Inço
Minha última
esposa era de origem alemã, de uma cidadezinha do interior do noroeste
gaúcho, sua família tinha uma pequena propriedade agrícola. Desde que seu pai
morreu, sua mãe arrendava a terra para plantadores de soja, a mesma atividade
que era até ali exercida por todos da comunidade, inclusive eles. A soja era o
grande assunto da região. Era fácil entender porque, bastava dar uma voltinha
pelas estradas entre um vilarejo e outro que se percebia uma esmagadora
preferência pela cultura daquele feijão chinês. O entusiasmo pela planta
asiática era devido ao fato que rendia dinheiro mais do que qualquer outra
lavoura. O horizonte na região era um infinito campo da leguminosa. Para mim,
um aprendiz neorural, a situação era curiosa. O Brasil não tem a cultura de
comer soja, ninguém come arroz com soja ou bolinho de soja. No máximo, umas
gotas de óleo de soja a cada refeição. Para que tanta soja? Aos poucos, fui
compreendendo. Conforme minhas dúvidas
surgiam nas rodas de chimarrão, qualquer criança tinha a resposta na ponta da
língua. O grande diferencial daquela cultura exótica era a quantidade de
proteína que seu grão contém. A soja é servida para animais na forma de ração,
para que cresçam mais rápido. Assim, vacas, porcos, perus e galinhas,
confinados para que não desperdicem energias caminhando, são embuchados com
farelo de soja para virar bife rapidamente. Mas eu, na minha ingenuidade
urbana, seguia intrigado. Não tem tanta vaca assim! Realmente não, mas
exportamos a soja para que vacas em lugares onde não tem tanta água, sol ou
espaço como aqui, possam ter criações grandes de animais. Na verdade,
exportamos sol e água na forma dessa importante “commodite” agrícola. Claro que
tanta soja acaba atraindo um exército de insetos e fungos que a acham
apetitosa. A monocultura exige então, um oceano de pesticidas químicos para que
a produção chegue ao coxo dos bichos que nós achamos apetitosos. A
agroindústria que esse grão gera movimenta a economia de forma poderosa. Muitas
vezes, a conversa com familiares de minha ex girava em torno da admiração que
tinham com a opulenta riqueza de alguns vizinhos que tinham mais terras.
Colheitadeiras, tratores, plantadeiras, caminhonetes, silos, todos com valores
estratosféricos, que para um professor como eu são até obscenos. O desejo
intenso dos habitantes daquela localidade é obter mais recursos para adquirir
mais terras e máquinas para extrair mais recursos num infinito círculo vicioso
que se fecha em si. Pouco importa que a soja é uma planta exótica, que a
ganância por mais espaço para plantação exija a derrubada de florestas nativas
e a extinção da fauna local, que os pesticidas sejam levados pelas chuvas e
pelo vento contaminando os rios e o ar que abastecem a própria população. Há
que se produzir. A soja, na China e no Japão, é uma planta maravilhosa, com
propriedades nutricionais riquíssimas, mas aqui no Brasil, longe de seu meio
ambiente natural, é um inço invasor que está destruindo a biodiversidade do
país. Já tomou grande parte da amazônia, caatinga, cerrado, pampa, pantanal e
avança em velocidade de praga bíblica. Eu e minha ex problematizávamos muitas
questões com os parentes dela, mas erámos vistos como loucos. Qualquer ser vivo
luta para sobreviver diante do meio ambiente em que se encontra, os
descendentes de alemães não são diferentes, lá havia um grande estímulo ao
plantio de soja e uma maior diversidade de culturas seria até hostil a vida dos
moradores daquela cidadezinha gaúcha.
