Kajsa
(Para
facilitar a leitura desse texto, preciso fazer um alerta. O personagem
principal da história é Kajsa, a pronuncia desse nome é algo que em português
seria escrito Caisa, o Jota em sueco tem som de “I”. Não gostaria de ver
ninguém se contorcendo para falar ca-jjjj-za.)
Kajsa sentiu-se
muito bem, uma profunda paz tomou todo seu ser. Não sentia calor nem frio, a
temperatura estava perfeita e a aconchegava. Sentiu prazer naquela sensação
gostosa. Abriu os olhos e viu um céu muito azul, com uma cor bastante diferente
do que estava acostumada a ver na Suécia. Não percebeu nem uma simples brisa,
mas ouvia o marulho de ondas do mar e sentia seu cheiro. Aos poucos, algo a
incomodou, talvez a dureza de onde estava deitada, talvez a claridade
excessiva. Sua consciência voltou como se tivesse tomado um tombo, de soco.
Sentou-se na pedra e olhou no entorno, ficou pasma, nunca havia estado ali. A
paisagem que a cercava era de sonho, a sua frente um mar verde claro batia nas
rochas lá embaixo do penhasco, a suas costas um morro coberto com densa
vegetação arbustiva. Porém, um detalhe a intrigou poderosamente: a última
memória que tinha é que estava trabalhando no escritório da seguradora em
Estocolmo. Como havia parado ali? Onde era ali? Onde foi parar todo mundo?
Levantou-se de
um pulo e percebeu mais coisas enigmáticas. Estava totalmente nua, sem nem um
brinco ou anel, até mesmo a marca de sua aliança no dedo desaparecera. Procurou
algum vestígio de trilha, mas não encontrou. Ela gostava de caminhar na beira
dos fiordes no verão da Noruega, mas aquilo era uma situação totalmente
diferente, há muitos anos não voltava lá. Definitivamente não estava na Noruega,
todas as cores eram diferentes, o mar, o céu, as rochas, as plantas. Olhou para
o chão e não viu sua sombra. Que sonho louco! Parecia tão real. Estendeu seu
braço a frente e sua sombra apareceu, inclinou-se a frente e a sombra do tronco
e de sua cabeça sumidos apareceu, mas só da parte do corpo que se inclinou. Riu
com a situação e estendeu uma perna e depois a outra para ver se estavam mesmo
ali, brincou dançando um pouco olhando aquela coreografia esquisita de sombras
na pedra. Parou porque se aproximou da borda da rocha, sonho ou não, não queria
cair do penhasco. Afastou-se com medo caminhando de costas o mais que pode da
beirada, até se espetar num arbusto estranho. Pulou para frente de novo, olhou
sua panturrilha e uma gota de sangue escorria. Olhou para o sol e viu que
estava exatamente acima de sua cabeça, nunca tinha visto isso antes. Lembrou de
seus amigos que haviam viajado para zonas tropicais, Klaus relatou aquela
sensação esquisita da falta de sombra na Tailândia e Martin em Cuba. Bom, já
tinha descoberto duas coisas interessantes: estava nos trópicos e perto do meio
dia, todo resto ainda era mistério.
Ao pensar em
meio dia, lembrou das recomendações de seu dermatologista e sentiu uma leve
ardência nos ombros e nos seios. A radiação solar era muito agressiva para sua
pele clara, evitava o sol ao máximo, por isso nunca se entusiasmou a viajar
para Ibiza ou Maiorca, sonho de Magnus, seu esposo. Num impulso, cobriu com as
mãos seus magros ombros, mas tirou assustada. Suas mãos e nariz já apresentavam
manchas da idade e os ombros nem tanto. Procurou, já cheia de angustia, alguma
bolsa ou mochila entre os arbustos, ela nunca sairia para um passeio na
natureza sem seus três protetores solares, para as mãos, para o rosto e para o
corpo. Lembrou dos óculos de sol, seus olhos começaram a sofrer com aquela
claridade. Não achou nada. De um momento de pura paz, alegre e prazeroso, Kajsa
passou a sentir um grande desespero, estava em apuros. Gritou por socorro, mas
sua voz se perdia no infinito da paisagem sem resposta nenhuma. Ficou na ponta
dos pés o mais perto que podia dos arbustos sem se espetar e gritou ainda mais
forte fazendo uma corneta com as mãos. Mas era absolutamente inútil, estava
numa prisão a céu aberto.
Kajsa assinou o
acordo com o Sr. Svenson automaticamente, pediu licença e levantou-se
perturbada, ele lhe olhou impassível. Foi rápido ao banheiro e sentou-se na
tampa do vaso. Ficou olhando para frente, mirando a porta de fórmica branca, de
olhos bem abertos, mas tudo que via era o que acabara de passar naquela rocha a
beira mar. O que tinha sido aquilo? Não sentia mais a ardência nos ombros, até
puxou a blusa para checar se estavam avermelhados, olhou a panturrilha também,
mas nada. Tinha sido uma grande alucinação? Será que o cliente reparou? O que
será que ela tinha preenchido naqueles papéis que acabara de assinar? Voltou
rápido para sua mesa de trabalho, sorriu como se nada tivesse acontecido e Sr. Svenson
sorriu de volta educado. Conferiu rapidamente tudo que escrevera, lembrou de
cada palavra escrita, do caso todo, estava tudo correto, felizmente. Apertou a
mão do Sr. Svenson e se despediu, ele saiu contente. Ela nem sentou-se de novo,
foi até a sala de Ulrika, sua supervisora, pediu para sair um pouco mais cedo.
Ulrika olhou o relógio por cima dos óculos de grossos aros que a deixavam tão
mais bonita e jovem na opinião de Kajsa e disse que sim, afinal, só faltavam
dez minutos para às cinco. Kajsa nem tinha visto que já estava no fim do
expediente, mas agora parecia fazer sentido, lembrou tudo que tinha feito à
tarde. Pegou suas coisas e saiu ainda confusa.
Kajsa subiu em sua
bicicleta e voltou para casa. Largou as chaves da casa sobre o aparador como
sempre fazia e sentou-se no sofá. Mandou uma mensagem para Dr. Viggosen, precisava
consultar o quanto antes. Largou o celular e ficou olhando o nada. Aquela
experiência tinha sido muito real. Ainda sentia a dor do espinho, mas riu
sozinha lembrando da dancinha com as sombras estranhas. Foi lentamente
digerindo aquilo tudo, se acalmando. Ao fim, tinha sido uma vivência
interessante e segura. Conhecera os trópicos sem nunca ter ido lá. Kajsa
gostava da segurança, como uma boa sueca. Seu carro era um Volvo S90, o mais
seguro de todos, apesar do apelo ecológico que um elétrico Tesla exercia sobre
ela e o marido. Como agente de seguros, tinha seguro de tudo: de vida, de
saúde, da casa, do carro. Tudo. Gostava assim. Percebeu que sua vida estava sob
controle, como sempre esteve. Não tinha tido filhos nem pets para não ter
imprevistos desagradáveis. Magnus finalmente chegou do trabalho, era engenheiro
na Ericsson. Também largou suas chaves no aparador da entrada ao lado das de
Kajsa, como sempre fazia. Os dois tinham uma vida bastante confortável, moravam
num amplo apartamento em frente ao Kronobergsparken, uma área tranquila da
cidade. Ela sorriu e o abraçou desajeitada. Ele percebeu que havia algo errado,
mas esperou que falasse. Tinham aquele acordo de respeito mútuo. Começaram a
arrumar a mesa para ceia, mas Magnus, a conhecendo bem, propôs sair para comer
fora. Kajsa imediatamente aceitou e se alegrou, a alegria foi mútua. Caminharam
de mãos dadas pelas ruas como há muito não faziam. Jantaram no mesmo
restaurante que sempre comiam, sem turistas barulhentos e chatos, de comida
típica Sueca. Voltaram para casa em silêncio, aproveitando o frescor do verão.
Foram dormir cedo, Kajsa pediu que deitassem de conchinha. Magnus se encheu de
ternura pela companheira e a acolheu. Ela nada disse e no outro dia, depois do
café da manhã, beijou seu marido e partiu em sua bicicleta para trabalhar
normalmente.
Ao chegar ao
escritório, Dr. Viggosen havia respondido sua mensagem, poderia lhe atender às
dez da manhã. Avisou Ulrika, que hoje estava mais bonita do que nunca, que logo
sairia para consultar o médico. Kajsa a admirava, almoçavam sempre juntas, era
uma mulher cheia de personalidade, muito segura de si, a própria cara da
companhia. Nem sentou na sua cadeira,
desceu as escadas do prédio e pedalou até o consultório. Chegou meia hora antes
da hora marcada, gostava assim. Ficou elaborando o que diria para Viggosen, também
pensou que poderia ter elogiado a beleza da colega de trabalho, mas a porta
abriu-se e o médico lhe convidou a entrar. Quando sentou-se a frente daquele
velho amigo do colégio, relatou todo o ocorrido na tarde anterior com detalhes.
A ardência nos ombros, o sol exatamente sobre a cabeça, a alegre dancinha com
as sombras, o desequilíbrio, o espinho que lhe furou a perna, a sensação de bem
estar e o desespero que seguiu ao se perceber sozinha num local isolado, a
concretude da experiência, os gritos por socorro e a volta ao escritório na
frente do Sr. Svenson que não percebeu nada de diferente. Deixou claro que
tinha sido bom “conhecer” aquele local preservado, mas também muito
angustiante. Viggosen a olhava com atenção, compreensão e um leve sorriso nos
momentos engraçados do relato. Ele a tranquilizou, disse que era normal termos
flashs, pensamentos complexos assim, de vez em quando, talvez fossem
alucinações febris. Mediu sua temperatura e pressão, mas estava tudo normal. Perguntou
há quanto tempo Kajsa não tirava umas boas férias, de uns dois ou três meses.
Tanto tempo assim, há pelo menos vinte anos. Não receitou nada, disse que ela estava
bem, qualquer outro sintoma que avisasse.
Kajsa saiu
contente do consultório e voltou ao trabalho. Agora sentia-se confiante a
contar para Magnus e rir da situação. Que experiência curiosa! Sentou-se em sua
cadeira e passou a atender Sra. Frederikson que queria estender sua apólice a
seu cachorrinho Tig, um antipático Pug que estava em seu colo. Sentiu novamente
uma aconchegante paz, como a conchinha de Magnus na cama ou uma manhã de natal
na infância. Fechou os olhos e apreciou aquele instante gostoso, mas quando os
abriu, percebeu que estava sentada naquela mesma pedra a beira mar do dia
anterior, a mesma claridade, o mesmo cheiro. Manteve a calma, lembrou que
Viggosen disse que era normal. Sabia que tudo passaria rápido como da outra vez
e voltaria a estar a frente da Sra. Frederikson. Desta vez tinha uma leve brisa
marinha e estava um pouco mais quente, mas de novo, nem uma nuvem no céu. Ouviu
um latido agudo, era o pequeno Tig que cheirava o ar olhando os arbustos. Ele
saltou para dentro da vegetação e Kajsa sentiu uma forte obrigação de segurá-lo
para que não se perdesse, Tig era importante para a companhia de seguros.
Correu atrás do cachorro, mas lembrou que estava nua quando seus seios
balançaram e seus pés doeram nas pedras, não poderia enfrentar os arbustos
assim. Tig sumiu na macega e não adiantou chamá-lo. A sola de seus pés era
fina, nunca havia pisado o meio ambiente com os pés descalços. Deu uma volta no
promontório da rocha em que estava, devia ter uns seis metros por quatro e era
relativamente plano, mas todo cercado ou pelo vazio do penhasco ou por
arbustos. Olhou lá embaixo, as ondas vagarosamente esculpindo as pedras. Sair
dali por mar estava fora de cogitação. Devia ser mais de dez metros de altura. Olhou
os arbustos na direção em que Tig havia seguido, talvez por ali houvesse algo
aproveitável. Mas não se via nada, havia muitas cactáceas e arbustos retorcidos
e queimados pelo vento salgado da maresia. Seus ombros e seios começaram a
arder novamente, mas ela não ligou. Tentou aproveitar da melhor maneira
possível o momento, olhou a beleza do local, respirou fundo, pena não estar com
sua câmera. Por mais que racionalmente se concentrasse a ver o lado bom
daquilo, daquela intensa experiência psicológica, não conseguia. Sentou-se na
pedra e agora a ardência dos ombros e seios já incomodava bastante, as canelas e
os peitos dos pés expostos também ardiam. Esperou confiante o término daquele
martírio, mas nada. Lembrou de seu pai, sua mãe, sua irmã mais nova, de sua
casa em Uppsala e da escola que frequentou, dos colegas e amigos da rua em que
morava, do Dr. Viggosen quando criança. Sentiu muita saudade do frio e da neve.
A ardência da radiação solar estava insuportável, sabia que fazia muito mal, a
sede também a castigava severamente. Mas era sonho, calma, um flash, como disse
Viggosen. Não tinha relógio, mas achava que agora já tinha passado umas boas
duas horas, muito mais tempo que no dia anterior. O flash já estava demorado demais.
Pensou em pedir para Viggosen uma receita de alguma droga poderosa, não queria
sentir mais aquilo de jeito nenhum. Passou a refletir sobre sua vida, como
aquela situação era exatamente o oposto de tudo que sempre buscou para si:
incerteza, ignorância, angustia, insegurança, imprevisibilidade. Percebeu que
uma grande bolha de queimadura solar levantou no seu ombro esquerdo, estava
sendo queimada viva. Caiu num choro incontrolável, o sol implacável parecia não
se por nunca. Queria Magnus e sua conchinha em lençóis de linho, queria um gole
de suco de maça, ou ao menos estar sentada em sua cadeira de trabalho, rever a
Sra. Frederikson e até que Tig voltasse. Ao pensar isso, Tig voltou, saltitante
e contente, cheio de pega-pegas presos no pelo. Kajsa ficou bem feliz com seu
retorno, ela que nunca tinha gostado de cachorros, agora chorava e ria de
alegria, mesmo ele machucando sua pele queimada com suas unhas duras, lambendo
seu rosto, era o único elo com a realidade que tinha.
Tig e a Sra.
Frederikson lhe olhavam com tranquilidade. Kajsa sorriu, tinha voltado do
delírio! Afagou e elogiou o cachorro, coisa que normalmente jamais faria,
deixou a dona contente e orgulhosa. Procurou a ficha da Sra. Frederikson no
computador, preencheu os dados e imprimiu os papéis rapidamente. Despediu-se
dela e fez mais afagos em Tig. Pegou suas coisas e saiu, sem nem avisar Ulrika.
Pedalou rápido até o consultório de Viggosen, não havia duas horas que havia
estado ali. Sentou-se na antessala e esperou. Quando abriu-se a porta do
consultório, uma outra cliente se despediu do médico e ela entrou esbaforida
sem esperar convite. Ele tentou avisá-la que estava saindo para o almoço, mas
ela pediu uma receita de qualquer droga forte, estava definitivamente louca.
Ele pegava suas coisas para sair e ela nervosa, contando tudo que havia passado
desde que saíra do consultório: Tig, o sol inclemente, o total desamparo. Ele
calmamente a olhava com seu leve e discreto sorriso. Ouviu Kajsa pacientemente
e quando ela respirou, tomando fôlego para o relato, ele a convidou para
almoçar, lá poderia contar melhor aquela história.
Desceram as
escadas e caminharam pela rua com Kajsa apreensiva e angustiada. Ele comentava
a beleza do dia e das árvores no Kungsträdgården. Ela também gostava, mas não
conseguia apreciar nada naquele momento, queria só a receita para correr para
farmácia. Entraram num restaurante fino, sentaram-se e ele já pediu ao garçom Surströmming
com batatas sem nem olhar o cardápio. Ela pediu o mesmo, pareceu bom, mas achou
estranho comida tão popular num lugar caro como aquele. Arenque é nutritivo e
saboroso, ele a conhecia bem ao pedir aquele prato, ela se acalmou bastante. Bem
acomodados, ele a autorizou a relatar com calma tudo de novo. Viggosen, ele
mesmo, era um calmante eficiente. Ela respirou e começou a contar
detalhadamente tudo que acabara de viver. A paz e prazer inicial, a preocupação
com Tig ter sumido na macega, a longa espera sentada, a esperança que seria
somente um flash, como o de ontem, logo acabaria tudo, as recordações da
família, o desespero e o choro quando se percebeu sendo consumida pela radiação
solar, a volta a frente da cliente que nada percebeu e contou até que seu
sentimento a respeito de Tig tinha mudado. Estava certa de sua loucura. Quando
parou de falar, o garçom colocou seus pratos na mesa. O perfume do peixe os
encheu de apetite e comeram em silêncio. Ao acabar, pediram um vinho, Viggosen
consultou Kajsa e escolheram um verde português. Somente agora Viggosen falou,
mas não dela ou de sua situação. Começou a comentar assuntos aleatórios.
Comentou que sua filha Emma estava fazendo um intercâmbio no Brasil, numa
cidade litorânea chamada Florianópolis e estava gostando muito. Tanto que
Viggosen e sua esposa até sentiam ciúmes. A descrição do promontório de rocha
da história de Kajsa o havia lembrado muito as fotos que sua filha mandava. Comentou
da tese de doutorado em antropologia que seu sobrinho Erik estava escrevendo na
universidade, da empolgação que aquele assunto lhe trazia. Estudava as diversas
Nossa Senhoras: Lourdes, Sallete, Guadalupe, Fátima e tantas outras. A comoção
que cada uma causava na população. Kajsa ouvia educada, mas queria voltar logo
para o consultório, percebeu que ali ele não falaria nada sobre seu caso.
Tomaram quase toda garrafa daquele vinho fresco e saíram. Kajsa sentia-se leve,
talvez tivesse bebido mais do que o recomendado.
