Indígenas
Quando jovem, de
doze para treze anos, o ambiente familiar começou a me pesar muito. Acho que
todo adolescente sente um desconforto de permanecer no ninho, quer voar
sozinho. Radicalizei o hábito de sair de bicicleta. Passava as tardes andando
pelas estradas do interior do município, subindo trilhas pelos morros de matas
e campos ainda preservados, me interiorizando em todos os sentidos. Aos finais
de semana saía cedo, seis da manhã eu já estava longe. Arrumei amigos que também
gostavam dessas escapadas, tínhamos um grupo. Num feriadão de sete de setembro,
combinei com outros dois uma viagem de bicicleta, seria nossa primeira. Iríamos
até o mar pela estrada das Águas Claras, por ser bem calma e com lindas
paisagens campestres. Estávamos ansiosos, preparávamos os mantimentos e
ferramentas necessários, cada um levaria um pouco. Uns três dias antes, um
deles arrumou uma boa desculpa e desistiu do passeio. E, para minha decepção,
na manhã da saída, o segundo telefonou avisando que não iria. Não deu desculpa,
só admitiu medo. Eu tinha quinze anos na época e me percebi capaz de ir
sozinho. Senti o peso da responsabilidade, sabia do risco, mas me encorajei. Reforcei
o arsenal de ferramentas na hora da partida, conferi os trocados, peguei
algumas peças sobressalentes e um kit de reparo dos pneus, duas cuecas, amarrei
tudo com sisal sobre um bagageiro improvisado feito de arame grosso e soldado
com cuspe. Me despedi de minha mãe que já estava acordada e fui embora mesmo sem
ninguém para me acompanhar.
Não tinha
nenhuma experiência de longas distâncias, então pensei em não parar muito, para
não me demorar. Somente em caso de avaria mecânica ou almoço. Atravessei a
cidade com o dia ainda amanhecendo e peguei a RS040, estrada que me levaria até
a praia de Pinhal, a mais perto de Porto Alegre. Planejei parar somente depois
da cidade de Viamão, nalgum posto de gasolina, para comprar um refri e
descansar um pouco. Às nove da manhã, atingi aquela meta e fiquei somente
esperando aparecer o posto ou algum armazém para parar, já estava com sede. No entanto,
isso eu não sabia, passando Viamão, naqueles tempos remotos, não havia nada. A
estrada era de longas retas que subiam e desciam suaves colinas através da planície
costeira. As subidas eram difíceis e quentes, mas as descidas deliciosas e
frescas, me deixavam muito feliz e animado, ficava em pé nos pedais e parava de
pedalar para pegar um ventinho e facilitar a circulação nas partes pudendas,
arejar. A paisagem era de campos e charcos, nem uma árvore para fazer sombra. O
sol estava quente, a primavera já estava próxima e as cigarras cantavam alto,
um forte cheiro de grama seca tomava conta do ambiente. A sede começou a me
incomodar.
Minha bicicleta vermelha
era muito simples e barata, nada tinha além do absolutamente necessário: um
quadro, duas rodas, o banco, o guidom, os pedais e uma corrente que unia a roda
ao pedivela, não tinha câmbio, farol, buzina ou mesmo para-lamas. Num
dicionário, seria a ilustração do verbete bicicleta. Era pesada e nas subidas
exigia que eu ficasse em pé nos pedais. Os pneus eram “balão” e logo percebi que
não estavam muito cheios, aumentando a necessidade de força para pedalar. Minha
ingenuidade infantil começou a se mostrar evidente. Lembrei que não havia levado
bomba para encher os pneus em caso de furo, apesar de estar bem apetrechado
para repará-los. Também não levei alimentos ou mesmo água. O calor e o esforço
já me castigavam, o sol secava ainda mais o meu já enxuto corpo adolescente.
