Sobre
meritocracia
Quando tinha uns
seis anos, minha mãe comprou uma planta que se encolhia toda ao ser tocada,
tinha um nome curioso que nos atraia ainda mais: dormideira. Nós ficávamos
hipnotizados olhando aquela mágica natural. Passávamos bons momentos a tocando para
pô-la a “dormir”, olhando ela se fechar. Bebel nos avisou que ela tinha uma
flor muito bonita. Porém, nem chegamos a conhecer a aparência de sua floração,
logo a dormideira sumiu, não aguentou o convívio com aquele meio ambiente tão
invasivo: crianças. Aquela estratégia de defesa para desestimular predadores
não servia para nós, a dormideira era delicada demais para viver próxima a mim
e minhas irmãs. Já a beleza das rosas conhecíamos bem, eram mais resistentes à
nossa companhia, seus espinhos eram realmente eficazes para espantar nossa
predação. Outra planta que nos atraia da mesma forma e se perpetuou, apesar de
nosso assédio, minha mãe chamava de beijinho de frade. Essa produzia flores
coloridas e uma baguinha verde que se tocada, ainda que delicadamente, explodia
e arremessava em todas as direções sua semente. Quanto mais brincávamos com
ela, mais ela se reproduzia. A diversidade de estratégias de sobrevivência é um bom exemplo da riqueza da natureza.
Qualquer
agricultor sabe, as plantas não reagem da mesma forma aos elementos do meio
ambiente. O agrião gosta do banhado, o milho do úmido, já um cacto prefere a
secura. Algumas plantas se dão bem em terreno arenoso, outras precisam de muito
húmus. Tem até as plantas que crescem em terreno pedregoso ou aquelas resilientes
que mesmo arrancadas com raíz e tudo sobrevivem. Se você plantar espécies
diferentes no mesmo terreno, expostas a mesma radiação solar e com a mesma
irrigação e adubação, algumas plantas prosperarão mais do que outras e algumas
até perecerão. Isso é a natureza fazendo sua seleção natural. Conforme forem
crescendo, os rizomas vão se cruzando e algumas mais agressivas, ainda que
inadvertidamente, vão sugando nutrientes de outras. Algumas vêm vigorosas e
sadias e outras se abatem e empalidecem, apesar de obterem, teoricamente, os
mesmos recursos. Todas têm condições de crescerem sadias, mas algumas só sobreviverão
se afastadas de outras.
Os grandes empresários
do agronegócio, latifundiários que praticam a agricultura industrial, usam
máquinas para que o terreno seja uniformemente tratado. Todas as plantas
receberão o mesmo tratamento, a terra será igualmente afofada, a semeadura é
feita em intervalos milimetricamente medidos, o inço, os fungos e os insetos
que possam oferecer algum risco as plantas são mortos com produtos químicos que
não afetam a cultura pretendida. Além disso, as sementes são clonadas, para que
sejam todas iguais e produzam o máximo possível. Ainda assim, mesmo diante
desse fantástico aparato tecnológico para a homogeneização das plantas, nenhuma
é igual a outra e cada uma produz de forma diferenciada. Há diversidade se
impõe, apesar dos esforços humanos pelo padrão da excelência.
Recebi a visita
da agente de saúde da comunidade. Enquanto ela perguntava se eu passava bem,
preocupada com a covid-19 e a dengue, conversávamos sobre amenidades de
vizinhança, pois ela também é moradora da Barra do Ouro. A trabalhadora da
linha de frente da pandemia me contou de suas filhas gêmeas. Como são
bivitelinas, não tem nada em comum, nem no físico nem na personalidade e isso
já está evidente aos dois anos de idade. Isso me chamou a atenção, pois as duas
crianças recebem o mesmo cuidado e vivem no mesmo meio ambiente, tem
praticamente as mesmas experiências.
Pensei então em perguntar para alguém que tem gêmeos univitelinos para
saber como é com clones genéticos. Mandei mensagem para outra amiga que tem
gêmeos idênticos para indagar e a resposta foi praticamente a mesma, ela relata
diferenças tão importantes nas atitudes e preferências individuais que as
crianças parecem ser de famílias diferentes. Os casos de gêmeos são preciosos
para estudos sociais, pois, a princípio, tiraria das variáveis analisadas o
fator genético. Quando se estuda irmãos não gemelares de mesmo pai e mesma mãe,
as diferenças ficam ainda mais gritantes. Independente de sexo ou idade, as
relações de dominância se estabelecem desde a mais tenra idade. Ao se criarem
juntos, os rizomas se entrelaçam e alguns mais agressivos, ainda que
inadvertidamente, sugam os elementos necessários a vida de outros fazendo com
que uns sejam tóxicos para os outros. Essa advertência está nas primeiras
páginas de qualquer manual de psicologia familiar. Alguns irmãos tem a
estratégia de se fechar sob stress como uma dormideira, outros se sentem até
estimulados ao serem pressionados, como um beijinho de frade e outros são
intocáveis, como uma rosa.