Voltaram ao
consultório de Viggosen comentando o bom trabalho do primeiro-ministro. Na
Suécia, política é um assunto quase tão ameno quanto o tempo ou a beleza das
flores. Na sala de espera do consultório, já havia uma senhora esperando, tinha
hora marcada. Viggosen a avisou que iria terminar de atender outra paciente e
já lhe atenderia. Kajsa sentiu-se um pouco desconfortável com o incômodo que
estava causando, mas entrou. Sentou-se a frente do médico e ele continuou
falando. O conceito de loucura havia mudado muito ao longo da história. Ter
visões ou escutar vozes era tido como bom em muitos lugares e eras. Os xamãs
suecos conversavam com trolls, gnomos e elfos há milênios e eram considerados
sábios exatamente por isso. Os fiéis de Nossa Senhora de Fátima acreditam que
três crianças conversaram com uma senhora morta há dois mil anos. Quem seriam
os loucos, as crianças conversando com o fantasma ou os milhões de fiéis que
acreditam que eles realmente conversaram com ela? Talvez essa fosse a
curiosidade antropológica de seu sobrinho. Para aqueles devotos, nenhuma das
três crianças era louca, mas sim iluminadas. A própria ideia de deus, uma
entidade que é onisciente, onipotente e onipresente e ninguém nunca viu, é tida
por muitas pessoas como uma ideia razoável, elas realmente creem nisso. Talvez
não na Suécia, mas em países como Estados Unidos, Itália ou Espanha, a crença
em um deus assim é partilhada pela maioria dos cidadãos. E ninguém é
considerado louco por isso. Kajsa sentiu uma certa vergonha e baixou a cabeça,
pois sua mãe e seus quatro avós, todos acreditavam em Deus enquanto vivos. Na
sua família, ela era a primeira geração de ateus. Para disfarçar seu
constrangimento de ser de uma família com possíveis antecedentes de insanidade
mental, Kajsa contou de um tio que afirmava ter sido abduzido por alienígenas.
Viggosen
continuou sem nenhuma preocupação com a paciente na sala de espera. Os artistas
mais famosos já foram considerados loucos. Duchamp colocou um mictório de ponta
cabeça numa galeria e chamou de fonte para revolucionar a arte. Numa época que
todos tentavam pintar da forma mais fiel possível a realidade, Van Gogh batia
com o pincel na tela de tal forma que suas pinturas davam somente a impressão
de retratar algo real, mas transmitiam mais emoção que a própria realidade. A
loucura pode ser libertadora e trazer sentimentos até então desconhecidos ao
ser humano. Há quem pense que enfeitar o corpo com tatuagens e piercings é
loucura, ou mesmo torcer para um time de futebol. No entanto, há fanáticos por
essas coisas aos milhões. O matemático John Nash era um conhecido
esquizofrênico, via e conversava com pessoas que não existiam, porém, isso não
o impediu de ganhar o prêmio Nobel de economia na Suécia. Nash era um que
admitia suas visões e diálogos com elas, mas quantas pessoas também não as têm
e vivem sem sair do armário?
Empolgado,
Viggosen lembrava um exemplo atrás do outro. Chamava a atenção de Kajsa que
loucura pode ser indistinguível da realidade. Por muito tempo, ser canhoto ou
homossexual foi considerado loucura e até associado a possessões demoníacas.
Hitler queria matar os homossexuais, ciganos e judeus, muitos o consideram
louco, pois, realmente, era um maníaco genocida, mas ainda há muita gente que
acha que ele agiu bem e fez o que deveria ter feito. Atualmente, o presidente
americano Trump ou o brasileiro Bolsonaro, além de muitos outros políticos
mundo a fora, não acreditam que preservar o meio ambiente seja de alguma valia.
De novo, para uns isso é loucura, mais dois tiranos genocidas como Hitler, para
outros, sinal de sanidade mental. Loucura seria viver imaginando cenários
climáticos apocalípticos que nunca aconteceram. Talvez os “loucos” vejam ou
sintam o que lhes falta. Quem se sente desamparado, “sente” a proteção de um
deus, se conforta e agradece por isso. Até constrói templos em agradecimento.
Na Suécia, quem perde alguma coisa pede um favor para um gnomo e esconde um
doce no jardim como escambo, então acha o objeto e acredita que foi uma boa
troca. Se os ratos ou o gnomo comeram o presente, tanto faz para aquele que crê
que foi o gnomo. Quem tem câncer fica com muito medo e pede a cura para algum
santo que crê possa ajudar e, para essa pessoa, o tratamento quimioterápico foi
somente um instrumento dos poderes mágicos da entidade. Parece loucura, mas não
para quem precisa daquela muleta metafísica. Nietzsche chamava de “gente
superior” quem não precisa desse tipo de auxílio, mas a grande maioria da
população é somente “gente” e se conforta com ilusões anestésicas. E nem é
preciso pensar em coisas sobrenaturais para perceber que a loucura é
onipresente na sociedade. Se um cliente pagar suas compras para o comerciante
com uma nota de cem coroas, tanto um quanto o outro acreditando que aquele
papel colorido tem valor de troca, os dois sairão contentes. O dinheiro é uma
ilusão coletiva, uma ficção inventada em algum momento, uma verdadeira loucura.
Se a alucinação é compartilhada por mais gente, deixa de ser loucura e vira até
lei, qualquer um passa a ter fé numa alucinação coletiva. Louco passa a ser
quem rasga ou queima dinheiro. As loucuras movem a economia mundial. Harari,
historiador israelense, acredita inclusive que foram exatamente as ilusões, as
histórias inventadas sobre deuses, gnomos ou dinheiro é que fizeram o
diferencial do ser humano sobre as outras espécies. Viggosen lembrou ainda que
a loucura não é uma coisa necessariamente ruim, tanto que muitas pessoas
inclusive procuram ativamente estados alterados da consciência, querem ficar
loucas pelo menos por alguns instantes usando drogas alucinógenas, como LSD ou
a mescalina. A loucura é humana, faz parte da nossa natureza. É são aquele que
enlouquece de vez em quando. Além disso, o que é considerado loucura depende
muito do contexto histórico. A loucura não é o problema, o problema é como
reagimos a ela.
Kajsa estava bem
mais calma, não acreditava mais estar louca, mas ainda queria saber o que fazer
para não ter mais aqueles flashs malucos, a fuga da realidade, o desespero e a
dor que sentia. Viggosen a alertou que, por ser um ginecologista, não poderia
prescrever drogas psicoativas como ela queria. Mas recomendaria férias, que era
o que ela obviamente estava precisando. Escreveu no receituário sua
recomendação de seis meses de férias, carimbou e assinou o papel. A encorajou a
levar aquele atestado o quanto antes à assistência social, eles saberiam o que
fazer. Se depois das férias ela ainda sentisse aqueles sintomas, ele a
encaminharia para um colega psiquiatra. Levantou-se e conduziu Kajsa a porta
com uma última recomendação. Porque não ia para Florianópolis? Lá tinha
exatamente o que ela estava precisando. Emma poderia guiá-la por lá, era
esperta e já estava bastante familiarizada com o lugar. Se quem tem desamparo
procura um deus protetor, quem como ela tem toda segurança do mundo porque não
procura alguma aventura na natureza desconhecida? Viggosen ainda acrescentou
que achava que era por isso que ela tinha tido essas visões, o cérebro a estava
indicando o que faltava em sua vida, como quem tem fome só pensa em comida.
Viggosen era um
excelente médico, Kajsa sentiu-se bem melhor, subiu na sua bicicleta e antes de
sair pedalando, conferiu seu celular. Três chamadas não atendidas de Ulrika. Resolveu
voltar ao escritório antes de qualquer coisa, já era quase três da tarde.
Entrou na sala da supervisora que sorriu e veio até ela, a abraçou e beijou.
Kajsa ficou totalmente sem jeito, mas foi receptiva ao carinho da colega e
estranhamente, sentiu uma atração inesperada por ela, talvez fosse seu perfume
delicioso. Ulrika suspirou aliviada, em vinte anos trabalhando no mesmo local,
era a primeira vez que não almoçaram juntas. Pediu explicações, mas não de
forma a repreendê-la, mas com sincero interesse, percebeu que a amiga não
estava bem. Sentaram-se no sofá e Kajsa contou tudo para a amiga. As últimas
vinte e quatro horas tinham sido uma incrível montanha russa emocional. O
promontório de rocha, as conversas com Dr. Viggosen, o aconchego de Magnus.
Ulrika a olhava nos olhos e escutava com atenção e ternura, a conversa rendeu
pelo menos umas duas horas, pediu o atestado do médico, o escritório estava
fechando, disse para não se preocupar, ela mesma encaminharia o papel para a
assistência social no dia seguinte. Levantaram e abraçaram-se de novo,
longamente. Ulrika desejou uma boa viagem, como era mesmo o nome da cidade que
iria? Floriapólis, Flonapólis, Flora... que? Desceram e pegaram suas bicicletas,
despediram-se e Ulrika, se afastando, ainda gritou que a amava. Kajsa achou
aquela manifestação de afeto bem inesperada, mas saiu bem feliz e pedalou para
casa entusiasmada.
Enquanto
esperava Magnus para o jantar, foi fazendo uma lista de coisas a fazer no dia
seguinte. Primeiro, fazer um seguro de viagem, claro. Depois renovar seu
passaporte, comprar as passagens, conversar com Emma, estudar o Brasil e as
hospedagens possíveis por lá. Kajsa tinha entendido Florianópolis como uma
sugestão de Viggosen, mas Ulrika já tinha definido seu destino, pareceu bom. Será
que para entrar no Brasil precisava de visto? Com certeza teria que tomar
alguma vacina para países exóticos. Precisava perguntar na embaixada
brasileira. Teria que comprar um bom repelente, Brasil deve ser o reino da
mosquitolândia! Poderia pegar malária ou alguma outra dessas terríveis doenças
tropicais. Sua lista de afazeres crescia rapidamente, assim como seu entusiasmo
pela viagem que já dava como certa, mas, de um estalo, lembrou de Magnus. Seu
rosto se fechou, não queria levar Magnus para essa aventura que era uma coisa
só dela. Não havia colocado ele em nenhum plano. De certa forma, ele era parte
dessa vida que estava querendo se afastar. Mas de jeito nenhum queria magoar
seu companheiro.
Magnus entrou e
colocou as chaves sobre o aparador da entrada, como sempre fazia. Kajsa reparou
que pela primeira vez as suas chaves não estavam no aparador esperando as de
Magnus, mas sim atiradas ao seu lado no sofá da sala, tal era seu entusiasmo ao
entrar em casa. Aquele detalhe bobo para qualquer pessoa sensata, a sacudiu, sua
vida estava obviamente perturbada por uma avalanche de novidades. Deu um salto
e abraçou e beijou o marido alegremente, como também nunca havia feito, ele até
se assustou e riu. Antes que ele perguntasse o que houve, ela se prendeu a contar
tudo, as alucinações, a angustia, a conversa com Viggosen, a compreensão de
Ulrika, seus planos de viagem. Ele sorriu sem graça. Estava feliz por ela ter
equacionado tão rápido problema de tal magnitude. Mas percebeu-se excluído dos
planos. Ela se angustiou um pouco com sua fala de engenheiro, ele era
modorrento, falava como se a vida fosse um cálculo exato: equação, problema,
magnitude. Ela, como agente de seguros, achava tão mais bela a vida em
probabilidades. Quando ele questionou se não seria uma loucura, isso sim, aquela
viagem para um lugar tão longe e desconhecido de uma hora para outra, ela
levantou-se e foi arrumar a mesa do jantar aborrecida. Ele nada mais disse,
percebeu que tinha infringido aquela regra muito especial para os dois, de respeito
mútuo. Mas ela, de certa forma, estava destruindo a vida pacata que lhe era tão
cara. Foram dormir cada qual no seu lado da cama, como sempre.
O dia seguinte
foi de muita movimentação. A agência de viagens foi a primeira visita da manhã.
Lá tiraram a maioria de suas dúvidas. Florianópolis era um conhecido destino de
suecos, para grande surpresa de Kajsa, havia até pacotes promocionais com
muitos passeios incluídos. Era uma ilha próxima a costa, parecia bem
aventuresco, mas ao mesmo tempo urbano o suficiente. Três pontes faziam o
cordão umbilical da ilha ao continente, como em Estocolmo, pareceu seguro. Na
cidade tinha desde luxuosos hotéis, até campings selvagens. Kajsa optou por um
meio termo, fez reservas numa pequena pousada de uma praia conhecida, pareceu
aconchegante. Achou tudo maravilhoso, principalmente depois de ver as fotos do
quarto, a cama era muito parecida com a sua e tinha até ar-condicionado. Sim,
tinha mosquitos, mas não ia morrer com suas picadas, poderia usar protetores
solares já com repelentes. A vacina para febre amarela era opcional. A moça
garantiu que não tinha onças ou outros animais selvagens perigosos na região,
também avisou que no hemisfério sul era inverno agora, mas que o inverno deles
era muito como o fim do verão na Suécia. Comprou as passagens sem nem falar com
Emma e até deixou a volta em aberto para até seis meses. Estranhamente, Kajsa
não sentia nenhuma culpa ou remorso de não estar trabalhando, ao contrário, seu
trabalho parecia uma lembrança remota do passado. Foi ao local indicado pela
agência de viagens para renovar o seu passaporte, o que foi felizmente fácil e
rápido. Em uma manhã resolveu tudo. Mandou uma mensagem para Viggosen
comunicando sua decisão e pedindo o contato de Emma. Voltou para casa feliz da
vida.
Em duas semanas,
Magnus a levou ao aeroporto Arlanda. Não tinha tido mais nenhum episódio de
alucinação e aquilo lhe indicava como uma sólida certeza que estava certa na
decisão que tomou. Ela tinha tirado sua aliança e ele reparou, aquilo o magoou
um pouco, mas não disse nada. No entender dele ela tinha enlouquecido e o
médico recomendou um afastamento total de seu cotidiano, era isso que ele dizia
aos colegas de trabalho. Eles não eram realmente casados, eram somente amigos
morando juntos, há muito tempo nem sequer transavam, mas gostavam de se apresentar
como um casal e a aliança era o selo daquele acordo. Kajsa estava cheirosa e
radiante no carro. Magnus a elogiou. Ela estava há dias se preparando para a
viagem, mas seguia conferindo sua lista, não queria esquecer nada. Já tinha
estudado tudo sobre Florianópolis, combinado com Emma a data de sua chegada,
feito o seguro de viagem e um cartão de crédito especial com uma boa margem de
gastos. Aos cinquenta e três anos sentia-se mais jovem do que nunca. Passaram
pelo check-in e se despediram. Magnus sentiu que era carta fora do baralho, mas
não ficou triste. Estava contente com a felicidade da companheira de tantos
anos.
Ao amanhecer,
Kajsa desembarcou em São Paulo onde faria a escala para Florianópolis. Estava
descansada, dormira surpreendentemente bem durante a longa viagem, tinham sido
doze horas até ali, mas ainda não tinha chegado. Passou pela alfândega e trocou
de avião, agora um bem menor, sentou-se na janela para ir olhando o país. Ao
levantar voo, Kajsa ficou impressionada com o tamanho de São Paulo, era uma
enorme massa conurbada, muito maior que Estocolmo, cheia de estradas
movimentadas e grandes indústrias, demorou a passar. Mas logo apareceu o que
queria ver, a floresta e o litoral, pena estava um dia um pouco nublado, então
só teve alguns momentos para observar. Mas ficou fascinada, sentiu-se como uma
guerreira viking explorando outros territórios. O ponto alto da viagem foi a
aproximação do aeroporto Hercílio Luz em Florianópolis. O avião sobrevoou toda
a ilha, o sol nascia a esquerda e a ilha se avistava a direita, por sorte,
exatamente onde ela estava, com o rosto colado na janelinha do avião. A
iluminação da paisagem era perfeita. A ilha era tão linda, coberta de florestas,
com muitas lagoas, baías e ilhas menores no entorno. Até lembrava um pouco
Estocolmo, mas com a vegetação bem mais exuberante. O piloto anunciou a chegada
ao destino e a temperatura, apenas um grau de diferença para quando saíra da
Suécia. Ficou contente, o inverno no Brasil era muito mais ameno que na
Escandinávia. Pois claro, deixara Estocolmo a 59º de latitude Norte e estava
chegando do outro lado do mundo, 27º Sul. Trocara o Circulo Polar Ártico pelo Trópico
de Capricórnio. Era uma mudança e tanto, a primeira vez que Kajsa cruzava o Equador
e visitava o hemisfério sul. O aeroporto era bem pequeno, destes que um
tratorzinho traz as escadas para as pessoas descerem do avião para pista. Quando
saiu pela porta do avião, imediatamente sentiu o cheiro do mar que sentira nas
alucinações, olhou o entorno e a cor do céu também era exatamente a mesma.
Aquilo a trouxe uma paz interior inesperada.
Emma a esperava
sorridente com um rapaz jovem como ela. Os dois a beijaram e Kajsa ficou bastante
sem jeito. Emma percebeu e riu, explicou que no Brasil era assim, as pessoas se
beijam ao se encontrar. Estava feliz em vê-la e a recíproca era verdadeira.
Kajsa não a conhecia direito, a última vez que a tinha visto ela era uma
criança de uns dez anos, agora já tinha dezessete. No entanto, conversavam
animadamente como velhas amigas, uma por estar há vários meses sem conversar em
sueco, outra por achar um porto seguro naquela terra distante. Os dois jovens ajudaram
com as malas e conduziram Kajsa ao estacionamento. Emma apresentou João Pedro enquanto
colocavam a mala no carro. Riram por só ter lembrado das apresentações agora,
ele tinha mantido respeitoso silêncio até ali. João era o “irmão” dela no
intercâmbio, Emma estava morando há seis meses em sua casa e já falava
perfeitamente o português. Conheciam a pousada onde ela ficaria, era
relativamente próxima a sua casa. Emma falava sem parar, perguntava do pai e da
mãe, da Suécia e ao mesmo tempo ia dizendo tudo o que tinham planejado fazer
com ela aquela tarde. Kajsa estava impressionada com a recepção calorosa. O
carro seguiu lentamente por uma estrada sinuosa por entre morros e florestas,
tinha muito congestionamento. João Pedro e Emma conversaram um pouco em
português e riram. Os dois tinham matado aula para busca-la.