A estrada era
linda e silenciosa, me provocava muita meditação. Diante daquela paisagem, imaginei
que teria a mesma aparência há milhares de anos, intocada. Antes da chegada de
Cabral, era assim que os indígenas viam o país, sem cercas. Enquanto eu pedalava no asfalto
ressecado, ia refletindo. Para atravessar o mesmo território que eu pensava
cruzar em um dia de bicicleta por estradas lisinhas, quantos dias um ser humano
a pé levaria caminhando no campo? Mesmo com um experiente mateiro a guiar o
grupo, teriam que desviar de charcos, cruzar córregos, evitar formigueiros e
cobras, atravessar capões de mato, pular barrancos, se perderiam, dariam voltas
desnecessárias. Para mim era fácil, tudo plano e reto. A estrada é um guia espetacular,
uma revolucionária invenção humana. Porém, eles tinham conhecimentos que eu não
tinha e mesmo com a ajuda da estrada eu estava penando. Comecei a ficar tonto,
a hipoglicemia, a insolação e a desidratação não me deixavam pedalar em paz: ou
pedalava, ou ia reto, as duas coisas juntas eu não conseguia. Percebi que estava em
perigo de vida, nada a vista, somente campo. Voltar talvez fosse mais longe do
que o destino. Me senti um tolo, um grande desânimo me tomou. Pensei em fazer
sinal para algum carro, mas eram poucos e passavam rápido. Talvez beber água de
algum riacho, mas não via nenhum. Ao longe, vi um rapaz vindo de bicicleta no
sentido contrário. Parei e fiquei esperando sua passagem. Quando se aproximou,
tentei perguntar sobre onde eu poderia conseguir água, mas a voz não saiu. Ele
me olhava curioso do outro lado da estrada, mas estava passando. Organizei rápido
alguma saliva para as cordas vocais e consegui falar o que queria. Ele parou a
bicicleta, apontou para onde vinha e me disse somente: ali. “Ali” era somente um
capão de eucalipto no horizonte. Mas me enchi de esperança e pedalei em zigzag
até lá. Finalmente um posto de gasolina, Capivari.
Na época, Capivari
era somente um vilarejo na encruzilhada da RS040 com a BR101. Pedi um Teem e um
xis salada na lanchonete. Sobrevivi até ali, estava satisfeito. Na hora nem
percebi a magnitude da minha empreitada e o risco que sofri. Tomei todo Teem,
290 ml., enquanto esperava o xis e pedi outro quando ficou pronto, mais 290. Aquele
líquido gelado entrou refrigerando tudo, foi o legítimo refrigerante. O senti
descendo a garganta e caindo no estômago e rapidamente entrando na corrente
sanguínea. Senti mesmo, juro. Se não era o Teem que foi direto para as artérias
foi a temperatura dele que se espalhou por todo corpo. Não tinha muito
dinheiro, então tinha que economizar. Refleti muito se tomaria o terceiro, mas
resolvi garantir e tomei. Depois desse almoço reparador, verdadeiro restaurante,
descansei numa sombra por meia hora e parti de novo, reanimado. Aqueles 870 ml.
deveriam bastar até a praia. Andei uns 20 km e encontrei outro posto. Desta
vez, para me assegurar que não ia passar por aquele apuro de novo, parei e
tomei mais um refrigerante. Me senti tão bem e confiante que meus planos dariam
certo que resolvi ir mais longe. Na encruzilhada entre Cidreira e Pinhal,
Resolvi ir para Cidreira, dois quilômetros mais longe!
Essa viagem foi
muito importante para a formação da minha personalidade. Diversas outras
dificuldades apareceram pelo caminho: quebrou o freio, quebrou o bagageiro, caí
um tombaço, tive bolhas de queimadura solar, não levei toalha ou escova de
dentes, acabou o dinheiro, arrebentou o sisal. Mas aos poucos eu ia resolvendo
os problemas que apareciam e aprendendo com eles. Na volta já não senti sede. Claro
que meu corpo jovem, magro, treinado e saudável ajudava muito. Mas, por me
impor uma experiência necessária com o desconhecido, com o que não é familiar,
me tornei mais feliz, confiante e autônomo. Escalavrar o corpo esfregando-me no
meio ambiente, fora do útero protetor da família, me fez quem eu sou hoje.
