Lições de um
sonho apocalíptico
Uma ocasião, li
a entrevista de Francis Ford Coppola, o premiado cineasta americano, célebre
por ter dirigido filmes que problematizam e revisam historicamente mazelas
sociais como a máfia (O Poderoso Chefão, 1972), a guerra (Apocalypse Now, 1979),
a marginalidade (O Selvagem da Motocicleta, 1983) e até mesmo as histórias de
terror (Drácula de Bram Stoker, 1992). A conversa passava longe de seus filmes,
ele discorria sobre os avanços da democratização do conhecimento através da
internet. Numa época que ainda não existiam Facebook ou mesmo YouTube, ele
previa que a popularização dos equipamentos conectados a rede poderiam tornar “tudo,
acessível a todos, todo tempo”. Aquela frase me impactou muito e, apesar de
incrédulo, a levei em consideração seriamente. Acreditei que tal previsão era
para um futuro muito distante, mas quando ocorresse realmente, tudo seria
maravilhoso, o mundo avançaria muito rápido para uma fraternidade global.
Fiquei esperançoso, pois, nos seus filmes, Coppola sempre denunciou que a
história é a prova de como a humanidade se transforma num oceano revolto por
corrupção, violência e dolorosa agonia, esse filme de terror que estamos tão habituados
a vivenciar.
Coppola tem
muitos parentes na indústria cinematográfica. Uma filha, uma neta, uma irmã e
também um sobrinho, nem todos com o mesmo talento. O sobrinho se chama Nicolas
Kim Coppola, mas adotou o nome artístico de Nicolas Cage. O menino teve uma infância
difícil, sofreu com família desestruturada: a mãe separada passava muito tempo
internada em hospitais psiquiátricos tratando um transtorno bipolar intenso. A
carreira como ator reflete isso, Nicolas alterna Oscars com Framboesas de Ouro.
Obviamente, em algum momento Cage “encontrou Jesus”, pois muitos de seus filmes
são propagandas religiosas disfarçadas. Em “Cidade dos Anjos”, de 1998, Cage
vive um anjo que tem a função de levar as almas dos mortos e encaminha-las para
reencarnação. Já no filme “Presságio”, de 2009, vive um matemático da melhor
instituição de ciência americana que mimetiza a busca de outros grandes pensadores
da história como Isaac Newton ou Johannes Kepler. Os dois, físicos
revolucionários que dedicaram toda sua vida para decifrar a linguagem de Deus,
a matemática. Acreditavam que, por ser perfeita, a ciência dos números era o
único elo acessível ao ser humano para falar com Deus. Se bem estudada, poderia
descrever o passado e prever o futuro com exatidão. Nesse filme, o protagonista
consegue chegar à fórmula para entender Deus. Ainda que não fale uma única vez
o nome de sua crença, há uma ideologia religiosa evidente que tenta se mostrar
neutra. Cage só sai do armário religioso descaradamente em 2014, no filme “Apocalipse”.
Nessa obra, as cores do quadro cristão são ainda mais carregadas, onde o ator
vive um adultero pecador arrependido. Aqui, Cage parece assumir finalmente sua ideologia
e afinamento com as Testemunhas de Jeová, mas em nenhum momento do filme isso é
dito, somente “provado” com os “fatos” retratados no filme depois do
arrebatamento previsto por aquela religião.
Passados quase
vinte anos de que li aquela entrevista, a profecia de Coppola parece estar
muito próxima de se concretizar. Os aparelhos celulares são relativamente
baratos e o acesso a internet se popularizou dramaticamente. O conhecimento
acumulado pela humanidade realmente está disponível na palma da mão para quem
quiser a qualquer momento. Porém, a fraternidade universal que imaginei ainda
está muito distante. Os saberes que seriam pertinentes para tal realização
humana não são os mais procurados nas páginas da rede. Eu mesmo posso ilustrar
o verbete da pesquisa sobre um típico internauta: vagueio a esmo entre testes
de motocicletas europeias e gordas nuas. Há muito me indicavam uma série do
ciberespaço que acreditavam que apreciaria. Mais de uma pessoa salientava que
“Merli” era minha cara! Resisti e esnobei arrogantemente o professor de
filosofia catalão, nem cliente de serviços de streaming eu era. Mas, com a
pandemia do novo vírus corona, depois de ler “A peste”, de Camus, rachar muita
lenha, cozinhar e lavar louça, planejar atividades on line para meus alunos,
penei com o tédio e percebi a depressão começar a se enrolar nas minhas pernas
devido ao isolamento social. Capitulei, assinei Netflix e assisti um episódio
atrás do outro, como um fumante viciado, acendia um no toco do outro. Em pouco
tempo, consumi e me emocionei com as três temporadas da série ficando com
síndrome de abstinência de aulas de filosofia. Em cada capítulo, o professor
Merli ensinava sobre um pensador diferente. A aula que mais me chamou a atenção
foi a do inglês Adam Smith, que reflete sobre a competição, assunto que me é
muito caro por força do ofício que exerço. Pelo menos na Catalunha, ficou claro
para mim, os bons professores de filosofia se empenham em garantir que
adolescentes aprendam que competições são abjetas e devem ser combatidas com
amor, solidariedade e inclusão, o contrário da lei da selva proposto pela mão
invisível da ideologia capitalista.