A lentidão do
trânsito agradava Kajsa que ia olhando tudo com interesse. Era tão diferente,
tão claro. Tinha muita pobreza, muitas casas e comércios humildes, viu carroças
puxadas por cavalos magros, também muitos carros e ônibus espremidos em vias
apertadas e tortuosas, muitos cães soltos e pessoas na rua, grandes pássaros
brancos. Tudo era estranho para ela. Passaram ao lado de uma linda lagoa com
alguns barcos ancorados e subiram um morro íngreme numa estrada ladeada de
florestas, de repente uma linda vista surgiu numa curva da estrada, uma baía de
areias brancas e mar verde claro. O mar tinha exatamente a mesma cor daquele
que Kajsa havia visto nos seus momentos fora da realidade. Mas ali era real,
ela não estava presa no promontório. Emma ia o tempo todo falando por onde
estavam passando, os nomes dos lugares, quando iriam visitar as atrações, como
ela iria gostar. Entraram numa viela ainda mais apertada ao lado de um canal
cheio de barcos de pesca e pararam a frente da pousada que tinha uma aparência
maravilhosa, melhor que na foto. Kajsa fez o check-in e Emma avisou para tomar um
banho, descansar um pouco, porque em uma hora e meia ia voltar para leva-la ao
almoço, os pais de João Pedro queriam conhecê-la.
A pousada era
maravilhosa, o quarto tinha uma bela vista para a praia da Barra da Lagoa, o
banheiro era amplo e bem limpinho e até agora Kajsa não tinha visto um mosquito
sequer. Aquela constatação a deixou bem mais tranquila. Tomou banho e desfilou
nua pelo quarto, a grande janela a fazia perceber-se integrada a natureza lá
fora, sentiu-se privilegiada com sua sorte e pensou em compartilhar com alguém
aquele momento feliz. Lembrou-se de Ulrika, a decoração da pousada era bem do
gosto dela. Tirou uma foto da vista e outra do quarto e mandou via internet. Cobriu-se
de protetor solar com repelente e vestiu-se, armou-se com seus óculos de sol e
um ridículo chapéu amarelo de algodão, mas que a protegia bem. Foi para
recepção esperar Emma que lá já estava com João Pedro. Saíram animados. O carro
fez o caminho inverso da manhã e Kajsa ia apreciando com gosto a paisagem.
Abriram as janelas e aquele cheiro de mar como o do promontório a invadia, a
claridade certamente era a mesma. Estava no lugar certo e de alguma forma
aquilo a preenchia de um sentimento bom.
Chegaram a um
pórtico luxuoso com dois guardas na guarita depois de passar por ruas estreitas
e casinhas humildes. A cancela se abriu e ao entrar, pareciam ter mudado de
país, o condomínio onde João Pedro morava era bem diferente do resto dos
lugares onde haviam passado. As ruas eram amplas e retas, as casas eram
luxuosas mansões e não tinham muros, o lugar não tinha movimento de carros,
carroças ou cães soltos. Kajsa e Emma comentaram a brutal diferença social em
sueco. Emma explicou que os pais dele eram ricos para os padrões brasileiros e
havia uma segregação deles com o resto do povo, evidenciada por muralhas,
vigilantes e cercas eletrificadas. Emma atualizou João Pedro em português sobre
o assunto que trataram e Kajsa percebeu que ele sentiu uma mistura de orgulho
com constrangimento. Pararam na garagem atrás de, Kajsa reconheceu de imediato,
dois carros suecos! Sentiu uma instantânea familiaridade e simpatia com a
família. Dois Volvo, como o dela, um V40 e um XC90. Kajsa exclamou sua surpresa
e Emma de novo esclareceu que no Brasil, Volvos eram carros de luxo. Kajsa
percebeu de que lado estava da equação social no Brasil. Sentiu uma certa
vergonha e entendeu a cara de João Pedro. Três carros e uma casa tão grande,
quantas pessoas morava ali? Somente três, João Pedro e seus pais,
temporariamente Emma.
Ao descer do
carro, Kajsa percebeu um delicioso aroma de carne assada. Na parte de trás da
casa, na frente de uma linda piscina, o casal preparava um churrasco. Emma fez
as apresentações, Antônio Carlos e Maria Helena falavam inglês, idioma adotado
para o almoço, somente João Pedro não falava. Kajsa nunca tinha visto tanta
carne junta. Tinha gado, porco, carneiro e galinha. O aperitivo foi com
bolinhas de carne que todos mergulhavam alegremente num prato com areia. Emma
esclareceu em sueco que eram corações de galinha na farinha de mandioca, um
quitute apreciado em Florianópolis. Tudo era novidade para Kajsa. Ninguém
sentava direito e parecia que não tinham intenção de fazê-lo, apesar de ter
várias cadeiras. O local de assar as carnes era uma espécie de lareira alta do
chão na parte exterior da casa. A cerveja era bem ruim, e estava demasiadamente
gelada para o gosto dela, mas a comida era ótima, até a areia de mandioca era
saborosa. Conversaram animadamente, ambos os cônjuges eram psiquiatras. Por um
momento, Kajsa ficou receosa que Viggosen tivesse contado alguma coisa. As
primeiras palavras que Kajsa aprendeu em português foram churrasco e cerveja.
Achou as duas muito curiosas, principalmente depois de ver escritas.
Enquanto comiam
e bebiam a vontade em volta da mesa, uma senhora negra, que não foi apresentada,
entrava e saia da casa trazendo mais comida, principalmente saladas. Kajsa
ficou um pouco desconfortável com aquela situação, era obviamente uma escrava
moderna, muda. Discretamente, questionou Emma em sueco a respeito e sim, era
uma serviçal. Aquilo a chocou bastante. Tinha estudado sobre escravidão na escola,
diferença social, racismo e pobreza, mas sempre tratou o assunto como problemas
do passado da humanidade. No seu cotidiano aquilo não aparecia. Na Suécia tinha
diferença social, bairros pobres de imigrantes, mas era uma coisa que o país se
envergonhava e as políticas públicas tentavam minimizar, mas aquilo era
diferente, explicito. Conectou as coisas que Viggosen falou sobre loucura com
aquele churrasco e pensou que aquilo sim era insano e não as inofensivas
alucinações que tivera. Kajsa estava caindo no mundo real, começou a perceber a
bolha de bem estar social em que vivia. A consciência veio a Kajsa como num tombo,
de soco, como nas alucinações tinha vindo. A Suécia era um grande condomínio de
luxo protegido pela muralha da distância, do mar e do frio. Kajsa sugeriu que
tirassem fotos do evento. Imediatamente chamaram Dadá, a senhora negra. Ela
veio prestativa e Kajsa a alcançou seu celular, somente agora lhe apresentaram Dandara,
trabalhava na casa há 20 anos, desde antes que Maria Helena engravidasse de
João Pedro. Ela, sempre muito quieta, tirou a foto do grupo na frente da
lareira alta com os espetos de carne. Kajsa pediu uma foto do grupo com Dadá.
Houve um certo constrangimento e João Pedro se propôs a tirar a foto. A
serviçal estava tão à vontade quanto um gato na ponta do trampolim. Emma
traduziu os agradecimentos de Kajsa e Dadá se retirou da área onde estavam e
voltou para cozinha de cabeça baixa.
Terminado o
almoço, Emma e João Pedro queriam levá-la para um passeio. Kajsa despediu-se de
todos e partiram no carro. As duas suecas começaram a conversar em seu idioma
natal, João Pedro respeitou o instante. Emma falou que poderiam falar o que
quisessem, ele não entenderia nada. Comentaram sobre o que chocara Kajsa no
almoço, Dandara, as muralhas, o tanto de carnes, a diferença do condomínio para
os outros lugares da cidade. Emma concordou e disse também ter se chocado no
início, mas que agora estava habituada, havia se inculturado. Subiram uma estrada
sinuosa no meio da floresta e lá em cima pararam para observar um mirante. A
paisagem era belíssima, florestas, mar, lagoas, barcos desenhando a água. João
Pedro chamou a atenção de Kajsa para o condomínio onde morava, dava para ver
dali. Realmente, era visível de longe e a diferença das outras casas era
evidente. Kajsa pensou que aquela diferença social dava para se avistar até da
lua, mas nada falou. Seguiram o caminho e a estrada desceu o morro do outro
lado. Passaram na frente da escola na qual os dois estudavam e subiram outro
morro alto, desta vez numa estrada cercada de casas, para, noutro mirante, ter
o vislumbre do centro da cidade, das pontes e do continente. Visitaram uma
linda avenida a beira mar e o manguezal que impressionou muito a visitante,
parecia um safari, com árvores estranhas, caranguejos e pássaros. Muitas fotos
depois, voltaram para a pousada. Às cinco da tarde largaram Kajsa para
finalmente descansar da viagem. Na Suécia seria nove da noite, ela agora estava
cansada, o dia tinha sido muito longo. Prometeram voltar no outro dia para
almoçar num amigo nativo que também queria conhecer Kajsa.
Kajsa deitou na
cama exausta e viu que Ulrika tinha respondido suas mensagens da manhã. Sentia
sua falta no trabalho e queria estar com ela naquela pousada do Brasil. Aquelas
manifestações de afeto aconchegaram o espírito de Kajsa de uma forma que a enterneceu.
Magnus perguntava somente se tinha chegado bem. Mandou fotos do churrasco, dos
mirantes, da avenida a beira mar e do manguezal para Ulrika, sua irmã, Viggosen
e Magnus com comentários protocolares. A colega foi a única que respondeu
imediatamente. Começaram uma frenética troca de mensagens até que Ulrika propôs
uma ligação telefônica. Kajsa relatou aquele primeiro dia como uma revelação.
Sentia uma coisa esquisita no Brasil, se percebia nascendo de alguma forma. As
diferenças todas para Suécia, as cores, as vivências, a claridade, as casas, as
pessoas e seus nomes, os cheiros, os sabores, eram muito estranhos, lhe
desacomodavam. Sentia estar consciente pela primeira vez. Não conseguia nem
pronunciar os nomes ou verbalizar direito o que sentia. Faltava-lhe palavras no
repertório para descrever as coisas que via e sentia. Talvez, as palavras
necessárias nem existissem em sueco! Ao mesmo tempo era uma experiência
instigante, que a fazia querer mais daquilo. Era como se sua vida até ali tinha
sido sem sal ou tempero e suas alucinações e aquela viagem tinham condimentado
sua existência. Sentia uma ansiedade de viver mais que até então nunca havia
experimentado. Uma angustia ao perceber o tempo que perdera até ali e o quanto
ainda tinha para viver, talvez fosse pouco diante do tanto de mundo que tinha
para conhecer. A amiga, do outro lado do mundo, comemorava o entusiasmo de
Kajsa e a estimulava ainda mais. Ambicionava ter sua coragem e também sair do
útero acolhedor da sua vida regrada. Era óbvio que Kajsa houvera nascido para o
mundo. Tinha sido um momento sofrido, como qualquer nascimento, de incertezas e
inseguranças, mas que possibilitava uma liberdade e um crescimento ilimitado.
As duas começaram a chorar com o poder da metáfora que encontraram e aquilo as
uniu como nunca. Ficaram mais de duas horas ao telefone. Kajsa sentiu uma
proximidade de Ulrika que nunca havia sentido com ninguém.
Desligou o
telefone e relaxou. Passou a refletir, rindo e chorando sozinha no quarto da
pousada como uma boa louca. Sentia-se viva como nunca estivera. Via e sentia as
coisas de uma forma totalmente diferente, percebia só agora o mundo que a
família, o casamento e a pátria haviam lhe privado até ali. Há pouco mais de 24
horas, Kajsa tinha saído de sua casa em Estocolmo, mas já sentia que não era
mais a mesma. Aliás, estava se conhecendo, já nem sabia mais direito quem era.
O que era seu “Eu” estava mudando a todo instante. Tinha uma sensação
estranhíssima de si. Precisou se afastar onze mil quilômetros de sua terra
natal para perceber que as alucinações que sofrera, que tinha primeiro
entendido como loucura, eram um pedido de socorro de seu corpo. O vômito de
alguém que comeu algo estragado. Quando entrou na idade adulta, Kajsa se
encaixou bem nos trilhos da vida-via férrea sueca. Aos vinte e poucos não via
graça em nada, encaminhava-se para ser uma solteirona deprimida. Achou que
seria melhor assumir o relacionamento com Magnus, que não lhe dava nenhum
entusiasmo, mas tranquilizava a si, sua família e a sociedade. Arrumara um
trabalho que não gostava, mas remunerava bem e lhe dava uma estabilidade
financeira confortável. Assumira um longo financiamento do apartamento no
Kronobergsparken. Conhecera Ulrika, uma boa amiga que se interessava por suas
escolhas, respeitava e lhe estimulava. A vida parecia estar resolvida, com base
sólida, equilibrada, clara e segura, mas era um pouco mórbida, uma tediosa
espera pela chegada da morte, demencial. O que sentia agora era completamente
diferente, um salto num abismo vazio e escuro, um caos, mas que lhe dava um grande
prazer em viver, o saudável desequilíbrio que passava era alegre e estimulante.
Kajsa passou a ver a loucura, ou aquelas alucinações pelas quais passara, como
uma grande amiga. Fez a higiene dental e tomou uma ducha quente, adormeceu como
se fosse a primeira vez que dormia.
Kajsa acordou
ainda estava escuro. Nunca tinha dormido tão bem, se espreguiçou com calma e
sentiu-se com doze anos. Passou a mão em seu rosto e sentiu algo diferente,
talvez estivesse menor. Ou talvez ela nunca tivesse se tocado de forma que se
percebesse. Pela janela, viu que o céu estava estrelado e a lua cheia. Levantou
de um pulo e foi olhar a praia. Ficou maravilhada com a cena. A areia da praia estava
prateada pelo luar e as ondas faziam pinturas vivas como as de Van Gogh. Será
que ele também tinha passado pelo que Kajsa passou? Viggosen lembrou dele ao
falar da loucura e agora ela via as luzes das casinhas a beira mar exatamente
como aquelas das suas pinturas. A paisagem estava viva e em movimento, ela nunca
tinha reparado nada assim. Sentiu uma conexão com ele e sua arte, com a praia e
as casinhas e ficou bem feliz. Viu o movimento na areia, pescadores preparando
um barco a remos. Vestiu-se rápido e saiu do quarto, queria presenciar aquele
trabalho braçal primitivo. O porteiro da pousada se surpreendeu com aquela
hóspede madrugadora, eram quatro da manhã. Entenderam-se de alguma forma em
inglês e ele a guiou até uma ponte treliçada de aço que levava até a praia
sobre o canal da barra. O canal estava movimentado com embarcações de pesca
saindo para o mar. Kajsa estava tão feliz que correu pela areia da praia até o
barco que tinha visto da janela. Alguns homens empurravam uma enorme canoa para
a água sobre troncos, eram rápidos e falavam alto. Ventava e estava um pouco
frio, mas os pescadores entravam na água como se fosse verão, estavam com
poucas roupas, alguns até descalços ou com chinelos de borracha. Kajsa reparou
que a canoa era de um pau só, delicadamente entalhada num enorme tronco, também
que os pescadores eram magros e musculosos. Quando flutuou, subiram no barco agilmente
e começaram a remar contra as ondas. A canoa avançava vagarosamente, o esforço sincrônico
dos homens a bordo era hercúleo, as ondas estouravam na proa e faziam a canoa
subir. Kajsa ficou bem apreensiva sobre o sucesso ou não da empreitada, mas os trabalhadores
na praia nem mais olhavam para o barco, já recolhiam os troncos despreocupados.
Comparando o trabalho arriscado daqueles homens com o seu, eles que enfrentavam
os elementos da natureza com coragem e destemor, Kajsa se percebeu patética no
seu escritório. No horizonte, uma luz avermelhada anunciava a chegada do dia
enquanto a canoa se afastava da praia numa cadência bem mais calma depois da
rebentação. A cena era tão linda que Kajsa pensou em pinta-la e entendeu porque
o mar e as embarcações entusiasmaram tanto poetas, pintores e escritores ao
longo da história. Ela nunca tinha percebido tanta beleza na existência.
Sentou-se na areia da praia para admirar o nascer do sol no Atlântico. Lembrou
que estava sem protetor solar, sem óculos de sol, sem repelente, sem o chapéu
de algodão, sem a carteira ou celular, estava sozinha num pais estranho a
milhares de quilômetros de casa, mas sentia uma felicidade que a tornava plena,
estava embriagada de uma alegria difícil de explicar. Kajsa chorou de soluçar,
tinha nascido e enfrentava os elementos da natureza.