Separei da
alemoa mas não do desejo de buscar uma vida mais saudável. Um amigo biólogo me
falou da propriedade que adquiriu no Rio do Ouro em Maquiné, era uma terra bem
barata pela precariedade de acesso. Não tinha estradas, pontes ou mesmo luz. Me
interessei porque a localidade prometia natureza intocada, água potável
abundante e silêncio, coisas que me são muito caras e os recursos de um
professor são sempre limitadíssimos. Ali cheguei com muita disposição para
construir uma casa sustentável e produzir meus próprios alimentos. A ignorância
de um neorural logo mostrou suas garras, fui aprendendo duramente conhecimentos
que na roça todos sabem, mas para mim eram objetos de estudo formal. Rocei um
eito e fiquei feliz: pronto, agora está roçado. Mas meu amigo biólogo logo me
frustrou, daqui um mês estaria tudo crescido de novo. Tomei o cuidado de
preservar uma planta que achei lindíssima, com grandes flores brancas que
perfumavam todo o ambiente, aqui chamada de caeté, mas em outros lugares
conhecida como lírio do brejo. Ele me disse que aquilo era um inço desgraçado, uma
planta exótica, que era quase impossível de remover e tinha mudado
definitivamente a flora e a fauna local. Em toda beira de rio ou grota, o caeté
tinha invadido e tomado conta, mas achei que era só uma bela planta nativa,
estava tão integrada ao meio ambiente. Aos poucos fui percebendo outras
invasões mais óbvias, mas que quando o ser humano urbano vê, desavisado, nem
percebe. Grandes plantações de eucalipto e pinus que crescem rápido e tem
troncos retos, foram as preferidas pelos agricultores que tiveram que abandonar
as colônias depois do surgimento das leis ambientais que proibiam a queimada. Mesmo
algumas daquelas lindas árvores floridas no meio da floresta também não eram
nativas, mas sim trazidas de longe, a uva do Japão. Os próprios moradores eram
pessoas de fora, como eu, exóticos poloneses, italianos e alemães, que estando
há muito mais tempo ali, já estavam integrados a paisagem, como a uva do Japão
ou os eucaliptos. Como qualquer inço, eu estava determinado a sobreviver ali
naquele meio ambiente e, com grande dificuldade, consegui firmar raízes.
Como agricultor,
percebi que morreria. Meu sistema nervoso buscou alternativas de recursos
energéticos para meu empreendimento. Trabalhei numa serraria onde me foi possível entender para
que tantas plantações de pinus e eucaliptos: rendem muito dinheiro para quem tem uma terrinha.
A minha história de intenso trabalho braçal para garantir o sustento era agora
igual a qualquer vizinho, apesar de minha total ignorância em relação aos
assuntos da terra. Mas na serraria também ganhava muito pouco, eu teria que
buscar alternativas melhores. Fiz concurso do estado para voltar a ser professor,
profissão que havia decidido abandonar. Com a estabilidade financeira vinda de
meu salário de docente, consegui os recursos energéticos necessários para prosseguir
naquele sonho de morar no mato. Como educador profissional, percebi que o ser
humano que aqui reside, em sua maioria, é de extrema rudeza, necessária para
sobreviver em meio ambiente tão hostil. Tive alunos e alunas que com dez anos
já tinham as mãos calejadas e feridas do árduo trabalho com foices e enxadas. A
escola era lamentada por eles e seus pais como um mal necessário para ter
acesso aos recursos do programa federal Bolsa Família. Troquei de escola atrás
de uma remuneração melhor fazendo um concurso do município de Osório. Lá encontrei
alunos indígenas, Mbyá Guarani, educados e silenciosos, muito diferentes dos
alunos comuns. Eles, como as plantas nativas, mal abrem a boca, talvez
sufocados por seres humanos exóticos, vindos de outros meio ambientes, lutam
por um lugarzinho ao sol, com grande dificuldade.