Por obrigação
profissional, sou professor de Educação Física, reflito muito sobre o fenômeno
social do esporte. No esporte, a igualdade é um valor importante na organização
de eventos. Adultos não competem contra crianças, homens não competem contra
mulheres, deficientes não competem contra não deficientes. Os participantes são
organizados em categorias e isso é tido como justo. Por mais disposto que
esteja, uma criança não terá autorização para se confrontar contra um adulto,
as regras proibem. Mesmo entre adultos se procura igualar por algum critério. Por
exemplo, o peso do atleta é geralmente um critério utilizado nas lutas, os mais
pesados não competem contra os mais leves. A competência na prática é outro
critério muito utilizado. Somente os melhores times permanecem na “série A” do
campeonato brasileiro de futebol, os campeões nacionais de ciclismo defendem o
seu país no campeonato mundial e assim é em todos os outros esportes: os
melhores se confrontam com os muito bons, os mais ou menos com os meia boca e
os ruins com os pereba. Mesmo diante de tal aparato legislativo para garantir a
igualdade no esporte, a pretenção segue sendo uma falácia, distorções importantes
acontecem, porque é impossível ser igual mesmo entre gêmeos criados na mesma
família ou sementes clonadas plantadas no mesmo terreno. Se houvesse realmente
uma igualdade possível, o empate seria o resultado de todas as competições.
A intenção das
regras que tentam criar essa “igualdade” falaciosa entre os adversários
esportivos, é para defender outro valor mais importante, o mais importante de
todos para o esporte: o mérito. O esporte busca premiar aqueles que tem as
melhores qualidades para vencer: tem a genética melhor e/ou que se esforçaram mais
para extrair de seu corpo não tão apto uma excelência na prática esportiva. Esse
é um dogma quase religioso para os adeptos da competição: a meritocracia. Não
por acaso, a meritocracia também é defendida por capitalistas. Os defensores do
livre mercado também insistem que as pessoas tem liberdade para empreender e
bastaria um grande esforço no trabalho para “vencer na vida”. Perceba que os
capitalistas também admitem que haja os perdedores na vida, aqueles que,
segundo as teorias liberais, não se esforçaram o suficiente. Na meritocracia,
se os vencedores o são por mérito individual, os perdedores também. A culpa da
derrota nos esportes ou na sociedade capitalista sempre recai sobre o indivíduo
e não na perversidade do sistema. É claro que tanto nos esportes como na
sociedade, quem inventa as regras são os dominantes, os vencedores, de forma
que se perpetuem no poder. Um dos brasileiros mais asquerosos e repugnantes de
todos os tempos, Ayrton Senna, grande garoto propaganda da meritocracia, uma ocasião
em que foi parabenizado por tirar segundo lugar no campeonato, irritado, falou:
“O segundo é o primeiro dos perdedores.” Ou seja, o maior e melhor “loser”,
palavra em inglês que significa perdedor, pesadelo para um cidadão americano. Ele
estava ensinando a população brasileira a ideologia capitalista: se tu não venceres
na vida, tu és um bosta. O que acaba ocorrendo, é que a exclusão é a regra
tanto na sociedade quanto nos esportes e todos nos achamos bosta por não vencer, inclusive Ayrton Senna.
A falácia da
igualdade e o valor moral da meritocracia são adotados pelos dominantes com
entusiasmo. Não é por acaso que os donos dos meios de produção se disponham a
patrocinar eventos esportivos, por mais caros que sejam, pois os esportes são
uma metáfora perfeita para ensinar a ideologia capitalista bem didaticamente. A
brincadeira dos esportes diverte e distrai os participantes desde a infância.