Com o espírito
cheio de luz dos trópicos, Kajsa voltou para a pousada e se tapou de protetor
solar. Louca sim, mas queimada não. Pegou todos os apetrechos de uma turista
sueca e foi tomar seu café da manhã. A pousada oferecia muitas frutas, aquilo
agradou Kajsa. Só o abacaxi e a manga na Suécia seriam o preço da diária. Tomou
um suco de uva porque não tinha de maça, mas gostou. Os pães eram estranhos,
ela escolheu um sanduiche feito com uma bagette, tinha até alface e tomate lá
dentro. Saciada, saiu faceira com seus planos, pretendia caminhar pela praia e
tirar fotos. Atravessando a ponte treliçada, parou para olhar o movimento, os
barcos entravam na barra voltando da pescaria, agora o sol já estava alto. Algo
chamou a atenção de Kajsa na água no fundo do canal, uma enorme tartaruga
marinha nadava despreocupada. Para seu deleite, o bicho vinha respirar de vez
em quando na superfície. Kajsa tirou várias fotos e quando já ia saindo da
ponte, percebeu um pinguim também fazendo a mesma coisa que a tartaruga, ia até
o fundo e voltava para respirar. Talvez eles recolhessem os restos que caiam
dos barcos pesqueiros. Kajsa só tinha visto pinguins no zoológico, eles não
existem no hemisfério norte. Tartarugas marinhas só em documentários da
televisão. Voltou a perceber-se como uma exploradora viking, uma grande
exploradora viking de doze anos bem faceirinha. Saiu rindo sozinha da ponte com
aquela imagem mental que criou.
Se colocou em
marcha pela enorme praia da Barra da Lagoa, tinha toda a manhã até Emma vir lhe
buscar para o almoço. Havia muitos restaurantes na beira da praia, mas conforme
foi caminhando, foram escasseando. Logo só via a natureza, dunas e mar. O sol e
a sede começaram a castiga-la, resolveu voltar. Pegou uma viela que ia até a
praia. As paisagens construídas e humanas eram tão interessantes quanto a
natural. Entrou numa loja de artesanato, lá dentro uma mulher fazia renda. O
trabalho era minucioso e delicado, mas rápido. As linhas pendiam presas a pesos
de madeira, e a mulher manuseava os pesos fazendo a trama sobre um rolo almofadado.
Kajsa lembrou de Ulrika, como ela gostaria de ver aquilo. Pediu para filmar e
comprou uma grande renda para amiga. Parou num pequeno restaurante e se
entendeu em mímica com o garçon, tomou um suco de laranja. Pagou com seu cartão
de crédito. Até agora não tinha visto nenhum mosquito, nem no manguezal, mas
todo mundo aceitava cartão. Isso lhe provava que o Brasil era no mesmo mundo da
Suécia, mas com certeza um outro lado do mundo. Talvez o lado de fora do útero
que a conteve até ali. Voltou para pousada para esperar Emma.
Emma e João
Pedro apareceram depois da uma da tarde, Kajsa já estava faminta. Eles vieram depois
da escola em estranhas bicicletas, muito enferrujadas, as duas com uma prancha
de surf pendurada ao lado. Nenhuma tinha garupa para ela. Emma a tranquilizou
que aquilo tudo era para tarde, agora iriam almoçar na casa de um amigo. Foram
caminhando, empurrando as bicicletas. Kajsa foi falando em sueco contando suas
aventuras e emoções da manhã. Emma disse que talvez Kajsa já tivesse cruzado
com Neno, pois ele é pescador na Barra da Lagoa. Para surpresa de Kajsa, a casa
de Neno era bem próxima a pousada e era muito, muito humilde, amontoada em meio
a outras, como numa aldeia medieval, sem garagem ou carros. Emma e João Pedro
foram entrando sem pedir, um forte cheiro de peixe encheu de expectativas
Kajsa, ela gostava de arenque. A parte de trás da casa dava para o canal e
tinha uma pequena embarcação a motor amarrada praticamente dentro da área dos
fundos. Tanto a casa quanto o barco eram feitos de madeira e estavam muito
velhos. Neno os recebeu com alegria, já com a mesa posta. O cheiro da comida
era de salivar, tinha peixe frito, arroz, aquelas mesmas areia de mandioca e a
cerveja ruim do churrasco do dia anterior e uma tigela com uma gosma estranha.
O pescador e os adolescentes conversavam animadamente, Emma traduzia o que
achava necessário. Seu nome era Nelson, Neno era seu apelido. Kajsa ficou
contente, primeiro nome que ela conseguia pronunciar adequadamente, pois era
igual em sueco. Dadá e Neno, os pobres, com apelidos de quatro letras, os ricos
com pomposos nomes duplos. Aquilo chamou a atenção de Kajsa, também o fato que
tanto Emma quanto João Pedro estavam tão a vontade ali quanto no condomínio de
luxo. Sim, era mesmo Neno aquela manhã na canoa que Kajsa testemunhara sair,
ele a tinha visto na praia. Eles estavam comendo o resultado da pescaria. O
peixe frito era somente salgado, sem tempero algum. Não era arenque, claro,
eram tainhotas e garoupetas, peixes jovens e sem valor comercial que tinham
vindo junto na rede, mas eram deliciosos. Kajsa sentiu como se tivesse voltado
no tempo, a refeição tinha o sabor da infância, das coisas simples, sentiu-se de
novo aquela guerreira viking com doze anos. A gosma era pirão de peixe, também
agradou muito, tinha farinha e temperos vegetais colhidos ali mesmo no
canteirinho da casa. Almoçaram com o acompanhamento do barulho de embarcações
descendo ou subindo o canal. Cada uma que passava balançava fortemente o barco
de Neno e ele saudava os amigos com gritos e um diálogo curto.
Kajsa percebeu
que ambas as casas que já tinha visitado no Brasil tinham uma arquitetura
semelhante: da rua dava para se passar para os fundos onde tinha uma área com
mesa para refeições e um local com água. Na dos pais de João Pedro, uma piscina
privada, na de Neno, uma canal de navegação público. Kajsa ia tomando notas
mentais, sempre imaginando contar para Ulrika. Nas duas refeições que fez com
nativos comeu aquela “farofa”, o nome engraçado da areia de mandioca. Também
percebeu que todo mundo ficava meio em pé para comer. Ela foi convidada a
sentar nas duas refeições, mas ficava desconfortável sozinha na mesa, Antônio Carlos
ficava girando os espetos de carne na frente da lareira, Maria Helena ficava em
pé com um joelho sobre o assento da cadeira, Neno ia e voltava do fogão com
mais pedaços de peixes fritos, os dois jovens levantavam-se a toda hora para
pegar bebidas, guardanapos ou qualquer outra coisa que faltasse. Era tudo muito
curioso para Kajsa que começava a pintar um quadro da cultura nacional
brasileira. Os ricos comiam carne, os pobres pescavam seu próprio peixe, mas
tanto ricos quanto pobres gostavam de cerveja ruim bem gelada. Neno até
convidou para uma voltinha de barco, mas os visitantes tinham outros planos,
iam surfar na praia Mole com Kajsa e pediram uma bicicleta emprestada.
Kajsa só
entendeu os planos da tarde quando Neno levou sua bicicleta para frente da casa
quando terminaram de comer, entregou a ela e, ao despedir-se dos três, disse
que iria chamá-la de Cacá. Emma explicou em sueco que ele havia emprestado a
bicicleta e inventado um apelido para Kajsa. Ela se alegrou, tinha sido aceita
e batizada no Brasil numa classe social diferente daquelas que usam Volvos. A
bicicleta dele era ainda mais enferrujada que a dos outros dois, mas também
tinha ganchos para levar uma prancha de surf. Os três empurraram lomba acima as
bicicletas, João Pedro permanecia quieto e as duas suecas iam tagarelando,
trocando experiências. A diferença social era brutal entre casas, veículos,
nomes e refeições. Neno a havia incluído na casta de baixo com o apelido que
criara. Emma nem tinha percebido ainda a questão dos nomes, achava que era mais
uma questão de informalidade de Neno. Mas, talvez Kajsa tivesse razão, sempre
chamavam Dandara de Dadá e Maria Helena era sempre Maria Helena. Consultado em
português, João Pedro também nunca tinha reparado, mas lembrou que Neno o
chamava de JP e na escola tinha o apelido de Chuck, o boneco assassino do filme
de terror. Riram com aquilo e João Pedro acrescentou que Dandara era o nome de uma
heroína da resistência negra a escravidão no Brasil, uma guerreira do Quilombo
dos Palmares e o Nelson de Neno vinha de Nelson Mandela, herói da luta contra o
apartheid sul africano. Kajsa, ao ouvir aquilo, se encheu de orgulho por ser
reconhecida como Cacá, uma resistente a opressão. Pensou em contar para Emma o
motivo de sua viagem ao Brasil.
O morro parecia
não ter fim, há quinze minutos empurravam as bicicletas lomba acima. Devia
estar uns vinte graus de temperatura, mas Kajsa já suava bastante. A sua rua em
Estocolmo tinha uma subidinha, mas aquilo era completamente diferente, muito
mais íngreme e longo. Mesmo dentro do Kronobergsparken não tinha subida tão
forte. Nem na Noruega lembrava de ter visto algo assim. Chegaram próximos ao
alto do morro e subiram nas bicicletas enferrujadas, as primeiras pedaladas
foram difíceis, mas logo ficaram fáceis. Kajsa lembrou da cena da canoa dos
pescadores na madrugada: empurrando o barco na areia, remando fortemente contra
as ondas, o ritmo suave depois da rebentação rumo ao belo tom avermelhado do
amanhecer no horizonte. Claro que Neno era magro e musculoso, fazia tanto esforço
físico no cotidiano. Agora ela ali também estava tornando-se uma pessoa que
enfrenta os elementos da natureza. Empurrou a bicicleta lomba acima como a
canoa na areia, pedalou forte perto do fim da subida como o início da remada, para
só então desfrutar aquela paisagem de cartão postal da praia Mole deslizando
lomba abaixo como o nascer do sol no mar.
A praia Mole era
realmente mole, a areia era fofa, difícil de caminhar. Largaram as bicicletas
empilhadas longe da água e as prenderam com um cadeado. As ondas eram fortes e
arrebentavam em cima da areia. Não era à toa as bicicletas estarem tão
enferrujadas, a maresia era visível a olho nu. Kajsa achou bonito, mas não gostou
muito, estava desconfortável, mas não falou nada. Tinha muito vento, não daria
para caminhar e muito menos entrar na água, era um mar forte demais. Emma
explicou que o interessante ali era o surf, tinha boas ondas, os dois gostavam.
Conheceram Neno ali, surfavam juntos nos finais de tarde. Ele era bem mais
velho, tinha uns trinta anos, mas os mesmos hábitos da juventude, apesar do
rosto já bem marcado do trabalho enfrentando o mar todo dia e sob sol. Enquanto
os dois jovens colocavam roupa especial para entrar no mar, Kajsa tirava fotos
e explicava a Emma, resumidamente, porque tinha vindo ao Brasil. Era uma
sugestão de Viggosen, o pai de Emma, ele achava que Kajsa precisava de umas
boas férias, sugeriu Florianópolis porque as descrições que fazia das coisas
que via em suas alucinações pareciam com algumas fotos que Emma mandava dali. Viggosen
acreditava que Kajsa deveria procurar aquilo para se curar. Mas até agora,
Kajsa não tinha visto nada parecido com as visões que tivera. Emma e João Pedro
já se alongavam para entrar no mar quando Kajsa descreveu o promontório de
rocha que tinha visto, alto em relação ao mar e cercado de arbustos retorcidos
e cactáceas. Emma parou de se alongar, conversou com João Pedro em português,
colocou o tênis de volta e soltou as bicicletas, sabia onde era o lugar. João
Pedro entrou na água com sua prancha e as duas saíram de bicicleta pela
estrada.
Pedalaram uns
dois quilômetros e subiram empurrando as bicicletas outro morro. Entraram numa
trilha ao lado da praia Mole. Acorrentaram as bicicletas numa árvore e seguiram
caminhando. A trilha era muito bonita, passava por uma pequena praia, por
ranchos de pescadores, por campos com vacas, bem no alto do morro tinha uma
rampa de asa delta de onde se via toda praia Mole, até identificaram João Pedro
surfando! Emma caminhava rápido e Kajsa tinha dificuldade em segui-la, não
estava acostumada a caminhar em trilhas tão precárias, olhava o caminho com
cuidado, não queria torcer o tornozelo. Mas conforme caminhava sua ansiedade
aumentava, a vegetação ficava cada vez mais parecida com os arbustos do
promontório. Caminharam cerca de uma hora, até que Emma parou e se voltou para
Kajsa. Ali João Pedro tinha tirado umas fotos dela que enviou para seu pai
ainda no verão. Kajsa chegou arfando do esforço da subida e levantou a cabeça,
Emma a olhava sorridente com a roupa de surfar bem no meio de um promontório de
rocha. No momento que viu aquela cena, Kajsa a reconheceu de imediato. Sentiu
uma sensação estranhíssima, seu mundo caiu. Lembrou de uma foto que tinha visto
nalguma rede social de Viggosen, agora era óbvio e nítido. Olhou em volta, o
mar, a temperatura, a claridade, os arbustos espinhosos, o cheiro e a cor do
mar, era tudo igual, menos o sol sobre a cabeça. Sim, era ali mesmo. Emma lhe
chamou a atenção que era inverno e já quase quatro da tarde, talvez na foto não
tivesse mesmo sombra. Toda a mística no entorno das alucinações que tivera
desapareceu totalmente. As duas sentaram olhando o mar e Kajsa contou
detalhadamente tudo que vivera ali. A paz, a dancinha, o tempo de espera, as
bolhas de queimadura, Tig, não ver saída, o desespero, o flash acabar na frente
dos clientes do escritório. Agora conseguia rir, mas tinha sido apavorante. Viggosen
tinha razão. Estar sentada ali, tranquilamente conversando com Emma, era um
remédio milagroso. Agora sentia-se até frustrada, nem suas ilusões eram reais. Emma
riu, contou que às vezes vinha ali com Neno, João Pedro e outros amigos fumar
maconha, pois estados alterados da consciência podem ser muito bons. Kajsa lhe
deu razão, porque agora sentia-se órfã de sua loucura, queria ela de volta. O
sol começou a se por e voltaram caminhando lentamente pela trilha, cada uma com
suas reflexões.
João Pedro já
lhes esperava inquieto na praia Mole, tinham muito o que pedalar até em casa.
Maria Helena ia xingar se chegassem à noite. Se despediram, os adolescentes
voltaram para casa e Kajsa para a pousada na Barra da Lagoa. Ela estava bem
cansada, mas ainda teve que subir todo aquele morro, na volta a subida era
menos íngreme. Largou a bicicleta de Neno no mesmo lugar que tinha visto ele
pegar, por sorte não estava em casa, não conseguiria conversar em português. Caminhou
o pequeno trecho até a pousada desanimada. Entrou no quarto e deitou na cama,
tinha fome, mas nenhuma vontade de sair. Mandou muitas fotos para Ulrika e uma
pequena seleção para Magnus, Viggosen, sua irmã e alguns amigos como Klaus e
Martin. Escreveu uma longa mensagem para Ulrika contando a experiência da
madrugada, a emoção que sentiu ao ver a paisagem viva como nos quadros de Van
Gogh, o esforço dos pescadores, a beleza do amanhecer, a alegria infinita que
sentiu ao perceber-se sozinha e sem carteira, celular ou protetor solar, mas
com muita gana de viver. Contou do apelido que recebera de Neno e como aquilo a
tinha alegrado, não era mais Kajsa, a insossa agente de seguros, mas Cacá, a
jovem aventureira Viking. E no fim, com tristeza, relatou o encontro com o rochedo
das alucinações, como tinha sido desapontador. Que sua loucura era uma mera
ilusão, uma febre pela qual passara, continuava a mesma Kajsa, velha e sem
graça, que tinha um casamento de fachada e comprava Volvos por serem seguros. O
entusiasmo da manhã tinha se transformado em total frustração à noite. Percebia
sua vida agora como uma prisão e as alucinações tinham sido uma grade aberta
por pouco tempo. Mandou a mensagem e foi tomar um banho quente entristecida.
Pensou que
Ulrika não iria responder, já era mais de meia noite na Suécia. Fez a higiene
dental e ao deitar na cama percebeu que ela tinha telefonado. Kajsa se alegrou
e retornou a ligação. Ulrika era quatro anos mais moça que Kajsa, mas sempre
sabia o que dizer na hora exata, estava acordada só para receber os relatos da
amiga. Compreendia sua decepção ao encontrar o promontório de rocha, a mística
das alucinações tinha evaporado. Mas de jeito nenhum Kajsa tinha voltado a ser
a mesma, isso era impossível. Ulrika começou a relembrar toda a trajetória dela
desde que se conheceram na seguradora. Aquela Kajsa que era uma moça morna
morreu. Aquela apagada, deprimida, que trabalhava sem parar para não pensar em
mais nada, que dificilmente ia passear nas férias ou mesmo nos finais de
semana, que não se empolgava nem para ir a um cinema, que mantinha uma rotina
rígida, morreu depois das alucinações! A nova Kajsa que nasceu agora era uma
mulher decidida, autônoma, independente, empoderada, que cruzava o mundo atrás
de auto conhecimento e clareza de espírito. Ulrika lembrou a colega que ela há
duas semanas estava indo ao médico com sintomas evidentes de burnout e agora
estava fazendo trilhas selvagens num país distante, provando comidas típicas de
culturas diferentes, conhecendo jovens cheios de vida em praias paradisíacas. Kajsa
se emocionou e começou a chorar. Era verdade, não precisava voltar a ser aquela
pessoa morna. Ulrika era ateia, mas filha de pastor luterano, pregava usando o
conhecimento que tinha herdado do pai, seguiu falando, inapelável. Lembrou de
uma passagem bíblica sobre os mornos em que Deus ameaça vomita-los. Kajsa agora
era quente, cheia de vida, estava há pouco mais de 48 horas vivendo um sonho de
muitos suecos, conhecendo terras além mar, era uma legítima viking, uma
guerreira, uma desbravadora apaixonante. Ulrika terminou seu discurso de forma
surpreendente. Afirmou que amava Kajsa ainda mais depois das alucinações, a admirava
pela coragem e que seu exemplo tinha a feito repensar muito de sua vida. Kajsa,
que soluçava, pensou não ter ouvido direito e começou a rir. Como?