Tenho uma linda
prima por parte de pai, branca, com faiscantes olhos verdes e sobrenomes
europeus, que me revelou o desejo de um dia fazer como fiz e morar no mato com
sua filhinha e seu companheiro. O que será que atrai nossos sistemas nervosos
para cá, será que ela também busca o silêncio, a água potável e o contato
intenso com a natureza como eu busquei? Eu a alerto para as dificuldades de
sustentabilidade para inços como nós num ambiente tão hostil. Ela está ciente e
me convida a ler seu TCC de sociologia. Me surpreendi com o conteúdo, um estudo
sobre as escolas indígenas Mbyá Guarani! A leitura desse texto foi
caleidoscópica e me fez refletir muito sobre minha vida, como cidadão
brasileiro, como professor, como ser humano. Aprendi muito com seu trabalho de
conclusão de curso e até me constrangi, há anos dou aulas para alunos
indígenas, como ainda não sei determinadas palavras guarani que ela cita? Talvez
a escola sendo uma indústria, com produção em massa de alunos, isolados do meio
ambiente natural confinados em salas de aula, com ênfase na homogeneização dos
conteúdos ministrados, me tenha impedido de conhecer suas especificidades. A escola é uma ferramenta que inventamos, ainda não é muito boa, mas foi o melhor que a humanidade conseguiu fazer até aqui. Eu como professor sou um pouco como a soja, uma agroindústria pedagógica invasora, atropelo com
minha cultura os espécimes nativos. Mbyáreko, o modo de vida guarani, está em obrigatório
processo constante de mudança diante do sufocamento que nós, plantas exóticas,
exercemos sobre as comunidades originais. Me identifiquei com seus
questionamentos e preocupações, sempre temo cometer gafes étnicas com meus alunos
indígenas. Com certeza eu as cometo, mas nem fico sabendo, pois eles não
reclamam. No entanto, como minha prima, tento ser delicado e respeitador de sua
cultura. Como ela, chego as mesmas conclusões, a escola ajuda a mitigar as mazelas do encontro de culturas. Aos guaranis talvez só reste tentar adaptar-se a invasão e a escola é uma ferramenta importante no processo.
O meio ambiente
natural está em constante mutação. Quando o primeiro branco europeu chegou por
aqui, o lugar era conhecido como Pindorama e os indígenas já tinham exterminado
várias espécies de animais. Eles também um dia foram um inço invasor e
destruidor. Há quem diga que chegaram aqui há cinquenta mil anos. Você já ouviu
falar em bichos como a preguiça gigante? Com a chegada de meus ascendentes e de
minha prima de olhos verdes há quinhentos anos, Pindorama virou Brasil e se
modificou ainda mais. O Rio do Ouro já não é o mesmo com caetés e eucaliptos,
muitas espécies foram extintas por não encontrar mais os recursos necessários a
sua sobrevivência. A minha simples chegada a Barra do Ouro, com a melhor das
intenções, já modificou o meio ambiente local. Quebrei pedras, cortei vegetação
que não me era útil, plantei as que me agradam, construí uma casa, cavei valas
para drenar o terreno, levantei cercas e muros, interagi com outros humanos que
aqui habitavam antes de mim, dei opiniões, critiquei, fui criticado, debati
temas diversos, discuti, argumentei. Eu modifiquei tudo por aqui, desde a
biosfera, até a antroposfera passando pela litosfera e até a atmosfera do lugar,
alegremente toco fogo em lenha para me aquecer no inverno. E a reciproca é
verdadeira, Newton não errou na sua terceira lei da mecânica, o meio ambiente
me modificou com a mesma intensidade e em sentido contrário. Mas isso é a vida,
ninguém fica igual do nascimento a morte. Ao contrário, a vida é como um filme
cinematográfico antigo, vinte quatro quadros por segundo e nenhum é igual ao
outro.
A ciência é
maravilhosa, produz coisas fantásticas como vacinas e TCCs de sociologia
preocupados com a preservação de culturas nativas ancestrais. Mas ao mesmo tempo,
produz morte e devastação com armas e lavouras de soja e seus pesticidas. Tudo parece
sempre ter um lado sombrio. Examinemos outro exemplo: a democracia numa
república moderna produz muita igualdade, mas também pode produzir atrocidades,
como o nazismo. Hitler foi sempre democraticamente eleito e tomava suas
decisões consultando a população em plebiscitos. Se o eleitor é mal educado,
fará escolhas equivocadas. Mas tanto ciência como democracia, assim como a escola, são as melhores ferramentas que inventamos até hoje, por enquanto, foi o que deu para arrumar. Muitas vezes, temo ser um mal professor. Temo não ter tempo
suficiente ou habilidade para ensinar adequadamente meus alunos as questões pertinentes
da vida em sociedade. Temo não saber eu mesmo quais são essas questões
pertinentes. Observo claramente que a maioria dos eleitores tem escolhido mal
seus representantes. Também percebo uma preferência pela luta inescrupulosa por
recursos financeiros e pouco valor é dado aos valores humanos altruístas de
solidariedade e preservação do meio ambiente para futuras gerações. É a minha
avaliação, posso estar errado. Mas igual, me sinto culpado como educador quando
o resultado da eleição é desastroso como tem sido ou quando a comunidade onde
trabalho opta pela mesquinha luta por recursos financeiros em prejuízo da vida.