Conhecer pessoas e alimentos, aprender línguas e hábitos, dormir em lugares e habitações,
sofrer frio e calor, tropeçar e cair, passar fome e sede, sofrer com coisas que
não nos são familiares, me fez crescer como ser humano. Talvez, voltar a ser um
pouco indígena, olhar aqueles horizontes infinitos atravessando aquele território,
tenha sido uma experiência positiva.
Anos depois, passei
novamente pela RS040. Trabalhava como personal trainer de um senhor cego. Ele
tinha uma bicicleta tandem, de duas pessoas. Eu o guiava e treinávamos muito
pelas estradas do interior porto-alegrense. Propus irmos até a praia por Viamão,
contando minha experiência anterior. Omiti todos os percalços, claro. Ele se
animou, conseguiu até uma casa emprestada em Cidreira. Fizemos todos os preparativos
e no dia combinado partimos. A viagem foi bastante fácil, mesmo para ele que já
tinha seus sessenta anos. Foi fácil porque eu já era um profissional da atividade física. Já tinha todos os conhecimentos necessários para atravessar
aquele território sem sofrimento. Eu entendia e previa tudo o que acontece com um
corpo que se esforça no meio ambiente. Que perde água rapidamente com a
atividade física, que desidrata somente se esfregando na massa de ar, que se
queima com a exposição a radiação solar e precisa de enorme aporte energético
na forma de alimentos. Conhecia perfeitamente a máquina bicicleta, a forma de
mantê-la sempre lubrificada e ajustada para que o ciclista obtivesse o máximo
de desempenho com o mínimo de perdas em energia vital. Guiei aquele senhor
cego, que me obedecia em todas as orientações cegamente. Ele se esforçava
quando eu mandava se esforçar, parava quando eu mandava, bebia e comia o que eu
dizia, se vestia com o que eu orientava. Na volta ele contou para sua filha que
tinha sido bem fácil ir até Cidreira e voltar, 260km de bicicleta. Me tornei um
excelente guia para atravessar aquela planície costeira. Mas claro, alguém que acerta
é porque já errou muito. Não é sorte, é experiência.
Para alguns
membros, o convívio com a família é um pouco tóxico. As doses de convívio
familiar devem ser mínimas para que não haja um desarranjo mental. Não é culpa
de ninguém, nem do intoxicado nem dos intoxicantes, é da natureza humana. Para dar
um exemplo escatológico, os coliformes fecais vivem aos montes dentro da gente,
são absolutamente necessários a vida humana, degradam os alimentos para que
possamos digeri-los. Porém, podem nos intoxicar se colocados no lugar errado. É
da natureza humana que algo que vive nas nossas entranhas possa nos fazer tão mal.
Eu sou um dos que se intoxica se passo muito tempo com a família. Então evito,
moro longe, vou nalguns momentos especiais para rápidas visitas. Aniversários,
natal, páscoa. Nesse natal fui de novo visitar a família. Depois das festas,
subi na moto e parti para casa em Maquiné, no litoral. Nessas maluquices da
vida, decidi fazer um caminho diferente já que era cedo da tarde e no verão
anoitece tarde. Me dirigi para a boa e velha RS040.
A estrada está completamente
modificada. Viamão cresceu muito, Águas Claras já é quase outra cidade,
Capivari não é mais somente um vilarejo na encruzilhada. Há quase uma área conurbada
de ponta a ponta do trajeto. Restou pouco
da paisagem original. Não se pode mais imaginar indígenas ali. O movimento é
intenso, tem até pedágio. Entre Viamão e Capivari agora tem dezenas (dezenas!!!)
de postos de gasolina. Fui devagar, respeitando o limite de velocidade,
meditando com o ronronar do motor. O calor estava intenso nos primeiros dias de
verão, comecei a suar e sentir sede embaixo das roupas de proteção da moto. Começo
a lembrar e fazer conexões aleatórias. Lembrei daquela heroica primeira viagem.