Ulrika era
chefia na seguradora, decretou que segunda-feira iria se dar férias e também iria
ao Brasil viver aquelas emoções com Kajsa. Desde que tivera as alucinações, Kajsa
vivia uma avalanche emocional, realmente não sentia mais falta de Magnus, nem
lembrava dele. Percebeu que Ulrika não viajaria até Florianópolis para ter
emoções como as dela, era uma mulher prática. Kajsa a conhecia bem, sabia de
suas preferências, sentiu-se um pouco acuada, Ulrika vinha obviamente atrás
dela. Kajsa ria, aquela possibilidade lhe alegrava, na verdade até lhe
excitava. Enfim, transigiu, agora chorando de rir com a amiga ao telefone, afinal
havia saído daquele platô de vida que não a satisfazia. Custou a dormir, estava
bem animada.
No café da
manhã, Kajsa estava radiante. Nem parecia aquela mesma turista cabisbaixa da
noite anterior. Conversou com a sorridente atendente da pousada com a ajuda do
celular para traduzir o que queria: frutas e comidas típicas de Florianópolis.
A moça fez um prato com vergamotas poncan, goiabas, um pequeno pão branco de
trigo e um “romeu e julieta”, um pedaço de goiabada com queijo. Comia animada
olhando a praia, o sol já ia alto quando reconheceu as vozes que gritavam: Cacáááá!!!
Levantou e colocou a cabeça para fora da janela olhando para baixo. Neno e os
adolescentes abanavam alegres de dentro do barco no canal. Kajsa achava muito
estranho que os adolescentes a ficavam pajeando, mas adorava. Pegou suas coisas
de turista, óculos, chapéu ridículo, bolsa de praia, desceu as escadinhas
correndo e entrou no bote rindo, lembrou do que Ulrika falou da convivência com
os jovens. Mal ela embarcou, saíram a navegar pela barra. Era sábado e os dois
estudantes não tinham aula. Emma explicou todo o plano: iam dar uma voltinha em
mar aberto, já que o tempo estava bom, até a ilha do Campeche. João Pedro tinha
pago o combustível para o motor. Os três tinham trazido uma grande caixa
térmica com bebidas e comidas. Neno ia na popa segurando a cana do leme com um velho
boné socado na cabeça, Kajsa sentada perto dele, Emma e João Pedro imitavam a
cena do filme Titanic na proa conversando sem parar em português. Neno a
alcançou um copo com limão e gelo e deu um pequeno discurso que Kajsa não
entendeu. Emma explicou que era caipirinha, uma bebida típica com cachaça,
limão e açúcar. Neno havia oferecido porque ela logo iria vomitar tudo, então
ele queria lhe dar um bom motivo para passar mal. A caipirinha foi aprovada com
uma exclamação contente de Kajsa, mais uma palavra deliciosa para seu
vocabulário brasileiro. Ela nem gostava muito de beber destilados, mas aquele
era diferente. Foi orientada a olhar para o horizonte para não ficar mareada. O
barquinho subia as ondas com lerdeza, parecia que não ia conseguir, depois as
descia correndo. Quando na crista, se via ao longe, quando embaixo, somente o
azul profundo do mar. O compassado barulho do motor, tup, tup, tup, era abafado
pelo vento. O tamanho da embarcação era infinitesimal diante da magnitude do
oceano, mas Kajsa não sentiu medo, ao contrário, sentiu-se maravilhosamente
viva. Foi para a proa do bote, levantou os braços para o alto e gritou
triunfante que era uma guerreira viking. Emma traduziu e Neno brincou que a
caipirinha já tinha feito efeito.
A paisagem era
lindíssima e de longe os morros nem pareciam tão altos. Neno ia apontando as
praias que passavam: Galheta, Mole, Gravatá, Joaquina. Emma apontou o
promontório no qual estiveram no dia anterior, Kajsa achou tão minúsculo visto
dali. A cada dia ficava menor, era uma metáfora de sua vida: ela estava numa
prisão a céu aberto, mas desde que decidiu viajar tinha se libertado das
alucinações e aquele rochedo a beira mar tinha ficado num passado remoto e
esquecido. Parecia ter se tornado somente um marco divisor: Kajsa antes e
depois da rocha. As ondas estouravam nos costões, mas daquela distância Kajsa
se sentia totalmente à vontade. Neno ofereceu um colete salva-vidas, mas ela
recusou, estava gostando daquela liberdade. A insegurança e imprevisibilidade
da situação teriam lhe angustiado muito em outros tempos, mas agora Kajsa era
Cacá, uma outra mulher, totalmente segura de si. Não precisava mais de Volvos
com dez airbags, sentia-se muito melhor em frágeis caícos de madeira velha
subindo e descendo ondas no oceano.
A viagem demorou
mais de duas horas, mas felizmente ninguém ficou mareado. Finalmente o barco
subiu na areia fofa da praia da Ilha do Campeche. Havia dois restaurantes na
pequena baía, mas os dois estavam fechados, talvez por ser inverno, mas não
estavam sozinhos na pequena ilha, um guarda parque veio avisá-los que poderiam
ficar por somente quatro horas e não poderiam deixar lixo de nenhuma espécie.
Saltaram do bote e Neno enterrou sem muito cuidado a âncora. Kajsa olhou para a
pequena embarcação que parecia estar cravada na areia como uma lança a flutuar
no ar, tal a transparência da água. No horizonte, há uns dois quilômetros, estava
a grande Ilha de Santa Catarina onde ficava Florianópolis. Desembarcaram a
caixa térmica de comida e colocaram na sombra das árvores. Neno teve o cuidado
de colocar um pedaço de madeira e uma pedra sobre a tampa, Kajsa não entendeu o
porquê. Os adolescentes correram pela areia branca como crianças felizes num
playground e sumiram na floresta. Sempre a chamando de Cacá, Neno a convidou
com gestos para segui-lo, pegaram uma trilha no meio do mato e logo ele parou e
surpreendentemente falou algumas palavras em inglês. Mostrou algumas escavações
na rocha do chão, era uma oficina lítica de indígenas primitivos que afiavam
machados de pedra lascada ali. Neno gesticulava animado, mostrando como faziam.
Kajsa ficou muito impressionada com aquele testemunho da idade da pedra, mas
será que realmente seriam do neolítico? Na dúvida, fotografou tudo. Seguiram a
trilha e chegaram num ponto alto onde se descortinava todo o oceano Atlântico,
uma paisagem belíssima. Neno voltou-se para ela e para as rochas e apontou
geoglífos, enormes pinturas rupestres no alto do rochedo. Kajsa se encantou com
aquilo, mas Neno nem deu muito tempo de contemplação, seguiu com a caminhada.
Pararam novamente numa espécie de gruta, cheia de pinturas rupestres na
entrada, nas paredes e no teto da pequena caverna, algumas esculpidas em baixo
relevo na rocha. Neno gesticulava, apontava e falava sem parar, mas Kajsa não
entendeu nada. Se fossem mesmo autênticas, a ilha inteira era um sítio
arqueológico de importância maiúscula. Voltaram para a praia dando uma grande
volta na ilha. A vegetação do lado do oceano era igual a do promontório das
alucinações, arbustiva, mas o lado do continente era de grandes árvores. Coatis
os esperavam na areia, farejando sua caixa de mantimentos. Neno correu para
espantá-los.
Os adolescentes
tinham sumido. Neno explicou com gestos e uma palavra bem conhecida em inglês o
que eles provavelmente estavam fazendo. Subiu no barco agilmente e pegou um
enorme saco de papelão e alguns espetos. Voltou para baixo das árvores e abriu
o saco que continha carvão. Vendo aquela movimentação, o guarda parque se
aproximou de novo e disse que acender fogo não era permitido na ilha. Neno
argumentou que levaria as cinzas consigo no bote e o convidou para um churrasco.
O rapaz então cedeu, os convidou para assar o churrasco na cozinha do
restaurante. Kajsa percebeu a negociação e ficou perplexa, na Suécia jamais
alguém desobedeceria a ordem de uma autoridade e muito menos se arriscaria a
oferecer propina para obter alguma vantagem. Mas os dois pareciam extremamente
tranquilos, não havia a menor tensão, o diálogo era amistoso e sorridente. Na
cozinha do restaurante tinha uma lareira alta, como aquela da casa dos pais de
João Pedro, mas enorme, Neno a chamou de “churrasqueira”. Rapidamente acenderam
o fogo e espetaram a carne que tinham trazido. Neno e o guarda conversavam
animadamente e riam. O guarda se chamava Lenoir, mas preferia ser chamado de
Lélo. Com aquele apelido, Kajsa imediatamente identificou a classe social do
rapaz. Neno fez as apresentações, ele era Neno e ela Cacá. Estava tudo em casa,
o grupo virou uma família, o rapaz ofereceu e abriu uma cerveja ruim bem
gelada.
A carne já
estava quase pronta quando entraram na cozinha os adolescentes. Foram atraídos
pelo cheiro. Os dois sem saber onde por as mãos, com aquela cara alegre de quem
fez alguma peraltice muito boa, mas finge normalidade. Lélo aprontou uma grande
mesa na rua, de frente para baía, não tinha a menor intenção de se esconder. Kajsa
ajudou com os talheres e Emma com os pratos. Em sueco conversavam sobre a ilha,
as pinturas rupestres, as oficinas líticas, a negociação de Neno com o guarda. Emma
disse que sim, Florianópolis inteira era um sítio arqueológico importante e
tinha muito mais daquelas pinturas e escavações na rocha para ver, queria até mostrar
um monumento megalítico enorme perto da pousada, planejava fazer a caminhada
amanhã com Kajsa. Sentaram na mesa olhando a paisagem e conversando, enquanto João
Pedro e os homens riam e bebiam juntos lá dentro da cozinha cuidando os espetos
na churrasqueira. Sim, a corrupção que testemunhara era bastante comum no
Brasil, Maria Helena deu um carro para João Pedro, mas ele nem idade tem para
tirar a licença para dirigir. As oficinas líticas que Kajsa viu tinham uma
curiosidade, estavam a três metros do nível do mar, isso indicava que o mar
desceu muito, pois elas devem estar banhadas para funcionar. Emma já tinha
visitado a ilha no verão e estudado aquilo na escola há pouco mais de um mês,
achava um assunto apaixonante, foi ela que propôs o passeio até ali. Kajsa se
sentiu muito bem acolhida: Emma planejava passeios, João Pedro até pagava
combustível e Neno patrocinava o barco e a carne.
Depois de uns
segundos de silêncio, contemplando a paisagem, Emma falou que ela e João Pedro
tinham acabado de perder a virgindade. Kajsa se surpreendeu com a declaração,
agradeceu a confiança que Emma depositava nela para contar, disse que percebeu
o clima entre eles. Emma seguiu falando, disse que foi bom, mas nada muito
especial como diziam que seria, sinceramente achava melhor sozinha no banheiro.
Kajsa queria dizer: bem-vinda ao clube! Mas se conteve, não queria desapontar uma
moça cheia de esperanças. Deu um discurso professoral, que na primeira vez é
assim mesmo, difícil se entender direito. Sexo é uma linguagem que se aprende
fazendo, como caminhar ou andar de bicicleta. Nas primeiras vezes que um bebê
caminha, anda todo torto, titubeia e cai, no sexo não é diferente, é preciso
muita prática par se chegar a perfeição. Também alertou para o fato que João
Pedro, por ser também inexperiente, talvez não tenha sido um bom parceiro. Emma
achava que o problema era com ela, porque ele gostou, até gozou. Kajsa começou
a ficar nervosa, não tinha formação para aquela conversa, era uma simples
corretora de seguros em crise, nem filhos tinha justamente para não se
incomodar com aquele tipo de papo. O relacionamento entre as duas estava tão
bom até agora, tão leve, uma turista e uma jovem guia turística em começo de
carreira. Perguntou sobre a prevenção e Emma a tranquilizou, ufa. O que diria
para Viggosen? Diria alguma coisa? Ele já deve ter feito várias falas, era
ginecologista, Kajsa não precisava ensinar nada, se acalmou um pouco. Contou
para a adolescente que para ela também, nunca tinha sido muito bom. Nem sozinha
tinha se divertido muito, talvez não tenha achado os parceiros ideais. Kajsa se
flagrou falando para Emma coisas que nunca tinha dito nem para si. Percebeu que
estava contaminando a experiência da menina e calou-se bem na hora que os
rapazes chegavam com a carne e cervejas para o almoço.
Comeram em silêncio. Kajsa perdida em
reflexões sobre sua própria sexualidade, Emma lançando olhares para João Pedro
que desviava o mais que podia fingindo interagir com os dois homens que eram os
únicos que falavam e riam, já um pouco alcoolizados. O cardápio era simples:
costela bovina, farofa e uma curiosa salada de batata gelada com maionese e
ovos. Terminada a refeição, Lélo se dispôs a lavar os pratos para pagar sua
parte de alguma forma, Neno deitou numa sombra para sestear e os adolescentes
sentaram-se numa pedra a olhar o mar. Kajsa ficou sozinha na mesa, ainda
engasgada com o que dissera para Emma. Precisou vir do outro lado do mundo,
interagir com uma menina recém deflorada num paraíso tropical, para perceber
que era frustrada sexualmente. Olhou para Neno deitado na sombra com o boné
sobre o rosto. Ele era jovem, magro, bonito, musculoso. Será que um amante
latino seria um bom parceiro sexual? Não, não lhe dava nem um mínimo interesse.
Magnus? Talvez no passado, mas agora não. Kajsa lembrou de Ulrika e
imediatamente ficou excitada. Quando olhava sua supervisora como mulher, não como
chefia, ela lhe atraía. Era estranho, Kajsa nunca tinha tido experiências eróticas
com outra mulher, mas agora estava louca para experimentar. Será que as
alucinações tinham sido provocadas por aquele acanhamento sexual? Será que um
enorme orgasmo estava entalado no seu clitóris ou no seu cérebro atrapalhando o
bom discernimento das coisas? Kajsa estava cheia de perguntas e poucas
respostas. Sentia-se ao mesmo tempo uma velha com o libido represado por
cinquenta e três anos e uma intrépida guerreira viking de doze anos descobrindo
sua sexualidade.
O silêncio
imperava na pequena ilha favorecendo as reflexões de Kajsa. De repente, um
aracuã pousa na outra ponta da mesa a fazendo despertar do transe em que
estava, havia muitos pássaros cantando e ela nem havia percebido. Levantou-se e
foi até o mar, despiu-se ficando só de calcinha e sutien e entrou na água. Emma
e João a viram e correram até o barco. Subiram na embarcação e a fotografaram mergulhada
nas águas transparentes. Kajsa não nadava desde os dez anos de idade, ou algo
assim, sentiu-se viva e feliz. Apesar de ser inverno, a água estava boa. João
Pedro e Emma também se despiram e se atiraram do bote. A alegre algazarra na
praia despertou Neno que finalmente levantou-se da sesta e se aproximou, alertou
que estava relativamente frio para aquele batismo de Kajsa nas águas
brasileiras, até o vento secar ia demorar. Os três saíram da água batendo
queixo, apesar do sol. Kajsa tinha uma toalha na sua bolsa de praia, Emma outra
e Lélo foi buscar mais uma para João Pedro no restaurante. Quando Lélo voltava
com a toalha para o rapaz, Neno já saia da praia rindo, constrangido com as
duas gringas malucas que se secavam em público, foi buscar os espetos e a caixa
térmica. Os três homens brasileiros ficaram absolutamente sem ação quando as
duas suecas resolveram trocar-se ali mesmo, ao lado do barco, bem tranquilas
com seus mamilos enrijecidos e pelos pubianos quase a mostra, secaram-se rapidamente
e vestiram suas roupas secas de novo, sem sutien ou calcinha. João Pedro se
sentiu obrigado a fazer o mesmo, até para abafar o erotismo dos outros dois, mas
era óbvio seu constrangimento. Emma percebeu e comentou com Kajsa, a diferença
cultural era evidente. Os brasileiros beijam e abraçam estranhos, mas se chocam
ao ver um cantinho de peito feminino fora de contexto. Despediram-se de Lélo e
partiram. A volta foi bem silenciosa, Neno de ressaca na popa e os três
banhistas abraçados com frio a meia nau.
Por volta das
cinco da tarde entraram no canal da barra, o sol já se punha atrás dos morros.
Ao passar entre os faróis, Kajsa sentiu-se em casa. Aquele pensamento a
espantou. Há quatro dias, casa era um lugar bem diferente. Pararam o barco no
atracadouro da pousada e Kajsa desembarcou. Percebeu que Emma estava com os
beiços roxos e a convidou para um banho quente, mas ela disse que estava bem e
logo chegaria em casa, o carro de João Pedro estava perto da Casa de Neno.
Despediram-se e o bote sumiu numa curva do canal. Kajsa subiu rápido as escadas
e entrou no banho. Ligou o ar-condicionado no quente e logo estava bem
aquecida. Deitou na cama olhando para o teto e se deixou descansar, estava
esgotada. Percebeu seu corpo afundando no colchão e a respiração ficando bem
lenta, entrou num estado de profundo relaxamento. Fechou os olhos e pensou que
adormeceria, mas não. Estava mais desperta que nunca e em sua mente desfilava
todas as paisagens do dia. Começou a perceber uma suave ondulação, como se seu
corpo ainda estivesse no barco em alto mar. Aquela sensação não sentia desde a
infância. Lembrou do mergulho nas águas da baía e como aquilo a tinha alegrado,
das pinturas rupestres e das oficinas líticas. O dia tinha sido cheio. Quando
pensou na conversa com Emma sobre sexo lembrou de Ulrika e tocou sua vulva
sentindo uma vertiginosa excitação. Levantou de um pulo assustada e pegou seu
celular.
