O “viés
ideológico” da programação televisiva
Na quarentena se
tem tempo livre. Depois de cozinhar, lavar a louça, as roupas, o banheiro, dar
uma lidinha, responder aos apelos das redes sociais, sempre sobra um tempinho
em que você não quer fazer nada. Acordei cedo um domingo e liguei a televisão. Fiquei
assistindo catatônico a programação da Globo. Aos poucos, entre um bocejo e um
espreguiçar, alguns detalhes me chamam a atenção e despertam minha consciência até
ali alienada. Num programa sobre automóveis e motocicletas, um rapaz jovem fala
sobre o carro verde limão que está dirigindo: - Custa um milhão e meio, mas
vale cada centavo porque é muito divertido! Oi? Eu ouvi isso? Querem dizer
então que um trabalhador que ganha um salário mínimo vai ter que trabalhar 1500
meses, 125 anos sem gastar nada, para ter aquela mesma diversão? O programa
insulta toda a classe trabalhadora. Começam os comerciais e já estou revoltado.
Uma propaganda de automóveis diz: - Se você resistiu a tentação de comprar um
SUV essa semana, aguarde até segunda que será lançado o novo... Fiquei
pensando, para quem será direcionado esse reclame? Quantas pessoas no Brasil
precisaram “resistir a tentação” de comprar um carro de mais de cem mil reais no
meio de uma pandemia? Será uma mensagem, para alguém que está realmente
pensando em comprar um veículo tão caro daqueles, que quem tem condições para
realizar tal ato é de uma casta nobre, diferente do resto da plebe? Ou será somente
mais um insulto para o resto da população como o teste do carro verde limão no
programa? Fiquei pensando: quem é a mente perversa por trás desse anúncio
lunático? Deveria ser preso. Numa outra propaganda, Luciano Huck nos convida a
aproveitar a ocasião, pois a loja para qual ele trabalha pode entregar em casa,
tem até aplicativo, você pode comprar tudo que precisa sem sair para rua. E ele
insiste e enfatiza: compre TUDO que precise! O “sem noção” que quer presidir o
país não percebe que está todo mundo enforcado de grana atualmente? Mas a
próxima peça publicitária é de uma instituição bancária e eles tem a solução. A
narradora diz que o banco pensa muito na gente e quer ajudar, sabem que a
situação está crítica, então vão oferecer uma linha de crédito especial, dá
para financiar a dívida em três anos, é uma barbada, aproveite. Essa também
vendia ótimas oportunidades para se contrair dívidas. E eu ali, ainda deitado
na cama, mas já estava totalmente desperto e nervoso na frente da televisão,
até sentindo náuseas. São todas propagandas como as antigas campanhas de
cigarros, tentando nos convencer que são bons para nós.
Mas eis que
começa um programa de esportes. Ah, como eu aprecio os programas de esportes! Geralmente
são repugnantes, asquerosos, a mais explicita e manipulativa propaganda
capitalista: há que se competir, mas resigne-se, somente alguns ganham, a
maioria vai perder, a vida “É” assim. Os esportes são parte de meu trabalho, eu
sou o professor da escola que tem que ensinar as crianças a lidar com essa
fossa mal cheirosa e infectada do que há de pior na sociedade, sem luvas ou
máscara. Estou assistindo TV aberta, sei que meus alunos tem aquele “ensino a
distância” nas suas casas. Agora estou totalmente focado no programa, até me
sento para não perder nenhuma nuance do discurso. Dois jovens e bonitos
apresentadores anunciam que o famoso jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho está
comemorando quarenta anos. Ele está preso no Paraguai por falsificação de
documentos, esse detalhezinho bobo estragou “um pouco” a festa, mas, como eles
já tinham preparado várias reportagens para comemorar, apresentariam assim
mesmo. A reportagem começa com uma crítica a severidade das leis paraguaias. Depois,
a vida do atleta é mostrada desde o início: garoto negro, pobre e dentuço que
pelo dom natural e esforço pessoal vence na vida. História clássica que faz
tantos outros meninos negros, pobres e dentuços sonharem repetir tal façanha. “Basta
querer”! Claro que omitem que para cada Ronaldinho tem dez mil operários do
futebol que não ganham nem salário mínimo. O que mais a reportagem mostra são
