Lula Livre
Nos
anos setenta, meu pai recebia mensalmente a revista Scala, de propaganda da
África do Sul. Ele nunca assinou, o governo daquele país mandava gratuitamente,
talvez por ele ser advogado. Era um óbvio esforço sul-africano para criar uma
boa imagem ao redor do mundo. Era uma revista de altíssima qualidade, com fotos
grandes e coloridas, escrita em português. As reportagens mostravam a pujança
econômica e o bem estar social da população, o meio ambiente preservado e as
riquezas minerais e, claro, muitas fotos de negros e brancos convivendo em
harmonia. Mas as notícias que chegavam da África do Sul por outras fontes não
eram nada boas. Depois de uma grande revolta de negros em Soweto em 1976, com
centenas de mortos, meu pai mandou uma carta aos editores pedindo que não mais recebesse
a revista por discordar das políticas do país. A Scala era pura Fake News.
Na
década de oitenta, não só meu pai tentava se desconectar da África do Sul, o
mundo os pressionava para que acabassem com a política de segregação racial
conhecida como “apartheid”, que em holandês quer dizer segregação mesmo, na
cara dura. Havia uma grande resistência da maioria negra que contestava aquele
regime totalitário. Por isso mesmo, prisões, sumiços e massacres de negros ocorriam
a todo instante. Devido aquele óbvio abuso, a situação começou a ficar clara
aos olhos do mundo. Começaram uma série de restrições internacionais ao país
para que mudasse as leis. A ONU sugeriu um bloqueio econômico, muitos países
deixaram de negociar com eles. Houve também um veto na participação de eventos
esportivos como copa do mundo e olimpíadas. Todos os países exigiam vistos para
os cidadãos sul-africanos. Apesar de tudo, a elite branca que colonizara o país
resistia. Prendia e matava as cabeças da resistência.
Um
advogado que defendia os direitos humanos se tornou uma grande liderança entre
os negros que lutavam por igualdade. Exatamente por isso, foi logo preso acusado
de ser terrorista e comunista. Passados vinte anos na cadeia, submetido a
trabalhos forçados e solitária, o governo resolveu soltá-lo, cedendo a pressão
internacional, com uma condição: que ele abdicasse da luta pelo fim do apartheid.
Aquele advogado, então, disse que naquelas condições, preferia permanecer
preso. E ali permaneceu mais sete anos. Jamais trairia seus irmãos e sua
presença no cárcere era muito mais poderosa para a luta pela liberdade do povo que
sua própria liberdade. A lealdade à causa o impediu de fugir do compromisso com
os excluídos. Um grito por sua libertação ganhou voz, primeiro na África do
Sul, mas a magnitude de sua dignidade foi logo sentida além mar. Um grande
movimento internacional por sua liberdade virou notícia. Shows de música que
reuniam os grandes artistas da época atraiam multidões em estádios. Finalmente,
depois de 27 anos, em fevereiro de 1990, o advogado foi solto e dois anos depois
foi eleito presidente da África do Sul. Seu nome era Nelson Mandela e até o Nobel
da paz ele acabou ganhando, humilhando aquela mentalidade tosca e atrasada da
elite branca sul-africana.
Em
junho de 1990, eu já morava em Amsterdam há nove meses, uma gestação. Já falava
inglês e aprendia o holandês. Estava no meu segundo emprego e tinha uma patroa
camarada, ganhava bem e juntava dinheiro. Uma manhã eu caminhava
despreocupadamente pela cidade e vi um grande movimento na Leidseplein, praça distante
um quarteirão do hotel onde trabalhava. Não entendi o que estava ocorrendo. Fui
me metendo na multidão e conversei com algumas pessoas que ali estavam. Mandela
tinha sido solto e tinha vindo para Holanda, ia falar ali na sacada do Concertgebouw,
o grande teatro municipal. Eu era um guri, nem sabia direito quem era ele ou o
que aquela visita significava, mas vi pelo entusiasmo da multidão que era
importante. Demorou e mais gente se aglomerou a minha volta, colocaram faixas
na sacada do teatro: Welkom Mandela.