Logo a ideologia meritocrática fica capilarizada em todas as mentes. Apesar do
discurso de “igualdade de oportunidades”, o que se verifica na realidade é que
a sociedade meritocrática exclui despudoradamente. Numa competição de duzentos
corredores, somente um vencerá, os outros todos baixarão suas cabeças e
refletirão sobre seus erros ainda que não tenham feito nenhum. Numa fábrica com
duzentos funcionários, o único que enriquece é o dono, por mais esforços que
todos os outros façam, jamais perceberão lucros como os do patrão. No entanto, “se
a educação não for libertadora, o sonho do oprimido é se tornar um opressor”,
já nos alertava o patrono da educação nacional, Paulo Freire. A ideologia da meritocracia
é incorporada por todos os habitantes de uma sociedade e é tão insidiosa e
capilar que penetra no seio das famílias, fazendo aflorar castas diferenciadas
por mérito até mesmo entre irmãos. Nossa educação não foi libertadora, o
resultado é desastroso, porque a igualdade de oportunidades também é fictícia mesmo
entre gêmeos univitelinos. Obrigatoriamente, os rizomas vão se entrelaçar, mas alguns
indivíduos são dormideiras, outros rosas e outros beijinhos de frade. Mesmo
numa família, a exclusão aflorará e a alguns só será permitido jogar na segunda
divisão.
Nos últimos dois
séculos, a população humana cresceu tanto que se tornou uma ameaça a vida de
todas as outras. Basta olhar o gráfico desse crescimento para que constatemos
que há algo errado nisso. Esse sucesso se deve, entre outras coisas, ao fato
que criamos uma cultura de preservação da vida humana, qualquer que seja. O processo
de sofisticação moral foi lento, mas sempre se afastando da seleção natural, a
lei da selva, a lei da competição. A cooperação triunfou: tratamos doentes
ainda que terminais, protegemos crianças, cuidamos de idosos, preservamos
culturas ancestrais indígenas, não discriminamos por cor de pele ou crença,
criamos ações afirmativas para deficientes, defendemos as mulheres de homens
agressivos. O leão não é o rei da selva, mas o ser humano é. Veja que nossa
espécie não é muito antiga, nem é a mais forte, tampouco a mais rápida. Vivemos
no mesmo terreno e com a mesma radiação solar que outras espécies. Não temos
unhas afiadas ou presas pontiagudas, nem carapaça protetora ou audição aguçada.
O Homo Sapiens se tornou dominante na natureza por adotar uma estratégia de
sobrevivência procurando cooperar com seus semelhantes, mesmo os mais débeis. Só
temos a arrogância de pensar que somos a espécie mais inteligente. Porém, há
debate sobre isso, principalmente agora que essa suposta inteligência está
levando a extinção de várias espécies de animais e plantas e ameaçando nossa
própria existência com a diminuição de diversidade biológica. Muitas vezes erramos,
mas sempre com a boa intenção de salvar vidas humanas.
Muito
provavelmente tenhamos que criar mecanismos de diminuição da população humana,
se o mundo não nos matar antes, mas não como gostaria o atual presidente
brasileiro, o inominável, de forma meritocrática: quem não tiver histórico de
atleta ou juventude, que morra. Qualquer ser humano tem que ser ajudado a se
desenvolver em sua plena potencialidade, pois mesmo as mais delicadas dormideiras
merecem viver, tu nunca sabes que lindas flores podem produzir se as sufocar antes.
Os pensamentos bons e as boas intenções também podem estar na cabeça de um exímio competidor, assim como, muitas vezes as pessoas levadas pelo sentido da cooperação podem estar obrando prá atigirem o pior dos objetivos. Continuo batendo forte na idéia que a competição esportiva não é boa ou má por ela mesma. Depende essencialmente do ambiente criado ao seu redor e das pessoas que o dirigem. Os exemplos que trazes das plantas e dos gemeos, prá mim reforçam a importancia de tratarmos diferente os diferentes, e isso depende fundamentalmente dos pais, dos agricultores, dos proofessores e técnicos/dirigentes envolvidos nos processos respectivos
ResponderExcluirEu sou gêmea univitelina,percebo entre eu e ela igualdades e diferenças, as vezes sutil, as vezes gritante, tanto no físico(genética), quanto no psicológico. Até o primeiro ano do ensino médio estudamos juntas, após, tomamos caminhos diferentes....embora as duas tenham feito educação física eu trabalho com séries iniciais e finais, ela o ensino médio. Também nós duas fizemos outra faculdade e as duas detestamos competição; achamos que há espaço para todos, importante é a atividade e todas as ideias por trás contidas...
ResponderExcluirExcelente texto para refletirmos o quão sufocante e imperceptível se faz a educação que enaltece o melhor, o mais forte, o mais inteligente, seja na vida familiar,na escola ou na luta pela sobrevivência. Sempre me incomodou muito a expressão "fiz meu melhor", quando a pessoa quer se desculpar pelo 'fracasso, como se quem o julga vai desculpá-lo por não ser tão bom quanto necessário, já que ele deixará de ter importância. Cria -se ali mais um frustrado e uma legião de comovidos desnecessários, pois se ele estava na competição poderia ou não, vencer. Quando a educação libertar enfrentaremos com justiça as adversidades. Parabéns professor!
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