Emma tinha
mandado as fotos de Kajsa nadando submersa ao lado do barco, eram fotos
maravilhosas, parecia estar voando, pois a sua sombra indicava a distância ao
chão de areia. Imediatamente encaminhou para Ulrika, junto com as fotos das
oficinas líticas, das pinturas rupestres, das paisagens de sonho da Ilha do
Campeche e da viagem de barco. Passados uns minutos intermináveis para dar
tempo de pelo menos ver alguma imagem do passeio, ligou para a amiga. A
primeira coisa que perguntou é se Ulrika estava falando sério de se dar férias
e vir ao Brasil. Sim, já tinha até comprado a passagem via internet. Chegaria em
Florianópolis quarta-feira às oito da manhã. Kajsa começou a chorar e rir ao
mesmo tempo, exultava. Começou a contar todo seu dia, desde o café da manhã com
Romeu e Julieta, os gritos por Cacá do barco, a recusa do colete salva-vidas, o
quão insignificante o promontório ficou de longe, a praia de águas
transparentes, a trilha com testemunhos neolíticos, os coatis, a negociação com
o guarda parque, o churrasco de costela entre os pobres com apelidos de quatro
letras na baía paradisíaca, o mergulho, o frio da volta. A conversa com Emma
rendeu muito papo, foi a parte do relato que Ulrika mais gostou. Ela chamou
atenção de Kajsa para o contraste do ânimo da noite passada para aquela. De
como ela tinha crescido em um dia. Kajsa realmente tinha nascido, saído do
útero que lhe tirava a liberdade. Aberto os braços e as pernas e mergulhado nos
elementos da natureza sem medo e sem salva vidas ou airbags. Estava crescendo
visivelmente e até ajudava os mais novos como Emma. Sobre a sexualidade, Ulrika
falou que achava que tinha como contribuir para as descobertas que Kajsa estava
fazendo. As últimas conversas com Ulrika lhe entusiasmaram muito, enchiam seu
coração de esperança.
Pela manhã,
Kajsa tomava seu café olhando a praia e refletindo sobre o dia anterior quando
Emma chegou de bicicleta, sozinha e macambúzia. João Pedro estava muito
diferente com ela. Parecia não querer mais nem que ficasse no Brasil. Kajsa
tentou consolá-la, talvez a situação voltasse logo ao normal. Para Emma nada
tinha mudado entre eles, foi só sexo, mas ele entendia obviamente de outra
forma e ela não conseguia decifrá-lo. Percebeu uma diferença cultural ou de
gênero importante e não sabia como reverter o mal estar. Mas o fato é que ele
preferiu não vir, apesar de ser domingo e os planos serem muito legais. Ao
lembrar disso, a menina se alegrou, começou a falar da caminhada que fariam
enquanto espetava um pedaço de melão no prato da amiga. Era pertinho dali,
Kajsa não precisava se assustar ou levar muito equipamento, talvez uma hora de
caminhada, logo voltariam para almoçar. Esperou Kajsa dar por terminado o
desjejum e vestir todos seus apetrechos de turista com certa impaciência e se
puseram em marcha.
Pertinho da
porta da pousada tinha uma trilha que subia o morro. Passaram por vielas entre
casas humildes e logo estavam em meio a floresta de encosta da mata atlântica. A
vegetação era tão luxuriante que Kajsa ficou extasiada, havia um cheiro de mata
no ar. Emma já havia passado por ali com a escola, então nem deu muita bola,
seguia subindo o morro rápido sem dar tempo para as fotos de Kajsa. Aos poucos
a trilha se abriu, ficou menos íngreme e a vegetação ficou muito semelhante
àquela do promontório, arbustiva. A paisagem ficou de sonho, de uma perfeição
de tirar o fôlego. Mesmo porque Kajsa estava ofegante da subida e parava a toda
hora para uma foto. O caminho ficou fácil e plano, caminhavam exatamente na
crista do morro, de um lado se via a grande lagoa da ilha e a praia da Barra e
de outro o oceano. Emma a apressava, dizia que depois a vista ficaria ainda
melhor. Melhor que aquilo? Kajsa nunca tinha visto tanta beleza. A altura em
relação ao mar era muito semelhante aos fiordes da Noruega, uns duzentos
metros, mas de resto era tudo diferente e espantoso, tinha longas baías de
praias de areias brancas, costões de pedra e morros cobertos por aquela
vegetação curiosa que já era familiar a Kajsa. Tudo muito claro, o azul do céu,
o verde do mar, o sol da manhã já estava alto. Kajsa nunca tinha visto cores
tão vivas e estimulantes. Em pouco tempo chegaram até grandes rochas, matacões
de granito cinzento. Emma finalmente parou, se empertigou e começou a discursar
tudo que aprendera com o professor de geografia. Apontou as pedras e falou que
eram monumentos megalíticos, organizados de tal forma que serviam de
observatórios astronômicos para determinar os solstícios e equinócios. No
início, Kajsa não deu muita atenção para a explicação, mas logo lembrou das
pinturas rupestres da Ilha do Campeche que haviam visitado no dia anterior e
passou a levar muito a sério a aula da adolescente. As pedras eram muito
grandes e pesadas, mas estavam obviamente arrumadas em ordem no chão, como em
Stonehenge na Inglaterra. Kajsa ficou surpresa, nunca tinha ouvido falar de
Florianópolis antes das alucinações e muito menos que tinha outros observatórios
astronômicos primitivos no mundo, mas como monumentos megalíticos podem ficar
assim sem a devida publicidade? No sul da Suécia tinha os Ales Stenar, em
Kåseberga, mas lá não tinha uma função de observatório astronômico, pelo menos
que ela soubesse, era somente um grande barco de pedra. Emma, entusiasmada,
apontava outras pedras no horizonte que serviam de alça de mira para
observações astronômicas, uma delas em especial, o promontório de rocha das
alucinações de Kajsa! O que? O promontório, além de tudo, não era só uma rocha
a beira mar? Nesse instante um raio gelado correu a espinha de Kajsa. Todo o
desapontamento que havia sofrido por aquele lugar desapareceu e sua mística
voltou integralmente, Kajsa sentiu-se una com aquelas pedras e com os povos
primitivos que as colocaram ali, tão mais sábios do que ela. Lembrou da falta
de sombras nas alucinações, era solstício de verão! De alguma forma, as
alucinações a sintonizaram de forma muito harmoniosa com aquele lugar.
Kajsa ficou um
longo tempo em silêncio, Emma percebeu que tinha tocado em algum ponto sensível
da amiga e respeitou seu momento. Devia estar uns quinze graus de temperatura e
algumas nuvens cobriram o sol, mas Kajsa sentiu conforto com o vento frio que
as envolvia. Seus corpos ainda suavam do esforço da escalada. O cheiro de peixe
e sal do mar subiu até ali. Ela olhava as pedras e imaginava o esforço que foi
necessário para por em pé e em cima do morro aquelas imensas rochas em posição.
Quantos Nenos, Lélos e Dadás, trabalhadores magros e musculosos, foram
necessários para deixar tudo pronto. Aquela capacidade, tanta fibra e força,
era tão distante da sua realidade, que Kajsa se percebeu inferior a eles. Kajsa
e Emma sentaram-se no dolmen principal do monumento e ficaram a contemplar o
horizonte. Neste instante, ao longe, Kajsa viu uma baleia saltar para fora
d’água como num documentário de televisão. O corpo inteiro, gigante, todo para
fora d’água, mesmo àquela distância podia ser visto com detalhes. Não é
possível descrever com precisão a emoção que sentiu naquele momento. Com um
grito de alegria, apontou para Emma onde avistara e ela ainda pode ver aquele
corpo gigantesco caindo, esparramando água. Um misto de choro e riso
descontrolado das duas se seguiu. Pulavam e gritavam de prazer, sem tirar os
olhos daquele pedaço de mar. Mais quinze segundos e outra baleia pulou também,
no mesmo lugar, com a mesma magnífica exuberância da primeira. Foi um dos
momentos mais felizes de suas existências. Em pouco tempo de observação já
tinham testemunhado dois saltos maravilhosos, pensaram que teriam um festival
de baleias saltando. Ficaram mais meia hora ali, até começar a bater o queixo
de frio. Então resolveram voltar a pousada. Aquele momento as uniu muito. Kajsa
sentia-se jovem como Emma, estava com um frescor de vida que nunca havia
sentido, nem mesmo na idade dela.
Desceram o morro
e a atividade as aqueceu o corpo, resolveram ir direto almoçar, já era quase
meio dia. Atravessaram a ponte treliçada do canal da barra e caminharam pela
praia até um restaurante que as agradou. Apesar das mesas ao ar livre de frente
para o mar serem convidativas, estava frio e resolveram entrar. O garçom era
bem parecido com Neno. Emma decifrou o cardápio e sugeriu ostras gratinadas e
risoto de berbigão dizendo que eram especialidades da cozinha local. Kajsa
achou ótimo que agora tinha uma guia turística que conhecia muitas atrações
sensacionais, sabia ler o cardápio em português e traduzir para o sueco. Emma
pediu uma cerveja com nome alemão. Beberam e era bem melhor que as que tinham
provado até ali no país. Kajsa nem era muito de cerveja, mas como tudo em sua
vida estava de cabeça para baixo, até gostou da sugestão. Enquanto esperavam a
comida, conversavam sobre os planos da tarde. Ali perto tinha uma projeto de
preservação das tartarugas marinhas, poderiam ir caminhando à tarde e ficava
aberto aos domingos para visitação. Emma, para variar, já tinha visitado com a
escola. Kajsa ficou impressionada com a qualidade da educação no Brasil assim
como a preservação da natureza e dos testemunhos primitivos. Emma alertou que
sua escola era particular, bem diferente das escolas públicas da maioria da
população. Também que os brasileiros viviam reclamando que a natureza e os monumentos
megalíticos, oficinas líticas e pinturas rupestres estavam largados à própria
sorte.
A conversa
derivou para Emma e seu João Pedro. O sexo tinha atrapalhado a relação entre
eles, Emma acreditava que seria ao contrário, ela tinha os olhos vivos, um
olhar desafiador, era cheia de vida, quando ria enchia a sala de alegria, cheia
de ideias, contava pequenas histórias que aconteceram entre eles ou mesmo com
outros namoradinhos no Brasil e na Suécia, confusões na escola, falava mais e
mais alto que uma sueca “normal”, era muito confiante. Kajsa não era páreo para
competir com ela em matéria de papo divertido ou minimamente interessante, só
saberia falar de seguros, seu carro, seu apartamento, seus lençóis de linho,
talvez um pouco sobre as políticas do governo ou da economia. Mas Emma propunha
uma conversa diferente, aquilo era um diálogo em sueco num país do outro lado
do mundo, ela não tinha nenhuma desculpa para se esquivar de qualquer assunto.
Além disso, ela era a adulta da dupla, tinha muito mais experiência de vida,
precisava contribuir de alguma forma. Sentiu-se obrigada a voltar a falar de
sua intimidade com Magnus com aquela menina de dezessete anos. Suas experiências
eram poucas, teria que usar o material que tinha. Repetiu as mesmas frases da
conversa da ilha do Campeche, mas, aos poucos, surpreendeu-se bem à vontade
para abrir seu cofre subconsciente que até mesmo para ela era uma novidade. Entre
Magnus e ela, sexo era raro, também nunca tinha sido muito satisfatório. Kajsa
achava que para ele também não era grande coisa. Ultimamente estava mais
interessada em experimentar com uma colega de trabalho que chegaria a
Florianópolis em poucos dias. Sim, Kajsa tinha dito isso em voz alta, para uma
sueca, filha de conhecidos, estava definitivamente louca! A comida chegou e seu
cheiro preencheu todo o ambiente. Era bonita, perfumada, colorida, e saborosa como
tudo no Brasil que Kajsa experimentara até ali. As duas comeram enquanto Emma
contava mais causos e Kajsa refletia sobre sua loucura.
Seria loucura
desejar alguém do mesmo sexo? Ou a insanidade seria ficar com alguém do sexo
oposto sem desejo nenhum? Kajsa estava confusa, seus questionamentos internos
atrapalhavam a degustação da comida. Ela queria concentrar-se no sabor do
risoto de berbigão, que era algo de se comer babando tudo, mas ficava
mastigando seus conflitos. Raspava uma ostra coberta com queijo derretido e
lembrava de toda sua trajetória com Magnus. Ele era um cara legal, se
conheceram na universidade, tinham sonhos em comum, realizaram quase todos. Mas
o mundo deu tantas voltas desde então. Ela não era mais aquela universitária do
interior, meio pobre, meio ignorante. Nem ele! Em termos materiais os dois se
saíram muito bem. Ele tinha saído de Ramvik, um pequeno vilarejo de beira de
estrada, muito mais ao norte que Upsalla. Tinha se formado em engenharia e
conseguido um bom emprego numa grande companhia, tinha chegado muito mais longe
que sua família poderia imaginar, ganhava muito bem, assim como ela. Os dois
juntos tinham tudo que queriam e uma gorda poupança. Mas aquilo tudo agora
parecia fazer tão pouco sentido. Para que? Nem filhos tinham. Quando voltasse
para Estocolmo, teria que falar com ele sobre separação. Não queria sacrificar
sua felicidade por uma heteronormatividade hipócrita. Os últimos dias tinham
sido de vertiginosas descobertas para Kajsa, tinha chegado a conclusões
surpreendentes. Não sentia-se uma coroa de 53 anos, sentia-se mesmo uma viking
adolescente, uma guerreira que viajava pelo mundo e descobria novos
territórios. Kajsa se emocionou na confusa bruma translúcida de seus
pensamentos e ficou com os olhos marejados. Por sorte, Emma não notou nada e levantou
para pegar a sobremesa já servida em pequenos potinhos numa mesinha no canto do
restaurante: sagu de vinho tinto. As duas riram do estranho doce, não tinham a
menor ideia do que fossem aquelas bolinhas gosmentas. Seriam pequenas frutas?
Sementes? Cerais? Ovos? Ovas? Comeram curiosas porque não saberiam nem
perguntar ao garçom o que era. Kajsa ficou aliviada com aquela engraçada dúvida,
não precisaria explicar sua emoção para Emma.
Kajsa pagou e
saíram caminhando pela praia. Emma foi alegre contando outras histórias de
encontros engraçados com coisas do Brasil, mas Kajsa só fingia ouvir. Pensava
em sua vida. Para que voltaria a Estocolmo? Sua vida parecia tão sem sentido
agora. Seu casamento e seu trabalho já pareciam ter ficado num passado distante
e sem graça. Lembrou das aulas de filosofia na escola, da mais fundamental
pergunta filosófica grega: sua vida vale a pena? Se entristeceu, porque para
avaliação até ali a resposta era não. O raio gelado que sentiu na espinha
aquela manhã olhando aquelas pedras a intrigava. As alucinações, a decepção com
o promontório, a volta da mística com os monumentos megalíticos, até as baleias
saltando, pareciam estar mostrando a ela outra vida, mais excitante. Sua vida
era uma rotina interminável. Desde pegar as chaves do aparador para sair de
casa pela manhã até largá-las no mesmo lugar ao final da tarde, as jornadas se
repetiam ad infinitum. Lembrou das conversas com Viggosen, dos xamãs terem
visões. Será que ela era uma xamã? Riu com a possibilidade, sua vida era o mais
distante possível dessas superstições bobas. Mas as experiências que estava
tento estavam modificando totalmente sua vida, ela nem se reconhecia mais, nem
mesmo ao tocar o próprio rosto.
Ao chegar no
projeto de proteção das tartarugas tiveram que pagar o ingresso. Kajsa se
surpreendeu, até aquela visita, todas as outras tinham sido de graça. Tudo era
bem barato no Brasil. A visita foi surpreendente, havia muitas espécies de
tartaruga marinha. Kajsa identificou aquela que havia visto da ponte treliçada
do canal da barra, era a menorzinha de todas, assim mesmo era muito grande. Um
guia solícito as atendia em inglês e explicava tudo, desde a postura dos ovos
na areia, alimentação baseada em águas-vivas, vida no mar atravessando oceanos,
a quase extinção, a recuperação do número de indivíduos adultos desde o começo
do projeto, a vida na natureza. Tinha algumas tartarugas confinadas em pequenas
piscinas azuis de fibra de vidro. O rapaz explicou que elas estavam se
recuperando de ferimentos, tinham sido feridas em redes ou comido sacolas
plásticas de supermercados que parecem águas-vivas na água, logo seriam soltas
na natureza. Kajsa teve de novo aquele mesmo insight vertiginoso. Aliás, tudo
parecia vertiginoso de uns dias para cá. Trabalhando na seguradora e casada com
Magnus, ela vivia numa segura piscininha azul, protegida de qualquer perigo,
longe de agressões naturais, mas com uma vida bem acanhada diante de seu
potencial. A consciência lhe veio como num tombo, de soco! Sua existência era
dentro de um cárcere tranquilo, um útero acolhedor, aquilo estava claro. Ao
viajar para tão longe, Kajsa estava solta na natureza selvagem, havia nascido.
Cabia agora a ela decidir, voltar para a insossa e modorrenta piscininha de
Estocolmo que lhe daria certeza de muita longevidade, ou enfrentar os elementos
da natureza numa excitante e incerta vida ao ar livre cruzando o mundo?
Voltaram
caminhando pela praia e pararam no mesmo restaurante em que haviam almoçado. O
garçom parecido com Neno acionou uma estranha máquina e espremeu algumas canas
de açúcar na hora para encher dois copos de garapa com limão. Kajsa nunca tinha
provado coisa tão doce e deliciosa. Voltaram para pousada saciadas de sabores,
cheiros, imagens e histórias. Emma pegou sua bicicleta e partiu. Kajsa
deitou-se na cama e virou uma metralhadora de imagens para Suécia. Queria
partilhar com todos sua alegria, nunca tinha sido muito participativa de redes
sociais virtuais, mas agora sentia quase que uma obrigação de mostrar o mundo
fora das piscininhas para aqueles que queria bem. Lembrou da alegoria da
caverna de Platão, temeu ser criticada por ver a realidade diferente das
sombras da fogueira, mas tinha que fazer isso. Mandou fotos da trilha, dos
monumentos megalíticos, do mar onde haviam visto as baleias saltando, do risoto
de berbigão e das ostras gratinadas, das tartarugas confinadas nas piscinas com
explicações sucintas. Para Ulrika não, para ela queria palestrar. Telefonou,
mas não obteve resposta. Abriu o frigobar do quarto e pegou um suco de uva,
seria sua janta. Kajsa percebeu que dentro da geladeirinha da pousada no
inverno brasileiro, era menos frio que o outono na Suécia. Mandou alguns áudios
para a amiga, tomou banho e dormiu, estava exausta.