suas gloriosas vitórias, seu grande poder de consumo, com carros verde limão e grossas
correntes de ouro adornando o pescoço e como ele humilhava os adversários com
dribles fantásticos. Os apresentadores repetem seguidamente que “o brasileiro”
encantava o mundo com sua criatividade e sua alegria, assim todo brasileiro se
sente contemplado, vitorioso também. O espectador, por uma mágica televisiva,
celebra como se ele mesmo também fosse rico, habilidoso e vitorioso como o
craque. Por sua personalidade brincalhona e distraída, o jogador se envolveu em
várias confusões com a lei ao longo da carreira, mas isso é tratado como normal,
afinal, ele tem aquela malandragem brasileira e aquele sorriso maroto. Ali se
vende uma grande glorificação dos vencedores, se cria um aura, uma celebração glamorosa
em torno de atletas que conseguiram derrotar os outros. Quanto mais os atletas
humilharem seus adversários, maior o júbilo, gozo e regozijo dos apresentadores
do programa. E qualquer desrespeito a legislação é justificado e perdoado, afinal,
o atleta vencedor é um cidadão diferenciado, deve estar acima da lei, pois todo
mundo sabe que é um guri bom, nada que uma gorda indenização pecuniária não
resolva. Por ironia, o Paraguai, que preconceituosamente sempre foi visto como
país de trambiques diversos, foi o único país pelos quais o jogador passou que
foi sério e não relevou a brincadeirinha de passaportes falsos do brasileiro. A
mensagem aprendida por meus alunos ali é que, se tu és rico, a lei não é para
ti, o Paraguai não é normal, e, se tu jogas bem futebol, tua envergadura moral
é indiscutível. É bacana ser malandro, se o juiz não viu, tá valendo!
Eu já estava em
pé no quarto, andando de um lado para outro, angustiado, impotente diante daquelas
manipulações repugnantes. Minha responsabilidade como professor diante daquela massiva
sequência de mensagens é oceânica e me sinto numa boia à deriva. Depois dessa longa
reportagem obscena sobre o aniversário do jogador aposentado, o programa continuava
com reportagens especiais, pois todos os campeonatos estão paralisados e toda
hora os apresentadores convidam os espectadores a lamentar a situação. A
atração agora era que ex-atletas olímpicos foram convidados para eleger o
melhor momento da história das olimpíadas. Os momentos foram todos pré
selecionados pela produção do programa. Depois de votação apertada, dois
momentos sairam empatados como o melhor: A vitória com nota dez, sem erro
nenhum, de Nadia Comaneci nas barras assimétricas em 1976 aos 14 anos e a sofrida
derrota da suíça Gabriela Andersen na primeira maratona feminina em 84. Fiquei
até com asco dos atletas falando sobre sua decisão. Eles viram heroísmo onde eu
via coisas bem diferentes. Ninguém lembrou que aos 14 anos uma menina ainda
está se desenvolvendo, precisa brincar, namorar, estudar ou mesmo se entediar
como uma adolescente saudável faz. No entanto, a rotina de treinamentos para se
obter aquele desempenho perfeito, exige um esforço e um comprometimento que
certamente afastou Nadia de uma vida sadia e a levou a sofrer muitas lesões musculares,
ligamentares e articulares que provavelmente a prejudicaram no resto de sua
vida. Fora os problemas psicológicos que uma vida assim, com privação de
liberdade, trabalhos forçados e escrava de expectativas, acarreta. Essa
situação começou a ficar tão repugnante e veementemente criticada por
psicólogos e pediatras que a Federação Internacional de Ginástica se viu
obrigada a rever a regra e proibir atletas menores de 16 anos nas olimpíadas.
Esse momento de Nadia Comaneci não deveria nem ter sido lembrado para candidato
a votação pelo programa. É como valorizar o trabalho infantil. O vencedor foi
na verdade o asqueroso treinador explorando a juventude da menina. Antes da
proibição, crianças de até onze anos competiam, por serem mais leves e
flexíveis, qualidades necessárias para a prática da ginástica olímpica. Aqui
meus alunos aprenderam que aos 14 já deveria estar no podium olímpico, então,
se não estão, são fracassados. Conformem-se, somente alguns poucos privilegiados
vencerão, a vida é assim, tu não vais ter carro verde limão.