Não ouço mais cigarras, nem sinto cheiro de grama seca, talvez porque agora esteja
sobre a moto, talvez porque não existam mais mesmo essas coisas. Lembrei do
tempo que viajei de bicicleta pela Europa, como lá era difícil de encontrar
algum trecho de estrada sem casas, era vilarejo após vilarejo. Ambiente natural
já não existia lá, como agora aqui. Lembrei de outras viagens que já fiz, de
moto e bicicleta, o tanto que já rodei em duas rodas. Numa descida, fiquei em
pé sobre os pedais, arejando as partes, como no tempo de ciclista. Por alguma
razão, diante dessa paisagem, meu sistema nervoso, fez uma avaliação
sensacional: o calor, o suor, os cheiros, os ruídos, a vibração, a posição do
corpo no espaço. Fiquei feliz e me senti com quinze anos de novo. Que momento
feliz. Ri alto.
A viagem
prosseguiu e tomei a BR101 em direção a Osório na encruzilhada de Capivari. Sigo
vasculhando memórias. Lembrei dos meus alunos indígenas. Como eles sempre
parecem estar entristecidos. Pois claro, imagine se você tinha infinitas
planícies para viver e de repente a conurbação faz desaparecer o teu meio
ambiente, teu modo de vida. Que triste. Imagine que você aos quinze anos já
seria um experiente mateiro, com múltiplos conhecimentos necessários a vida e
capaz de fazer longas travessias na natureza selvagem, mas agora esse
conhecimento não é mais considerado relevante. Imagine que antes tu podias ir
para qualquer lugar, sem cercas de qualquer lado e agora se encontra confinado
em alguma “reserva”. Que desconforto. Imagine que tua família é o grupo todo,
todos são responsáveis por tua educação e segurança, mas agora as leis obrigam
a tu nomeares algum responsável por ti. Tu tens que ter as mesmas neuroses das
famílias dos brancos, viver confinado entre quatro paredes como eles. Deve ser
bem triste mesmo, quando já podes abrir tuas asas e voar sozinho pelo mundo,
mas uma série de leis te aprisionam e todos tem que estudar e aprender os
mesmos assuntos distantes da realidade na escola. Os indígenas devem ficar
deprimidíssimos mesmo com a forma de vida dos brancos. Do outro lado, nós, brancos,
ficamos horrorizados de por que os indígenas deixam as crianças tão soltas,
qualquer um pode pegar o bebê. Por que eles preferem caminhar dias enfrentando os
elementos da natureza em vez de fazer uma bela estrada, lisinha e reta. Eles
estão envolvidos na natureza, nós nos desenvolvemos dela. Nosso grande
desenvolvimento levou a uma série de problemas que nem percebemos direito, tão
desenvolvidos da natureza estamos. Por mais desenvolvidos que sejamos, temos que
admitir, a estrada da vida não é reta e lisinha. Nossa ingenuidade infantil
acreditou que poderíamos controlar todos os problemas, nos apetrechamos para
isso, mas sempre aparece um imprevisto no caminho. Passamos sede, criamos
neuroses familiares, ficamos tontos, o clima global se modifica, esquecemos a
bomba de encher pneu. Não acho que deveríamos voltar a viver como indígenas,
mas também não acho que eles devam viver como nós, pois nós não somos muito
bons exemplos. Já erramos muito, precisamos começar a usufruir dessa experiência. Como não tem estrada para nos guiar ao futuro, acho que deveríamos conversar mais a luz da fogueira. Sempre estamos desconfortáveis com alguma coisa, como um
adolescente. Talvez sair mais de bicicleta e se interiorizar resolva.
Leque de muitas reflexões. Gostei!🌹
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