Segunda-feira
amanheceu e Kajsa sabia que não teria a companhia de sua amiga adolescente que
devia estar na escola. Fez a higiene e desceu para o refeitório da pousada já
toda apetrechada para longas caminhadas sob sol, mas percebeu que o dia estava
bem nublado. O céu plúmbeo até lembrava a Suécia. Ao pensar em seu país,
lembrou dos receios que teve ao chegar ao Brasil, mosquitos e queimaduras
solares. Até ali, os mosquitos não a haviam incomodado e o sol também não era
tão assustador. Claro que estava no inverno, talvez no verão fosse outra
história. Sentou na mesa com uma taça de café preto e uma daquelas baguettes
recheadas. Enquanto comia, lembrava das aventuras do dia anterior e das
reflexões que fizera. Pegou seu celular e viu que tinha muitas mensagens não
lidas. Emma falou que Maria Helena tinha ficado muito braba com João Pedro por
ele não ter as acompanhado aos passeios do domingo para ficar jogando
videogame, então ele as acompanharia à tarde. Visitariam mais geoglífos e
pinturas rupestres no norte da ilha. Magnus e sua irmã, comemoravam os passeios
de Kajsa com certa discrição, talvez com alguma inveja. Klaus e Martin
responderam somente com emojis simpáticos. Já Ulrika não, ela tinha tentado
ligar de volta e mandou vários áudios entusiasmados. Estava louca para chegar,
queria ir nos mesmos lugares, já tinha até alugado um carro para a manhã de sua
chegada. Nem ocorreu a Kajsa fazer o mesmo, carros nem sobem trilhas! Mas
talvez fosse útil para algum passeio distante.
Procurou algumas
frases em português na internet, ensaiou em silêncio e conseguiu perguntar para
atendente do refeitório seu nome. Veri, Veridiana, mas poderia chamar de Veri
somente. Claro, como Dadá, Neno e Lélo, quatro letras, uma trabalhadora pobre.
Foram simpáticas uma com a outra, Veri também tentava falar algumas palavras
que sabia em inglês, riam juntas de sua própria ignorância. Kajsa perguntou se
ela conhecia alguma atração turística próxima. A senhora tirou de trás do
balcão um pequeno folder, o abriu e havia um mapa do entorno da pousada.
Mostrou as praias da barra e mole, mas Kajsa já conhecia ambas, os faróis dos
molhes e os monumentos megalíticos também. Tinha dois locais próximos ainda não
visitados pela ávida turista europeia: as piscinas naturais e a pedra da Boa
Vista. A senhora a acompanhou até a rua e apontou por onde ela deveria seguir e
deu o folder para Kajsa.
Kajsa saiu
faceira caminhando pela viela apontada por Veri. Passou por muitas casinhas
humildes, mas todas tinham muros altos, algumas até com cercas eletrificadas no
topo, a plaquinha com uma caveira e um raio não deixava dúvidas, havia um óbvio
temor de invasão da propriedade. Era curioso, o que ladrões poderiam querer em
vizinhança tão pobre? Kajsa tirou muitas fotos, alguns muros exibiam bonitos
desenhos coloridos que tiravam um pouco a impressão de prisão da rua. Logo a
viela acabou e se transformou numa trilha no mato. Em pouco mais de quinze
minutos, Kajsa chegou no que acreditava ser as piscinas. Em meio as pedras dos
costões, águas transparentes como aquelas da praia da ilha do Campeche. Ali, no
entanto, se podia ver uma grande variedade de peixes coloridos, caranguejos,
ouriços, caramujos enormes e estrelas do mar! Sim, estrelas do mar vivas no seu
ambiente natural. Kajsa ficou maravilhada e pensou em se banhar, mas estava
frio e não sabia se conseguiria subir de volta para as pedras, então somente
fotografou. Sentou-se nas pedras olhando aquele espetáculo. Lembrou do seu
cubículo de trabalho na seguradora, sem horizontes, sem vida, sem cor. Fórmica
cinzenta ou branca por todo lado. Ali o horizonte era infinito, a praia era de
areia branca, o oceano verde claro, as nuvens no céu em diversos tons de cinza,
os morros cobertos de verde, as pedras pretas e marrons. Sentiu frio e resolveu
voltar.
Ao chegar a viela
novamente já havia se aquecido com a atividade física de caminhar pela trilha.
Consultou o folder para ver a outra atração não visitada, ainda era cedo. Na
capa do folder o nome da pousada e embaixo, com letras bem coloridas, estava
escrito: Florianópolis, a ilha da magia! Kajsa ficou curiosa com aquele título,
desconfiou o que poderia ser, mas resolveu perguntar a Veri para se assegurar.
Veri já tinha trocado de roupa, estava saindo da pousada empurrando sua
bicicleta já sem seu uniforme. Usava uma camiseta vermelha com a estampa do
rosto de um senhor barbudo onde se lia: Lula livre. Imediatamente, caiu uma
ficha importante do Brasil: Lembrou que Lula era um ex presidente brasileiro,
conhecido até por ela na Suécia, aquela imagem da estampa da camiseta era tão
icônica como a de Che Guevara nas feiras de rua em Estocolmo, seu nome tinha
quatro letras, era um trabalhador. Kajsa apontou a figura no peito de Veri e
sorriu dando a entender que sabia de quem se tratava, as duas riram. Ficaram
grandes amigas a partir desse momento. Abriram o folder para ver a Pedra da Boa
Vista, a atração que faltava. Veri apontou o caminho e esclareceu o enigma,
traduziu o subtítulo do mapa para o inglês com uma pronuncia bem compreensível,
já devia ter feito aquilo diversas vezes: magic island. Era a tradução que
Kajsa havia imaginado e explicava muito das coisas que andava sentido na ilha.
Veri largou novamente
sua bicicleta do lado de dentro do muro da pousada e fez sinal para que Kajsa a
seguisse. Subiram caminhando a mesma trilha que Emma havia mostrado no dia
anterior. Veri caminhava bem mais lentamente que Emma, era uma companheira de
trilhas mais da idade de Kajsa. Lá em cima pegaram um pequeno desvio e chegaram
numa grande rocha granítica, a vista era de 360 graus. Dava para ver quase toda
ilha. Kajsa se exclamava com a beleza do lugar enquanto Veri sorria com a
felicidade da nova amiga. Com o celular, a sueca fez um pequeno filme, fazendo
uma grande volta, a brasileira se mantinha as costas da câmera, não queria
aparecer nas filmagens. Kajsa começou a filmar por uma ilha no Atlântico, foi
virando para a ponta do Gravatá, Pântano do sul, Porto da Lagoa, Canto, Lagoa
da Conceição, Costa, Rio Vermelho, Barra e de novo oceano. Era tudo lindíssimo,
mesmo com o céu tão nublado, o verde das florestas de encosta era magnífico,
era abundante e muito mais evidente que os vilarejos da paisagem. Quando Kajsa
baixou o celular, Veri apontou uma manga d’água se aproximando pelo mar, elas
iam se molhar. Kajsa ficou impactada com o volume de água que caía do céu e
como a nuvem era baixa. Sentiu-se novamente uma jovem viking tendo aquela visão
tão impressionante da natureza. Tirou uma foto e seguiu a amiga. Voltaram
rápido pela trilha, mas ainda pegaram um bom aguaceiro. Kajsa temeu escorregar
na descida agora embarrada, o que realmente aconteceu, mas não se feriu, só
sujou toda suas calças. Veri se despediu já toda molhada e partiu na sua bicicleta.
Kajsa entrou na pousada para se trocar e tomar um banho quente, havia esfriado
muito com a chuva.
A manhã tinha
sido movimentada, tinha feito muita coisa, Kajsa estava contente. Mesmo depois
do banho e de se agasalhar bem, sentiu uma leve dor de cabeça, mas não deu
muita importância. A chuva parou e Kajsa rumou sozinha para o mesmo restaurante
do sósia de Neno em que havia estado com Emma. O vento da praia soprava forte,
seus ouvidos doeram e Kajsa pensou que talvez uma touca seria bom agora. Parou
numa pequena loja e comprou um linda touca bem colorida. No restaurante, se
comunicou com o garçom com mímica e algumas palavras em inglês e todas as que
já sabia em português. Descobriu que era irmão de Neno, seu nome era Osni,
claro, com quatro letras. Escolheu o cardápio pelas fotos, filés de anchovas,
salada de alface com tomates, batatas fritas e pirão de camarão com cerveja
holandesa. Kajsa estava se achando uma mestra da comunicação intergaláctica,
estava orgulhosa de si, nem precisava mais da muleta Emma de tradução. Mandou
uma mensagem para ela avisando onde estava, já era quase uma da tarde e talvez
ela aparecesse de bicicleta na pousada a lhe procurar. Depois mandou muitas
fotos e áudios alegres para Ulrika sobre os passeios da manhã, os nomes de
quatro letras, a camiseta de Lula e a ilha ser da “magia”. Estava bem feliz.
Comeu com apetite, mas uma dorzinha no ouvido começou a incomodar.
Voltou para a
pousada caminhando pela beira mar e ao atravessar a ponte treliçada já viu o
carro de João Pedro estacionado. Ele e Emma já a esperavam no saguão, os dois
comentaram sobre sua alegre touca peruana. Peruana? Que desapontamento, jurava
ser artesanato local. Tinham planos, ela até pensou em recusar devido a dor de
ouvido, mas não teve coragem, Emma parecia tão contente de ter de volta a
companhia do amigo brasileiro. Rumaram contentes para o norte da ilha, um lugar
chamado Costão do Santinho. Pararam o carro perto da praia e caminharam pela
areia até as pedras onde começava uma trilha muito bem sinalizada. O vento
assobiava e incomodava Kajsa, apesar da touca que cobria suas orelhas.
Visitaram muitos locais com pinturas rupestres e geoglífos enormes escavados
nas rochas. Eram desenhos parecidos com os da Ilha do Campeche, mas muito
melhor sinalizados e com acessos muito melhores para os turistas. Enormes
rochas a beira mar ricamente desenhadas, talvez servindo de faróis para
viajantes primitivos se guiarem de longe. Apesar da beleza da paisagem e do
interesse que aquelas mensagens pré-históricas lhe despertavam, Kajsa estava
desanimada e Emma percebeu que sua amiga estava debilitada. Abreviaram o
passeio e voltaram para pousada. Despediram-se e Kajsa entrou sozinha. Ligou o
ar condicionado no calor máximo, se acomodou na cama com roupa, toca e tudo e adormeceu
profundamente.
Ainda estava
escuro quando Veridiana entrou no quarto. Kajsa achou estranhíssimo, mas estava
muito mal para protestar, levantar-se muito menos. Veri a colocou sentada na
cama e alcançou a ela uma cumbuca com um líquido quente. Kajsa bebeu
passivamente a amarga beberagem enquanto Veri entoava alguns cânticos e fazia
gestos com um ramo na frente de seu rosto. A coisa toda parecia meio sonho, as
estrelas eram bem visíveis pela janela como nos quadros de Van Gogh. O céu
tinha limpado e a noite era belíssima. Kajsa sabia estar louca desde as
alucinações, mas ali as coisas chegaram ao extremo. Ela poderia jurar ter
ouvido Veri dizer EM SUECO perfeito: Eu sabia que tu tinhas adoecido, pois eu
sou uma bruxa. Dito isso, Veri pegou sua cumbuca e seu ramo e saiu do quarto.
Kajsa passou o
dia deitada. Emma não apareceu. Ela também não tinha forças para procurar o carregador
de seu celular que tinha desligado. Levantou-se tremendo umas duas vezes
somente para aliviar-se rapidamente no banheiro. Pensou ter pego uma doença
tropical grave, talvez morresse, precisava procurar ajuda, mas não tinha
forças. Sentia muito frio. O sol já ia alto quando Veri entrou novamente no
quarto e repetiu todo aquela pajelança curiosa lhe alcançando a cumbuca quente.
A beberagem entrava no seu corpo ardendo. Kajsa estava totalmente entregue a
benzedeira brasileira, obedecia sem esboçar a menor reação. Ao recolher a
cumbuca vazia, Veridiana falou novamente em sueco perfeito: amanhã sua amiga
chega e você já vai estar boa, eu sei por que sou uma bruxa. Kajsa a olhou com
incredulidade, lembrou que Ulrika chegaria na Quarta-feira, mas estava
totalmente sem forças para retrucar e os olhos de Veri não deram muita
importância para o choque de Kajsa, somente saiu do quarto. Kajsa não tentou
encontrar explicações e adormeceu.
Na manhã
seguinte, Kajsa acordou quando o sol se levantava. Sentiu-se bem e sentou-se na
cama. Levantou e olhou o movimento dos pescadores na areia. Reconheceu Neno e
Osni conversando enquanto arrumavam os remos no barco. Lembrou das vindas de
Veri ao quarto, sabe-se lá o que tinha bebido, mas funcionou. O dia estava
lindo, Ulrika teve sorte ao marcar seu voo para o Brasil naquela data. Ao
lembrar da amiga, colocou o celular a carregar. Tinha muitas mensagens não
lidas, de Emma e Ulrika, principalmente. Ulrika, já estava em São Paulo
preocupada com Kajsa que não respondia! Kajsa a tranquilizou e recomendou a
amiga que pedisse uma poltrona de janela a direita do avião, para ver a ilha de
cima ao chegar. Emma avisou que mataria aula para ir ao aeroporto com ela
receber Ulrika. Fariam uma festa sueca em Florianópolis. Num primeiro momento,
Kajsa sentiu-se invadida, mas depois pensou que seria bom ter Emma para amaciar
os ímpetos da amiga. Racionalmente, sabia que era ridículo tal pensamento, mas
a verdade é que tinha receio do que Ulrika faria ao lhe ver. A adolescente seria
uma espécie de preservativo entre as duas. Emma combinou de se encontrarem na
pousada às sete. Já eram seis e meia, Kajsa se arrumou rápido e foi para o
refeitório.
Ao entrar no
salão, Veridiana sorriu e a cumprimentou alegremente. Kajsa falou em Sueco, mas
ela nada entendeu. As duas sacaram seus celulares e começaram uma conversa
estranha com tradutores de internet. Veri confirmou, era mesmo uma bruxa, tinha
levado a beberagem na cumbuca, receita de feiticeira, e estava feliz que tinha
dado resultado, mas não sabia falar sueco. Teria sido uma alucinação febril? Como
descobrira que Kajsa estava doente? Como assim bruxa? As perguntas cresciam na
cabeça de Kajsa ao mesmo tempo que se resignava do quinhão de loucura que lhe
acompanhava de uns tempos para cá, custava a se habituar, só isso. Emma entrou
e sentou-se a mesa depois de pegar um copo de suco. As duas estavam animadas
com a perspectiva da chegada de Ulrika. Emma não quis pedir ajuda de João Pedro
dessa vez, queria que fosse uma coisa só de meninas suecas, seria legal.
Comeram e saíram felizes despedindo-se de Veri.
Entraram num
ônibus lotado em direção ao centro. Estava tão cheio que Kajsa propôs esperar
outro, mas Emma alertou que o outro estaria tão cheio quanto, era assim mesmo
no Brasil. As duas se agarravam como podiam enquanto o ônibus sacolejava
subindo e descendo morros enormes. Apesar de já estar totalmente lotado, o
motorista seguia parando em todas as paradas para pegar mais passageiros, era
surreal! As janelas estavam todas fechadas e embaçadas, pouco se via do dia
invernal lá fora, mas do pouco que se enxergava eram vistas maravilhosas de
paisagens de sonho que somente Kajsa e Emma pareciam desejar olhar. Os outros
passageiros apenas seguiam sua rotina diária de ida ao trabalho, alguns
sortudos que conseguiam sentar até dormiam de boca aberta. O ambiente era
abafado, mas Emma parecia estar habituada, conversava normalmente. Kajsa
relatou o dia anterior, os passeios nas piscinas naturais e na Pedra da Boa
Vista com Veri, a descoberta de que Florianópolis era a ilha da magia, a
camiseta de Lula e os nomes de quatro letras dos trabalhadores, o almoço no
restaurante e o diálogo multilíngue com Osni, a indisposição que lhe abateu, as
entradas de Veri no quarto, a quente beberagem, as frases em sueco. Emma ouvia
tudo com atenção. Ao chegarem no centro, desceram no terminal e trocaram de
ônibus para um que levava ao aeroporto, chegariam bem na hora do desembarque de
Ulrika. Nesse segundo ônibus conseguiram sentar juntas, pois pegaram no começo
da linha no sentido inverso ao do “rush” da manhã. Kajsa comentou que a
experiência de pegar um ônibus lotado no mundo em desenvolvimento era bem interessante
como curiosidade antropológica, mas fazer aquilo todos os dias deve ser muito
ruim, não estava habituada a ficar tão encostada em corpos de desconhecidos.
Emma então tomou a palavra, contou que realmente havia estado na pousada na tarde
do dia anterior, mas Veri explicou que Kajsa estava doente e febril e não
queria receber visitas. Contou também que sim, havia uma tradição de bruxas e
magia na ilha, benzedeiras e feiticeiras como Veri eram parte da cultura local
e tinha até cidadãos que nunca haviam visitado um médico ou tomado um remédio
comprado. Na família de João Pedro essas tradições eram desdenhadas, mas nas de
Dadá e Neno eram assumidas com orgulho. Pela experiência de Kajsa,
aparentemente a pajelança ancestral funcionava.