Me dói.
Um novo vírus
corona está assombrando a humanidade atualmente. Com o lockdown de algumas
sociedades diante da pandemia, as populações perceberam assombradas que o céu é
azul e as águas transparentes. Animais selvagens voltaram a ser vistos em
ambientes urbanos. Esse inço invasor de nossos corpos também tem seu lado
positivo. Um grande questionamento corre a boca pequena, o que fizemos de
nossas vidas? Todo mundo foi obrigado a ficar em casa refletindo por algum
momento. Observo meus vizinhos e muitas vezes os considero incrivelmente ignorantes,
mas também percebo minhas limitações e sei que eles tem opiniões a meu respeito
que muitas vezes não são nada boas. Talvez me achem louco, como os familiares
de minha ex achavam. Me chamam de hippie, porque é a única caixinha que eles
conhecem que podem me encaixar. Alguém que não é descendente de colonos vir
morar no mato só pode ser um hippie. Como bom hippie, gosto de citar o grande
filósofo Lulu Santos que cantava que a vida vem em ondas como o mar e que a humanidade
caminha a passos de formiguinha e sem vontade. Novos vírus aparecem a todo
instante, a maioria nem ficamos sabendo, nosso sistema imunológico está
habituado a lidar com tudo: fungos, bactérias, protozoários, vírus, presidentes
fascistas, germes em geral. Temos defesas excelentes. Às vezes um individuo ou
outro sucumbe a algum vírus ou vota na pessoa errada, mas nossa espécie é
resistente, se adapta e sobrevive. O mundo dá muitas voltas e se transforma. Acredito
que um dia minha prima dará aulas de antropologia na escolinha da Barra do
Ouro, os descendentes de alemães do noroeste gaúcho repensarão sua agricultura,
o meio ambiente se adaptará a minha presença na vila como se adaptou aos caetés.
Como os indígenas e seu Mbyáreko, o modo de vida da aldeia global se adaptará e
criaremos anticorpos, alguma vacina e sistemas de ensino que nos imunize de
presidentes inço como o atual e nos livre dessa pandemia.
Esse teu artigo merece primeiro ser bem digerido prá depois ser comentado. São tantos os importantes temas tratados que precisam ser assimilados em separado. O mosaico de tuas rxperiencias pessoais te permite teorizar em diferenntes frentes encharcado de prática. O que em outros destacaria como coerencia, em teu caso particular, com experiencias muito loucas de escrita, com esta tua viagem autobiográfica vais dando aos teus leitores uma oportunidade de conhecer um verdadeiro exemplo de práxis. É impossível parar de ler teu texto antes do fim. Ele instiga à reflexão e discussão antropológicas, sociológicas, filosóficas, pedagógicas, rudimentares de técnicas agrícolas, políticas... Me faz pensar em grandes amigos que certamente me fariam aprender muito evoluindo como pessoa, somente tentando explorar, defendendo e atacando, pontos que tão bem desenvolves no teu texto. Apenas formalmente estou te pedindo autorização, na verdade mais que pedido é comunicação, vou socializar com amigos diletos e fazer render minhas dúvidas depois dessa leitura. Viajei contigo nas tuas batatinhas... Foi muito bom especialmente pro meu lado "professor". Tchê, como é complexa nossa faena de formadores de homens e mulheres no mais amplo sentido da vida. Como podemos pretender ser professores humanitários com experiencias de vida tão. estreitas e/ou limitadas? São tantos os questionamentos que brotam desse texto... Parabéns! Espero e confio poder seguir merecendo o detalhe do envio de novas produções de tua lavra. Recebe um abraço fraterno
ResponderExcluirAo mesmo tempo em que citas tuas experiências pessoais, antes um leque enorme de questionamentos de suma relevância neste artigo. A forma descritiva clara, consegue nos remeter facilmente aos lugares citados e, de certa forma, vivenciarmos estas experiências. É texto que merece ser relido algumas vezes. Maravilhoso!
ResponderExcluirObrigada por compartilhar.🌹