Durante a
votação, as cenas dos “melhores” momentos eram exibidas uma vez atrás da outra
e os atletas eleitores verbalizavam toda sua emoção ao testemunhar as imagens. E
realmente, as cenas são emocionantes. O segundo momento eleito como melhor foi
a chegada cambaleante da suiça Gabriela Andersen na maratona de Los Angeles. Depois
de 42 km sob sol escaldante, a corredora estava obviamente desidratada e sem nenhuma
condição física de continuar. Já nem mais corria, claudicava em zig-zag pela
pista. No entanto se negava a parar. Seu sistema nervoso já não conseguia
coordenar o equilíbrio com a deambulação normal. A percepção espacial de seu
corpo no espaço também já não funcionava bem e ela andava toda torta. Esse
martírio durou duas voltas no estádio. Sua própria vida estava em risco. A
regra da época não permita que ela se hidratasse depois de determinado ponto. Assim como no caso de Nadia, algumas regras
mudaram e o momento não deveria ter sido colocado em votação. Hoje em dia os árbitros
já podem decidir pela desclassificação do atleta por seu estado de saúde, como
no boxe. Também a hidratação é muito mais efetiva. A mensagem que se quer
passar aqui é que o importante é continuar competindo, mesmo se sem a menor
chance de vitória, mesmo se ao custo de sua saúde, você tem que se esforçar até
o fim, respeitando as regras por mais idiotas que sejam. Tenho certeza que meus
alunos entenderam esse recado também.
A ideologia capitalista
é passada na televisão ininterruptamente. A diferença social é naturalizada, a
competição é naturalizada, a derrota é naturalizada, o endividamento é naturalizado,
o consumo é super estimulado. Não é por acaso, os donos do capital e dos meios
de produção financiam as transmissões televisivas e as competições em especial.
Eles tem um grande interesse em manter o “status quo”. E quando alguém
argumenta alguma coisa contra isso tudo e sugere uma programação que ensine a
cooperar é acusado de estar tentando colocar um viés ideológico de esquerda,
comunista. A situação é tão hipnótica, que mesmo militantes de esquerda não
percebem que são escravos de uma ideologia de direita, alegremente vão aos
estágios torcer para seus times preferidos. Repare que há um mês e meio não tem
competições no mundo e ninguém morreu por isso. Ao contrário, uma série de
iniciativas solidárias tem brotado em todos os países. A sociedade ganha-perde
deu lugar a uma sociedade ganha-ganha. Mesmo empresários ricos agora estão
falando em renda mínima. O que ficou evidente com essa pandemia é que a cooperação
é absolutamente indispensável para a saúde das populações e para a manutenção
da vida, já a competição é totalmente dispensável.
Amigo, mais um.texto de qualidade que chega no tendão de aquiles da sociedade. Vivemos tempos de.luta e corrida. Luta por.mais e mais, luta com o amigo do lado para vencê-lo nem que seja na quantidade de tênis a mais que ele ou curtidas numa postagem.Corrida contra o tempo r na busca de mais capital, que sugere mais consumo. Esse apelo televisivo nos domina como uma hipinose, mas achamos que estamos.dominando a situação, feito um.drogado que insiste que não está dominado pela droga e que para a hora que quiser. E nesse meio todo estamos nós professores lutando contra o giganre colorido, brilhante, falante, musical, com muito movimento, chamado televisão, que entra dissimuladamente nas casas das pessoas, com a inocência necessária para matar milhares por dia sem ser julgada nem condenada. Afinal, o mundo é assim. Vence o mais forte. Não reclame que serás carimbado de comunista, esquerdista. Como se fosse a pior das doenças contagiosas, uma.lepra que pode se espalhar. Então, o gado segue firme o berrante até o matadouro. Figa algo contra e serás mal visto pelos colegas, amigoa e ate pelos parentes.
ResponderExcluirTrabalhar a mente humana é fácil se bater na mesma tecla ate fazer a lavagem.cerebral necessária. As técnicas são.diversas...
Muito bom esse texto! Penso a mesma coisa.
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