O final feliz do
velho professor
Guillermo
arrumou seus dois últimos charutos enquanto tomava um café preto, cada um
dentro de sua própria latinha. Gostava de fumá-los, não eram havana, mas tinham
boa qualidade. Gostava do cheiro, do gosto, da sensação aveludada da fumaça rolando
na boca e descendo a garganta. Um pigarrinho o acompanhava há anos, mas era o
preço a pagar por aquele prazer e a reflexão que proporcionavam. Freud e Fidel
lhe dariam razão. Os acomodou no bornal junto a um cantil com água. Pensou em
levar um fiambre para lanchar, talvez um pão com salame, mas não ia precisar,
eram só umas seis horas de caminhada até lá, teria condições de chegar bem.
Pegou o cachimbo de raiz de nogueira e algum tabaco numa puída boceta de
borracha, poderia ir dando umas pitadas pelo caminho. Olhou aquele lindo objeto
que havia comprado em Amsterdam, a madeira brilhava como recém envernizada,
mesmo depois de tantos anos. Só aí lembrou do isqueiro, velho companheiro que
conseguia manusear no escuro, ainda acendia de primeira. Olhou sua aparência já
bem polida pelo uso. Ainda encheu uma garrafa de bolso com seu melhor conhaque,
seria bom para encorajar. Na porta, deu uma boa olhada para tudo, seus discos,
seus livros, retratos de momentos felizes, sua história toda ali naquela
pequena casa. Bateu a porta mas não chaveou. Facilitaria a vida de quem viesse
depois. A manhã estava fresca, era verão, mas o tempo estava para chuva.
Caminhou pela vila que ainda dormia, o sol levanta bem cedo nessa época do ano.
Não sabia as horas, mas pouco importava. Foi passando pelas casas dos vizinhos
e relembrando acontecimentos, amigos, amores, festas, brigas, sexo. Uma vida
inteira ali tinha vivido, mas gostou de não encontrar ninguém, nenhum chato
para cumprimentar. As únicas testemunhas de sua saída foram quatro andorinhas
no fio de luz. O cheiro de jasmin tomava as ruas, encheu os pulmões com aquele
agradável e úmido odor de aurora. Caminhava decidido e aquele perfume o
alegrou.
Parou um
instante no meio da estrada de chão, tirou do bornal o cachimbo e a boceta,
preparou o tabaco e acendeu. Seu pai não fumava, mas por alguma razão, aquele
gesto o fez lembrar dele. Talvez exatamente por isso, ele não gostava de drogas,
de experimentar estados alterados da consciência, ao contrário de Guillermo. Seguiu
caminhando. Pensou em Mario Quintana e o poema espelho: “Lentamente, ruga a
ruga”. Todos os atritos que viveu com aquele velho avarento, as mágoas que
ainda carregava consigo apesar dele morto há tanto tempo. “E os teus planos
enfim lá se foram por terra”. As últimas vezes que se olhou no espelho se viu
tão velho, os olhos opacos. A memória de sua mãe já bem mais distante, o
carinho que tinha por ela, os arrependimentos das coisas que disse. Apurou o
passo para sair logo da vila e daquele passado que o assombrava. Chegou a boca
da trilha bem a tempo de ver ao longe o primeiro carro vindo pela estrada e se
alegrou com o pensamento que não pegaria a poeira levantada por ele.
A trilha era
estreita e escorregadia, cheia de pedras e raízes. Ali começava a verdadeira
jornada introspectiva, ele sabia que muitas outras memórias viriam. Caminhava com
o cachimbo a altura do peito, vez por outra o levava até a boca, até que se
apagou. Parou para guardá-lo e tomar um gole do cantil. Também tomou um gole de
conhaque para amaciar as juntas. Deixou a garrafinha no bolso das calças, mais
a mão, percebeu que ia precisar mais seguido. Chegou ao pé da montanha e
começou a subir. Guillermo ofegava, mas era normal para um homem de sessenta
anos. Os pensamentos o acompanhavam, flutuavam aleatórios na mente. O esforço o
fazia tropeçar em alguns muito antigos, mas a maior parte do tempo remoía os mesmos
dos últimos dias. Estava velho, mas ainda longe de se aposentar. Se via como um
professor medíocre. Já tinha tido seu orgulho acadêmico, preenchia seu currículo
lattes com todos os cursos e palestras de que participava, mas agora não via
mais sentido naquilo tudo que estudara. Será que tocou alguém em todos esses
anos de docência? Será que ensinou alguma coisa? Já não tinha certeza,
acreditava que não. Sua profissão passou a ser só mais uma cruz para carregar. E
todos os livros que já tinha lido, de que adiantaram? Talvez somente para
chegar até ali. Os ignorantes certamente são mais felizes. Camus conseguiu formular
o problema que agora compreendia tão bem: o suicídio é a única questão filosófica
que realmente importa. Pensou que tinha achado a resposta e caminhava feliz com
a conclusão à que chegou.
