parar e refletir: porque ensinamos a competição na escola? As respostas a essa
pergunta são das mais diversas. Mas, o principal argumento a favor do ensino
das competições nas escolas é o de que as crianças enfrentarão competições no
futuro, então já devem ir se acostumando. A vida é assim, competitiva, então
teríamos que lidar com isso de uma forma didática. No entender de alguns
adultos, as crianças devem aprender a enfrentar adversários com objetivos
opostos, seguindo regras, obedecendo autoridades e sabendo admitir derrotas com
dignidade e lidar com frustrações. É verdade, mas também enfrentarão o mercado
de trabalho e nem por isso as fazemos trabalhar na infância. Ao contrário, nós
as protegemos o máximo que podemos para terem uma formação ótima sem traumas e sequelas.
Estamos quase conseguindo, através de leis e regras, erradicar o trabalho
infantil. A mesma coisa em relação às doenças. As crianças também enfrentarão
doenças, mas fazemos o que podemos para erradicá-las totalmente. Lutamos para
que as doenças desapareçam das preocupações humanas. Ou, pelo menos, mantemos
as crianças distantes das enfermidades até que tenham condições para se
defender melhor. Não vejo benefícios no ensino das competições, ao contrário,
só vejo males. Veja que nós mesmos determinamos o que as crianças devem
aprender. Porque não determinamos que elas aprendam uma sociedade de
solidariedade, de inclusão, de colaboração, de resolução de conflitos através
do diálogo e do entendimento? Porque temos que ensinar que a melhor forma de
resolução de discordâncias seja um enfrentamento? Acho que temos o dever de
ensinar outras formas de sociedade. Uma sociedade que não se divirta com a
competição e a exclusão, mas com a solidariedade, a cooperação e a inclusão.
No
entanto, a legislação ainda obriga o professor de Educação Física a ensinar
esportes nas escolas, assim como lutas. Os executivos municipais, pressionados
pela união, apressam-se em construir quadras poliesportivas e o material
oferecido para as aulas é na maior parte de esportes. Ainda padecemos da
preocupação do ensinar as crianças a competir. Mas isso não é mais necessário. Tu
não precisas mais catar alimentos no mato, nem caçar javalis. Dividimos as
tarefas e cada um faz só um pouco do trabalho, como os espermatozoides. Uns são
policiais, outros pedreiros, uns fazem o pão e outros plantam o trigo, uns
cuidam dos enfermos e outros ensinam os mais novos. A educação, segurança e saúde
estão universalizadas, ao alcance de todos. Nossa espécie é bem sucedida atualmente
graças à cooperação. Passamos a nos desenvolver muito mais rápido quando
privilegiamos a cooperação. Todos podemos vencer e assim a vida se perpetua
mais facilmente. Atualmente, nem precisamos mais competir com outros animais.
Ou você teve que correr de algum leão ultimamente? Ainda estamos caminhando em
direção à utopia do bem, para todos, todo tempo. Sabemos de antemão que nunca
chegaremos, mas caminhar para esse horizonte nos faz avançar muito. No meu
entender as crianças não precisam trabalhar, nem ficar doentes, nem competir. Se
isso acontecer vai ser um acidente que se lutará para evitar.
Como sempre e nada diferente um texto naravilhoso. E sim devemos busar a inclusão de todos em tudo!
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