Desceram no aeroporto
e olharam o painel de informações de voos. Ulrika já havia aterrissado há dez
minutos! Correram para o portão de desembarque do saguão e a viram saindo com
uma pequena mala. Ulrika!! O encontro foi bem alegre, Kajsa a abraçou
demoradamente e apresentou Emma. Ulrika tinha um olhar penetrante, com olhos
castanhos brilhantes, falava pouco, mas dizia muito. Seu cabelo estava um pouco
mais grisalho do que na última vez que Kajsa a havia visto, mas aquilo a
deixava ainda mais bonita. Tudo que nos outros caia mal, nela caia bem, era uma
mulher charmosa e cheirosa com seus óculos de aros grossos e suas echarpes de
lã. Conversaram enquanto caminhavam pelo saguão, Ulrika a guiar o grupo, como
se ela fosse quem conhecia o local. Comentou que Kajsa estava bronzeada,
musculosa e com abraço forte, além de olhos vivos. Pararam no guichê da locadora de automóveis e
pegaram as chaves do carro alugado. Entraram no carro e partiram, Ulrika
dirigia, Kajsa ao seu lado só sorria feliz e Emma lá atrás as ia guiando. Ulrika
parecia já ter dirigido aquele mesmo carro por aquelas mesmas estradas
congestionadas muitas vezes, não errava nem uma troca de marcha ou titubeava em
encruzilhadas.
Ulrika sugeriu
que ligassem o rádio para ouvir as músicas brasileiras. Assim que o rádio foi
acionado, o volume estava no máximo e tocava Dancing Queen do grupo sueco ABBA,
verdadeiro hino da adolescência das duas mais velhas. As três gritaram
eufóricas numa explosão de riso e felicidade. Ulrika parou no acostamento,
saíram do carro e se puseram a dançar ao lado do manguezal. Kajsa estava em
êxtase, vivendo talvez o momento mais feliz de sua existência. Ulrika lembrava
de uma coreografia que as outras duas sabiam seguir! Viraram atração turística
de beira de estrada e os carros buzinavam ao passar por elas. A música acabou e
as três se abraçaram e choraram de felicidade sentindo-se as rainhas da dança.
Entraram no carro rindo muito e comemorando a alegria de viver e estarem
juntas. Kajsa abriu a janela e gritou com a cabeça para fora do carro que eram
guerreiras Vikings. Ulrika comentou jocosa quão boas eram as rádios brasileiras
de FM. Emma feliz de ter duas amigas suecas no Brasil. Estava selada uma
amizade profunda naquelas terras distantes.
Chegaram a
pousada quando Veri estava saindo com sua bicicleta, trabalhava somente no café
da manhã. Fizeram as apresentações e Emma agradeceu o tratamento que havia
feito em Kajsa. Veri convidou para uma dança circular só de bruxas na praça
central da Lagoa da Conceição ao anoitecer. Emma sabia onde era e traduziu o
convite as outras duas. Aceitaram, seria legal, uma boa introdução a ilha da
magia. Ulrika fez o Check in para o mesmo quarto de Kajsa, o que lhe deu um
friozinho na barriga, mas fingiu normalidade. Largaram a mala e Emma sugeriu que
visitassem o famoso promontório das alucinações de Kajsa após o almoço, Ulrika
aprovou. Saíram caminhando e atravessaram a ponte treliçada olhando a
transparência da água, pena dessa vez não viram nenhuma tartaruga ou pinguim. Caminharam
pela enorme praia até o restaurante de Osni. Sentaram e Emma disse que queria
as ostras gratinadas de novo, Kajsa as mesmas anchovas do dia anterior e Ulrika
pediu camarão. Emma conversou com Osni sobre Neno, não sabia que eram irmãos.
Osni falou que ele viria ao restaurante trazer peixe dali a pouco. Brindaram
com uma cerveja preta que Ulrika escolheu. Estavam muito felizes.
Quem trouxe a
comida para mesa foi Neno!! Emma e Kajsa ficaram muito surpresas com aquele
bico de garçom. Neno falou que era só para brincar com elas, ele não trabalhava
ali, só entregava os frutos do mar para o irmão. Apresentaram Ulrika que falou
em alto e bom som em sueco que Neno era um petisco brasileiro que ela provaria
com gosto. As outras duas riram e ruborizaram, Emma traduziu para Neno que
Ulrika havia “simpatizado” muito com ele. Ele agradeceu e convidou para um
passeio de barco na lagoa Domingo. Alertou que havia entregado umas garoupas e
tainhas enormes para o irmão, que elas deveriam provar numa próxima refeição.
Despediu-se e saiu. As três ficaram rindo muito da cara de pau de Ulrika, ainda
que em outra língua. Voltaram para pousada e entraram no carro, Kajsa deu uma
passadinha no quarto para pegar sua touca peruana colorida, não queria ficar
com dor de ouvido de novo. Subiram a estrada e Kajsa lembrou daquela primeira
vez que foram de bicicleta, quão dura era a subida. Ulrika parecia não se
impressionar muito com a paisagem, bem diferente de Kajsa quando chegou. Era
uma mulher bem mais viajada, comentou até que tinha uma touca igual de quando
esteve no Peru.
Estacionaram na
boca da trilha e partiram para caminhada. Emma ia na frente, Kajsa no meio e
Ulrika atrás. Numa parte mais difícil da trilha, com altos degraus de rocha e
raízes, Ulrika deu uma mordida na bunda de Kajsa que gritou, mas logo riu. Emma
nem entendeu a piada. Ulrika era visceral, condimentada e cheia de vida,
totalmente diferente da personalidade insossa de Kajsa. Chegaram ao promontório
que foi o gatilho de tudo, mas dessa vez Kajsa não sentiu nem um pingo da
emoção que sentira da primeira vez. Naquele dia sentiu um profundo
desapontamento, agora estava só alegre de respirar ar puro, ver uma bela
paisagem e estar na companhia agradável de duas amigas. Sentaram-se e ficaram
um momento olhando a paisagem. Emma tirou um baseado amassado do bolso e um
isqueiro de plástico cor de rosa. Desamassou delicadamente, acendeu o cigarro,
tragou e segurou a fumaça dentro do corpo sob o olhar atônito de Kajsa e
tranquilo de Ulrika. Em seguida passou o pito para Kajsa que ficou constrangida
de não provar. Tossiu muito, mas fumou. Finalmente, Ulrika pegou o fumo e
tragou com intimidade, prensou as narinas para nada sair e devolveu para Emma.
As três fizeram um rodízio até acabar com a maconha. Cada vez que Kajsa dava um
pega na droga, sua total incompetência no lidar com aquele objeto em brasa era
motivo de muita risada das três. Ao fim, estavam rindo tanto que Ulrika levantou-se,
tirou as calças, acocorou-se e fez xixi na beira do penhasco para não ficar toda
mijada. Aquilo causou ainda mais gargalhada, Kajsa chegou a deitar e rolar de
rir. O promontório agora era motivo de alegria. Voltaram para o carro de alma
lavada.
Estava
anoitecendo e foram ao local combinado com Veri. Ao chegar, a viram com outras
tantas amigas. Todas vestiam longas túnicas, vestidos de lã, batas indianas,
botinhas de couro, brincos de penas de pássaros e toucas peruanas como a de
Kajsa. Ulrika debochou da aparência das mulheres, era um festival xamânico? Brincou
que somente Kajsa seria aceita no grupo com sua touca. As outras duas não riram
porque Veri se aproximou sorridente e as convidou para entrar na roda. Começou
uma música suave e Veri discursou um pouco em voz baixa. Emma traduziu que ela
estava comemorando o fato de ter ali mulheres de todo o planeta: da Itália, da
África do Sul, da Turquia, de Israel, da Alemanha, da Inglaterra, da Argentina,
do Chile e três companheiras da Suécia. Todas as mulheres da roda bateram
palmas e deram as mãos, começaram a rodar fazendo o mesmo passo lento e simples.
Aos poucos iam trocando de passo ou colocando as mãos em outros lugares. A roda
ia se fechando e elas entoavam uma espécie de mantra. Como as três suecas já
estavam com suas consciências bem alteradas depois da cerveja preta e do
baseado, entraram logo no transe. Sentiram-se unas com aquelas outras mulheres
e passaram a gostar muito da experiência. Mesmo a cética Ulrika se entusiasmou
e com facilidade seguia a coreografia do grupo. Finalmente, todas as mulheres
estavam bem abraçadas e sentiram uma força vital muito forte, estavam se
fortalecendo mutuamente. A música parou e se afastaram lentamente, batendo palmas.
Muitas estavam com os olhos marejados, inclusive Kajsa e Emma. Acabou a risada,
mas a emoção que encontraram naquele evento as deixou muito felizes e
satisfeitas de estarem vivas. Veri se aproximou e as parabenizou, elas agora
eram também bruxas da ilha da magia.
Pegaram o carro
e foram embora. Largaram Emma no condomínio de luxo da família de João Pedro e
seguiram caladas para a pousada. Ulrika estava bem cansada da viagem e Kajsa tinham
muito o que pensar. Um verdadeiro furacão de pensamentos a atormentava. Estava
finalmente só com Ulrika, mas até agora não tinha pensado em sexo. Lembrou de
Magnus, de seus pais, dos colegas de escola em Upsalla, de sua relação formal
com Ulrika no trabalho, tudo parecia ser em outra vida, muito distante da
realidade atual, algo já apagado num passado remoto. Não conseguia imaginar o
que estava prestes a acontecer, não queria prever um futuro que nunca viveu. Estacionaram
o carro e entraram na pousada.
No quarto,
Ulrika sugeriu um banho e Kajsa concordou ligando o ar-condicionado no calor
máximo. Ulrika tirou os óculos e se aproximou de Kajsa, delicadamente tirou sua
ridícula touca peruana. Era a primeira vez que Kajsa a via sem os óculos. Ela
era tão jovem e bonita, tão cheia de vida, seus olhos eram tão penetrantes que
Kajsa sentiu-se nua, uma vertiginosa sensação de prazer a invadiu. Ulrika a
beijou suavemente na boca, e começou a delicada operação de despirem-se.
Ligaram a água quente e tiraram as últimas peças de roupa no banheiro já cheio
de vapor. Encostaram seus corpos nus num abraço suave, Ulrika a beijou e Kajsa
se entregou totalmente a experiência. Entraram no chuveiro quente e se
ensaboaram mutuamente. Ulrika sabia tocar os lugares mais sensíveis da anatomia
de Kajsa, parecia ler sua mente. Um crescente de excitação foi se acumulando no
corpo de Kajsa, ela nunca tinha sentido tanto prazer na vida, isso que aquilo
ela nem considerava como sexo, não sabia que poderia acontecer em pé, ainda era
só banho no seu entender, não estava preparada. A água quente, o vapor, a
espuma e as mãos de Ulrika a envolviam de forma arrebatadora. Ulrika tocou na
vulva de Kajsa e a ensaboou e exigiu que a parceira fizesse o mesmo puxando sua
mão para seu sexo. Kajsa entendeu o gesto, mas não conseguia concentrar-se na
tarefa, já tremia de prazer. Ulrika era implacável, beijava séria os lábios
trêmulos de Kajsa e tocava seus seios com delicadeza.
Ulrika deu por
encerrado o banho fechando a torneira e puxando as toalhas para secarem-se. Ao
mesmo tempo em que iam secando as costas uma da outra, abraçadas e rindo, caminhavam
de lado para cama. O quarto já estava quente com o ar-condicionado. Ulrika
deitou Kajsa na cama e beijou seu clitóris fazendo a parceira gemer de prazer.
Kajsa não sabia como agir, estava totalmente passiva, era virgem em
relacionamentos homossexuais, mas estava adorando e se deixava manipular à
vontade. Ulrika beijava e lambia seu sexo enquanto tocava suas coxas e seios,
Kajsa começou a sentir uma avalanche de prazer dentro de si, ganiu e uivou, fechou
suas coxas sobre a cabeça de Ulrika que não parava de acariciá-la. Kajsa soltou
um berro de prazer quando sentiu o primeiro orgasmo de sua vida, foi
simplesmente avassalador, morreu por um delicioso instante, foi ao paraíso e
voltou com a alma angelical de puro amor e felicidade para tentar entender o
que tinha acontecido. Florianópolis era mesmo a ilha da magia e Ulrika uma
bruxa experiente.
Kajsa olhou o
teto branco do consultório ginecológico, seus joelhos repousavam apoiados nas
perneiras e sentia o desconforto de um espéculo socado na sua vagina. Atrás do
lençol ouviu a voz de Viggosen dizendo que estava tudo bem. Kajsa manteve a
calma, ela já tinha vivido aquela sensação, mas não conseguiu evitar ficar
muito triste. O que é a realidade, afinal? Num instante estava gozando em Florianópolis,
no outro sendo examinada em Estocolmo. Maldição! Fingiu normalidade, mas a
vontade era de gritar “não” bem alto e em português. Viggosen desmontou a tenda
daquele circo e pediu que Kajsa se vestisse enquanto lavava as mãos. Desacorçoada,
Kajsa perguntou sobre Emma. Viggosen contou que estava bem, havia casado e estava
grávida, esperava para maio seu primeiro neto. Surpresa, Kajsa o interrogou,
aos dezessete anos? Viggosen riu e esclareceu, ela já estava com 27, era
cineasta, mas vivia de pequenos filmes publicitários. A cara de desapontamento
de Kajsa era evidente, quem seria aquela com quem interagiu em Florianópolis?
Quanto tempo já haveria se passado? Kajsa estava numa confusão total. Resolveu
investigar e tentou relembrar Viggosen daquela ocasião que conversaram no
restaurante fino do Kungsträdgården. Ele lembrou do restaurante, mas não da
conversa. Kajsa insistiu, almoçaram Surströmming com batatas e tomaram vinho
verde português. Ele riu de novo, aquele restaurante não abria para almoço e
também não serviria comida tão popular, só esteve lá em algumas poucas vezes
com sua esposa comemorando alguma coisa. Almoçar lá seria muito caro. Kajsa ficou
arrasada, teria criado tudo aquilo na sua mente maluca? Um frio na espinha
correu todo seu corpo, pensou em Ulrika. Arrumou-se rápido e se despediu do
médico. Ele ainda mandou lembranças para Magnus. Bom, nesse universo paralelo
em que se encontrava agora a assombração de Magnus ainda era real.
Pedalou o mais
rápido que pode para o prédio da seguradora. Angustiada ia refletindo, será que
tudo que viveu, as paisagens de sonho, não só pareciam de sonho, mas eram de
sonho mesmo, criações de sua mente? A baleia saltando, a manga de chuva, as
pinturas rupestres, a tartaruga marinha e o pinguim, tudo ilusão? Prendeu sua
bicicleta e subiu correndo as escadas, entrou na sala de Ulrika sem bater na
porta. Suzanne a olhou com surpresa e Kajsa perguntou onde estava Ulrika. Qual
Ulrika? Vast ou Bergson? Kajsa respondeu irritada, achou que Suzanne brincava
com ela, nenhuma das duas, Ulrika Ramsen, nossa supervisora. Essa saiu da
empresa há uns vinte anos, Suzanne era a supervisora há dez anos e não fazia a
menor ideia de onde estaria aquela ex funcionária. Um redemoinho de sensações
encheu a cabeça de Kajsa. O prazer do orgasmo atômico que tinha experimentado
ainda estava fresco na sua cabeça, o desapontamento da irrealidade do
relacionamento de amizade com Emma, a raiva de Ulrika ser somente uma fantasia
imaginária, tudo girava e se contorcia na sua cabeça em velocidade. Kajsa
sentou na sala de espera da agência e chorou compulsivamente. Será que esteve
em Florianópolis mesmo? Aqueles personagens todos com nomes de quatro letras
eram criações mentais? Precisava ver um psiquiatra rápido. Não tinha mais nem
ideia de quem era naquele instante, sofria como se estivesse sendo torturada. Queria
desligar sua mente, apagar tudo, dar um reset. Quem poderia lhe ajudar?
Se acalmou como
pode, desceu e pegou sua bicicleta, pedalou para casa pensativa. Será que sua casa
era mesmo sua casa? Quando estava quase chegando ao Kronobergsparken teve um
ideia que a alegrou. Foi como um cobertor quentinho numa noite de frio, Kajsa
se agarrou aquele pensamento com força. A primeira alucinação foi de cinco
minutos, a segunda durou umas duas horas, a terceira e última umas duas semanas.
Era exponencial, a próxima poderia durar anos!! Começou a fazer contas
estatísticas mentais: se entre a primeira alucinação e a segunda teve um
intervalo de umas vinte horas e entre a segunda e a terceira uns quinze dias,
quanto tempo deveria esperar para a quarta começar? Não tinha certeza quando
começou a terceira alucinação, a fronteira estava difusa. Será que era no dia
do embarque para o Brasil ou quando começou a comprar as coisas para viagem?
Opa, mas as conversas com Viggosen tinham sido também alucinações, então talvez
tenha sido um contínuo ilusório. Assim, havia a esperança de a quarta fase
começar a qualquer momento!!! Se alegrou e entrou em casa, largou as chaves sobre
o aparador como sempre e sorriu com o gesto. Assobiando esperou Magnus e o
recebeu com carinho. Jantou, tomou banho e foi dormir feliz.
Kajsa sentiu-se
muito bem, uma profunda paz tomou todo seu ser. Não sentia calor nem frio, a
temperatura estava perfeita e a aconchegava. Sentiu prazer naquela sensação
gostosa. Abriu os olhos e viu um céu muito azul, estava sem sua aliança, mas
coberta de protetor solar e de mãos dadas com Ulrika no promontório de rocha a
beira mar.
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