Linha de frente
Agora, com a
pandemia provocada pelo novo vírus corona, muito se fala dos heroicos combatentes
da “linha de frente” na “guerra” contra a doença Covid-19. Os profissionais da
saúde estão sendo muito valorizados, são homenageados com salvas de palmas das
sacadas dos edifícios nas grandes cidades, as mazelas da profissão estão sendo
debatidas em público até em telejornais. Péssimas condições de trabalho, baixos
salários, falta de leitos, insuficiência de insumos para cuidados básicos de
higiene e equipamentos de proteção são coisas que escandalizam toda a sociedade.
Não é mais um assunto relegado aos vestiários de hospitais, no momento de troca
de plantões. Todos estão percebendo que precisamos atirar dinheiro na cara daqueles
trabalhadores para que saiamos vivos dessa. Percebeu-se rapidamente que a “PEC
do fim do mundo” do início do governo Temer, que congelava os investimentos em
saúde e educação por vinte anos, foi um equívoco brutal. Além das dificuldades dos
complexos problemas técnicos envolvidos no cotidiano dos atendimentos à saúde
que há três anos e meio estão sem qualquer atualização, coisas que exigem muito
treinamento e conhecimento, alguns trabalhadores ainda têm que enfrentar
arroubos ideológicos dos usuários do serviço. Verdadeiros “donos da verdade”,
formados no Whatsapp e no Twitter, se acham no direito de receitar remédios,
prescrever tratamentos, invadir locais de trabalho, tumultuando a já complicada
situação. O resultado são profissionais ainda mais estressados, adoecendo eles
mesmo, causando baixas nesse “exército” de combatentes.
Estou na décima
quarta escola da minha carreira docente, em todas em que trabalhei o primeiro
ano foi sempre de muitos atestados médicos para mim. O trabalhador da educação
pega todas as doenças existentes na comunidade, até ficar imune a toda fauna e flora
bacteriológica e virótica do lugar. Ficamos na maior parte do tempo confinados em
salas apertadas, sem máscara, com mais de vinte crianças vindas de diferentes famílias,
respirando, espirrando, tossindo, assoando narizes e, na educação infantil, até
limpando urina, fezes, vômito, baba e restos de alimentos de pequenos corpos,
muitas vezes febris ou diarréicos. Também costumamos limpar cortes, ralados e
edemas das crianças que se acidentam. Nos casos mais graves, chamamos os pais
para que encaminhem a criança para um serviço especializado de saúde. Mas, geralmente
são os professores e auxiliares da educação que manejam a saúde da criança. E o
fazemos com muito carinho, abraços, beijos e conversas ao pé do ouvido, pois a
saúde não é só física, mas também mental, social, espiritual e ambiental. Muitas
crianças só encontram um ambiente limpo, uma alimentação saudável e uma relação
afetiva positiva na escola. Ouso dizer que nós é que somos os profissionais da “linha
de frente” da saúde e quando alguma criança está com a sua muito ameaçada,
encaminhamos pra os profissionais da doença.
Há uma piadinha
muito popular nos corredores de escolas públicas brasileiras – Tem duas coisas
que professor pega pelo menos uma vez por ano: piolho e empréstimo. – O chiste
é bastante revelador da condição de vida que o trabalhador da educação está
imerso. Das profissões que exigem formação superior, o magistério é talvez a
menos valorizada. Como sou um digno representante da categoria, exerço a
profissão quarenta horas semanais, posso falar com propriedade: somos pobres.