Caminhava já há
duas horas e sentiu fome, mas nada tinha para comer. O esforço o deixava
sensível e seu cérebro reconstruiu na sua boca o gosto do salame que deixou sobre
a mesa, chegou até salivar. Parou para sentar-se um pouco numa pedra à beira da
trilha. Tomou um pouco de água e conhaque. Recuperou o fôlego da subida e abriu
delicadamente, com muito cuidado, a latinha do primeiro charuto, o acendeu com
calma e reverência. O segundo deixaria para o fim, para as reflexões finais. O gosto
daquele fumo estava muito melhor do que jamais tivera. Refletiu que era o
cansaço, realçava o sabor, apreciou muito aquela gostosa sensação. Tantos pensadores
que admirava usavam o charuto como inspiração também. Saboreou aquele instante
com enlevo, percebeu que era um momento feliz. Lembrou da paciente que insinuou
sobre o prazer que Freud sentia em chupar um charuto. Conseguiu até rir sozinho
na floresta e se engasgou com a fumaça. Todas as mazelas familiares e suas
interpretações lhe subiram a consciência. Os significados, as que tinha
sublimado e as que nunca tinha superado, estavam todas ali junto com ele naquela
hora. Guillermo era um homem carregado de história, como qualquer homem de
sessenta anos, mas aquela bagagem emocional já não pesava nas costas. Olhou
para o céu e para as plantas a seu redor, sentiu-se plenamente integrado com o
meio ambiente. A natureza era absolutamente indiferente a ele e suas
inquietações. Retomou a caminhada sorridente.
A lembrança da
sagacidade da paciente de Freud, sua malícia e agudeza de espírito o fez voltar
no tempo para junto de suas mulheres. Puxou a garrafinha de conhaque do bolso
traseiro das calças e tomou mais uns goles para comemorar. Ah, aquele era uma
assunto bom de relembrar. Guillermo não era nem bonito, nem feio. Era médio, todo
médio, na altura, no pinto, no intelecto. Mas para com as fêmeas ele tinha algo
que o tornava acima da média. Ele havia conseguido seduzir mulheres muito mais
inteligentes, ricas e bonitas que ele. Conviveu com verdadeiros lumiares. Creditava
a elas muito de seu tirocínio. Com cada uma aprendeu um pouquinho. Quanta risada,
quanto prazer, quanto gozo obteve com elas. E o tanto que ofereceu também,
tinha consciência disso. Elas também aprenderam e gozaram com ele, teve muita
sorte na vida nesse quesito. Transar na praia ao luar, chorar lendo um texto
juntos ou assistindo a um filme, saborear uma boa refeição lavando nus a louça,
comer sorvete no umbigo. Das experiências humanas de sensualidade, cumplicidade,
companheirismo, amizade, tinha experimentado tudo. Cada uma foi passando na sua
memória, como num desfile de misses. Cada uma melhor que a outra, cada uma com
sua peculiaridade, cada uma com seu sabor diferente. Da magrinha crocante a obesa
suculenta, da doutora em filosofia a empacotadora de supermercado, todas tinham
sido muito importantes em sua vida. Porém, nenhuma lhe deixou tentado a firmar
um compromisso de vida inteira. Algumas tinha feito chorar ou agido como um
machista clássico, mas, no computo geral, mais tinham o amado do que odiado. Se
alegrou muito com esse pensamento, olhou para cima e viu o cume do morro.