Nessa foto dá para ver eu de costas bem direitinho ali perto do poste naquele dia...
Viste eu ali?
Agora a praça toda e os arredores estavam
completamente tomados, os bondes pararam de circular. Uma horda de jornalistas
se espremiam na sacada principal do prédio e noutras menores, havia câmeras por
todo lado. De repente, alguém fala ao microfone que a rainha, Nelson e Winnie Mandela
estavam presentes. Foi o que bastou para a multidão enlouquecer. Começaram a pular
e gritar o lema da campanha internacional pela liberdade de Mandela: Freeeeeeeedom,
Nelson Mandela!!!! E era um coro uníssono repetindo aquilo sem parar, a massa
pulava unida sem parar fazendo o chão tremer. Na sacada, entraram ele, sua
esposa, a rainha da Holanda e outras autoridades. Eles abanando e a multidão,
em júbilo, gritava ainda mais alto: Freeeeeeeeeeeeedom, Nelson Mandela!!! Freeeeeeeeeeeedom,
Nelson Mandela!!! A rainha falou em holandês, lembrou que tinham sido também os
holandeses que colonizaram a África do Sul, mas que a Holanda não concordava
com o apartheid. Foi breve, agradeceu e comemorou a presença do casal sul-africano,
foi aplaudida e passou a palavra. Me chamou a atenção que, quando Mandela
começou a falar, em inglês, não se escutava um pio da multidão em total
respeito. Basicamente, Mandela disse que a luta continuava e que agradecia a acolhida
e o esforço feito pelos holandeses para conquistar sua liberdade. Ao terminar,
Mandela foi aclamado de novo, com gritos e pulos. E eu ali no meio de tudo,
atônito, mas gritando e pulando também! No outro dia, o jornal que minha patroa
assinava, DE TELEGRAAF, noticiava que mais de trinta mil pessoas haviam
testemunhado aquele momento e que tinha sido o maior ato público que a cidade
já vivera. Depois daquele dia, logo saí de Amsterdam, eu estava pronto e podia
nascer para o mundo e para a militância. Me tornei um fervoroso admirador de
Madiba e sua luta. Em 2013, o Wikileaks viria a revelar que os Estados Unidos interferiu
na África do Sul e determinou a prisão de Mandela e a manutenção dele no
cárcere por tanto tempo para controlar o ouro e os diamantes produzidos naquele
país.
Nessa outra foto dá para ver eu de frente ali perto daquele poste na direita...
Viste, né? Sim, era eu mesmo!
Situação
não muito diferente vive agora o Brasil. Também vimos ser preso nosso grande
líder que luta por melhores condições de vida para o povo. Também a magnitude
de sua dignidade está sendo sentida além mar. Também foi a intervenção direta dos
Estados Unidos, revelada pelo Wikileaks, que o colocou na cadeia. Também foi
por recursos minerais, no nosso caso o petróleo, que os americanos querem para
si e não para dividir com os pobres da nação. Também ele não fugiu do país e segue
leal ao compromisso com os excluídos. Também ele foi indicado ao prêmio Nobel
da paz. O nome dessa liderança dos direitos humanos aqui no Brasil é Lula e o
grito que está sendo ouvido aqui, mas começa a tomar proporções internacionais
é: Lula Livre!! Se não o matarem antes, o que é bastante provável pois é
prática americana comum, Lula será liberto por pressão internacional e voltará
a ser presidente do Brasil e Nobel da paz humilhando essa elite tosca e
atrasada que o persegue há quarenta anos. Podem fazer a Fake News que quiserem,
mas, com o tempo, só cairão num vergonhoso ridículo, como a revista Scala.
Belo texto.
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