Moramos nas periferias, lá onde o estado se ausenta, onde não há policiamento,
iluminação pública, calçamento ou postos de saúde. Somos a casta magnata da
favela, vizinhos de nossos ainda mais pobres alunos. A maioria de nós “prefere”
andar de ônibus, pois a prefeitura ou o estado patrocina o vale transporte. Porém,
isso só é possível quando temos a sorte de pegar as quarenta horas na mesma
escola, o que é raro. Normalmente, o professor gasta o horário do almoço para se deslocar
de uma escola para outra, em periferia ainda mais longe. Para isso temos que
apelar para veículos individuais, pois não há ônibus que ligue as duas escolas,
pena que tal luxo o poder público não se incomoda em ajudar a pagar. Comemoramos
quando um colega troca sua moto CG 125 2011 por uma bem mais novinha, 2017,
financiando em 24 vezes a diferença de R$1500. O ruim é quando chove no
inverno, momento que esse profissional motociclista tem que chegar meia hora
antes para trocar suas roupas molhadas por outras secas. Professor casa
geralmente com outro da mesma casta, os pobres com estudo se unem para então
ascender para a classe dos que andam de carro, um Ka 2001 já bem rodado. O cônjuge
que trabalha na escola mais distante dirige e larga o outro um pouco mais cedo no
trabalho. Muito comum também é o consórcio de alguns que moram próximos,
cotizam-se para abastecer e trocar pneus no Uno 2004 da colega proprietária. A
rotina de assistir cinco profissionais saírem de um Celta 2003 com as janelas
embaçadas às oito da manhã na frente da escola não espanta ninguém da
comunidade escolar. Muitos trazem viandas para o almoço, outros pagam um extra
para as cozinheiras da escola prepararem uma merenda, porque geralmente o
ticket alimentação vai mesmo para o rancho no supermercado da boia dos filhos em
casa. Muito comum também acontecer de o professor não admitir tanta pobreza e
se sujeitar a trabalhar 60 horas semanais em mais de uma prefeitura ou em uma
prefeitura e no estado. Sacrifica o convívio com seus familiares e suas horas
de lazer ou sono para ganhar um pouco mais. Isso, infelizmente, não causa
nenhuma surpresa aos filhos e cônjuges, porque normalmente um professor traz para casa provas e trabalhos para corrigir e se envolve durante horas no
preparo de suas aulas.
Essa rotina de
humilhações à que um trabalhador da linha de frente da guerra contra a
ignorância está habituado, é invisível aos olhos da sociedade. Qual será a
pandemia que irá visibilizar esses profissionais? Além da complexidade técnica das
situações que normalmente um professor tem que enfrentar no seu cotidiano
docente, que exigem muito estudo, atualização, treinamento e conhecimento, de
uns tempos para cá ainda temos que enfrentar um exército de pais e familiares donos
da verdade, com ideologias as mais diversas, querendo determinar como serão as
ações pedagógicas para com seus filhos. Chegam a invadir e ameaçar os
profissionais em seu local de trabalho. Até mesmo alunos um pouco maiores,
pirralhos de catorze ou quinze anos, se veem no direito de filmar e contestar
as aulas dos professores. Não são muitos os que resistem a tanto assédio moral,
o troca-troca nas escolas é bem grande. Aqueles profissionais que têm alguma
outra opção vão embora. A profissão de professor tem aposentadoria especial não
por acaso. A maioria sucumbe com as mais diversas doenças psíquicas: síndrome do
pânico, depressão, ansiedade, bipolaridade, se afastando em longos atestados
médicos. O uso de psicotrópicos é largamente difundido como solução para continuar
a trabalhar sob estresse acima do tolerável.
O sistema como
está acaba gerando um professor sobrecarregado, de desempenho medíocre. As
férias e feriadões acabam sendo ansiosamente aguardados, há os que estão
comemorando a pandemia por poderem ficar afastados de pais e alunos. Nos seus
poucos momentos de ócio, os professores querem folga para suas mentes. São poucos
os que leem quando podem ficar em casa. Fico sempre angustiado quando vou a
casa de algum colega e não acho a biblioteca ou quando a novela é mais
comentada que um filme que exija reflexão. O desejo de estudar mais é quase
inexistente na categoria, eu mesmo já desisti, não há quase nenhuma perspectiva
de melhoria salarial para os que buscam se atualizar.
Na verdadeira linha
de frente da saúde, a mesma linha de frente da guerra contra a ignorância, os
combatentes estão bem cansados e desmotivados. Estou quase desejando alguma
crise, semelhante a essa que vivemos agora na saúde, que chamasse a atenção da
sociedade para os trabalhadores da educação para nos colocar na vitrine também.
E que batessem palmas nas sacadas dos edifícios para nos homenagear com a
devida justiça, nossos esforços sempre foram muito grandes, apesar de
invisíveis. Ah, e que a sociedade finalmente entendessem que atirar dinheiro na
nossa cara faria uma sociedade muito melhor para todos. Eu pego até piolho, mas
quero ser bem remunerado para isso.
Disse tudo!!!!
ResponderExcluirDifícil é quando se encontra professores que coadunam com a ideia de que a educação precisa ser suprimida, porque não há como melhorá- la. :(
ResponderExcluirEssa tal politicagem que afeta todos os setores! Melhoraremos!
Excelente texto. Bom que podemos compartilhar. Gratidão!