Faltava pouco
agora, Guillermo já estava bem cansado. A floresta se abriu com bem menos
árvores na altitude da serra, uma linda paisagem se descortinava em cada curva
da trilha. A vila lá embaixo parecia bucólica vista dali, sem todas as
imperfeições, desgostos e vícios que sabia que lá tinha. Parou um pouco para
apreciar o panorama, abriu o bornal e catou o cantil. Tomou todo o resto de
água que ainda havia. Pegou a garrafinha e também acabou com o conhaque, assim
daria tempo de fazer o efeito desejado dali a pouco. Ajeitou o tabaco no
cachimbo pilando com o dedo e acendeu. Deu umas baforadas observando suas
linhas arredondadas e belas e seguiu para cumprir seu destino. Numa pedra
solta, distraído olhando para o vale lá embaixo, torceu o tornozelo e caiu. Bufando,
se ajeitou no chão como dava, ralou a mão e o cotovelo, seu tornozelo doía muito,
menos um pouco do que doeria se não tivesse tomado o conhaque. Conseguiu
levantar e deu uns pulinhos num pé só. Mas era um esforço maior que conseguia
fazer. Faltavam poucos metros, mas talvez não conseguisse. Ninguém apareceria
para lhe ajudar, não num dia de semana naquela trilha remota, pensar isso lhe
alegrou. Sócrates era contra o suicídio, mas aceitou a condenação de
voluntariamente tomar cicuta, achava que a morte era libertadora, finalmente a
alma estaria livre do fardo do corpo. Lembrou-se dele naquele momento, seu
corpo era uma âncora, estava obviamente atrapalhando seu espírito. Não
acreditava naquela baboseira de alma, via o corpo e a mente como uma coisa só,
chamava de “corpente”. A dor do corpo é a dor da mente, indissociáveis. Sentou
no chão ofegante, tirou suas surradas botas de caminhada do pé machucado. O dia
em que as comprou em Estrasburgo passou por sua cabeça. O tornozelo estava
inchado e roxo, talvez tivesse quebrado a fíbula ou rompido algum ligamento. Guardou
a bota e a meia no bornal, não queria deixar lixo para trás, seguiu caminho se
apoiando nas mãos e no pé bom. O deslocamento era sofrido mas engraçado, parecia
um siri na praia. Apesar da dor conseguiu rir da situação.
O trecho que
duraria cinco minutos caminhando em pé, Guillermo levou quase uma hora naquele
estado patético, mas conseguiu chegar onde queria. Estava exausto, mas
exultante da empreitada, havia conseguido. Tinha vivido toda uma vida para
chegar até ali, obtivera êxito pleno. Sentou seu corpo faminto, cansado, dolorido,
sedento e desejante na rocha da beira do penhasco. Seus pés pendurados no
abismo. Ali devia ter pelo menos uns cem metros de queda livre até bater na
primeira pedra lá embaixo. Somente os urubus saberiam de sua localização, não
incomodaria ninguém. Respirou fundo e olhou o infinito. Riu um pouco sozinho,
estava bem feliz. Tirou o segundo e último charuto do bornal. Segurou firme a
latinha para não cair lá embaixo sem querer, isso seria muito triste. Abriu a
tampinha cautelosamente e sacou o lindo charuto. Ficou um tempo o contemplando
e depois o cheirou de ponta a ponta. Com carinho, acionou seu velho isqueiro
uma última vez e, como sempre, ele não falhou, mesmo com uma fina garoa que
agora caia. Fumou aquele charuto com toda calma, lembrando todos os pensadores
que o haviam acompanhado por todos aqueles anos: Kant, Hegel, Kierkegaard,
Espinosa, Schopenhauer, Marx, Nietzsche, Rousseau, Beuvoir, Sartre... Cada
tragada era seguida de um demorado rolar da fumaça na língua, observando como
ela se misturava ao meio ambiente assim que liberada da boca. Os artistas que
lhe impressionaram tanto Duchamp, Van Gogh, Rodin, Chico Buarque, John Lennon, Bob
Dilan, os escritores com quem conversava até altas horas da noite, Érico Veríssimo,
Machado de Assis, Victor Hugo e tantos outros. Muitos deles também tinham
optado por abreviar a existência. Pensou em tudo que tinha vivido saboreando
aquele último charuto, os lugares e pessoas que conheceu. O tornozelo nem doía mais, o conhaque havia servido bem.
A soma, tanto das dores quanto das alegrias que teve na vida, estava agora
apresentando o resultado e era positivo. Sua vida valera a pena. Ali estava
ele, um homem com seus pensamentos e vícios que saciavam plenamente seu “corpente”.
Estava feliz e realizado. Era o senhor de sua existência, não se deixou levar
pela vida, mas a domou com rédea curta, inclusive agora, quando decidira dar
fim a ela. Apesar de muitas vezes parecer escravo do corpo, que exigia dele que
comesse, evacuasse, bebesse ou urinasse a revelia de seu comando, queria
exercer a única liberdade real do ser humano que é a possibilidade de escolha
do momento do fim.
Guillermo apagou
o toco do charuto na rocha e guardou o que sobrou na latinha. Arrumou o bornal
no pescoço, sentou-se mais na beirinha do penhasco, encheu o pulmão de ar
fresco olhando para o horizonte e lançou-se no abismo. Por alguns segundos
ainda se deliciou com o voo. Estava feliz.
Traz indagações que muitas vezes faço a mim mesma... Simplesmente libertador. Gostei muito.🌹
ResponderExcluirComo sempre,um texto impecável.
ResponderExcluirExcelente.