Logo depois de Merli,
passei a varar madrugadas assistindo “Rita”, outra série sobre escolas públicas
de países desenvolvidos. Eu que também sou profissional da educação,
sadicamente me delicio satisfeito olhando aquela professora dinamarquesa
sofrendo com as mesmíssimas dificuldades pelas quais passa um funcionário público
subdesenvolvido tupiniquim. Legislações que engessam a ação pedagógica, chefias
castradoras, enormes limitações financeiras, colegas de trabalho invejosos e
traidores, alunos mal educados, pais absolutamente ignorantes e invasivos,
interesses políticos que se sobrepõe as deliberações técnicas, homofobia,
racismo, agressões físicas e verbais até contra profissionais, bulling sobre os
incomuns, consumo de drogas entre os estudantes, alcoolismo da protagonista, a
dificuldade de inclusão dos especiais, assédio sexual, a ansiosa espera pela
aposentadoria dos professores mais velhos, famílias desestruturadas e até
epidemia de piolhos são retratados com fidelidade. É até reconfortante para um
docente brasileiro saber que na Dinamarca, um dos países mais desenvolvidos do
mundo, praticamente as mesmas mazelas sociais assolam as instituições de ensino.
De novo, o episódio que mais me causou reflexão foi o que debate as
competições. Fica claro que há um grande cuidado dos professores para evitar a
selvageria na prática dos esportes através das regras impostas aos adolescentes
durante os torneios. O personagem principal, a professora Rita, sempre
retratada como politicamente incorreta e com um passado familiar terrível, se
atira as competições com uma gana feroz e incita seus alunos a massacrar os
adversários, contrariando o diretor e sua supervisora. Mas a série evidencia
que o cuidado solidário com os menos favorecidos, o contrário do que seria uma
competição social, ou o livre mercado, permite a recuperação e reinserção dos
socialmente vulneráveis como até mesmo a trajetória da própria professora Rita
retrata.
Minha namorada,
sabedora de minhas inclinações, me indicou um filme alemão, de 2011, disponível
na integra no YouTube e totalmente legendado em português sobre a introdução do
futebol na Alemanha em meados do século dezenove cujo título em português é “Lições
de Um Sonho”. A obra ilustra bem a educação formal das escolas naquela época e
em especial a Educação Física. Ginástica calistênica, castigos físicos, o
descarado ensino da guerra como a coisa mais honrada que um cidadão do Império
Alemão poderia ansiar viver, nada de mulheres na escola, a firme determinação
de excluir os pobres do ensino formal. Mutilados de guerra são trazidos para
dentro da sala de aula, palestrando e motivando os adolescentes a entender a nobreza
do sacrifício do corpo de um indivíduo em batalha para o bem do coletivo da
pátria. Nesse contexto, um jovem professor alemão, mas que viveu três anos na Inglaterra,
país inimigo da Alemanha, é contratado experimentalmente para ensinar a língua
e a cultura inglesa para os adolescentes. Após a resistência dos alunos em
aprender o idioma bretão, pois entendem que logo seria uma língua morta diante
do poderio militar alemão, o protagonista ensina o futebol, esporte recém-sistematizado
nas ilhas britânicas. Aqui fica tão evidente o posicionamento ideológico do
filme quanto no Apocalipse de Nicolas Cage. Há uma clara pregação, quase
religiosa, do roteiro, “provando” que os dogmas esportivos são uma panaceia social
para integrar as nações e resolver conflitos de forma amistosa e divertida. O
professor, seus alunos e sua nova paixão, o fussball, são perseguidos e
proibidos como coisa subversiva à ordem. Ao final, claro, há uma espécie de “arrebatamento”
dos puros de alma com a prova de que os praticantes do esporte seriam uma casta
moralmente mais sofisticada que pode elevar a civilidade da nação á um nível
muito superior. Até os pobres e gordinhos são incluídos e reconhecidos como
capazes. É um verdadeiro milagre divino! Os créditos nos ensinam que a história
é verídica e que aqueles “fatos” teriam mesmo ocorrido e, depois daquele
professor pioneiro, o futebol se disseminou por toda Alemanha, até ser
finalmente permitido na Baviera, ultima província alemã a sucumbir à sedução do
futebol, apenas em 1927.
Para este
professor de Educação Física que vos escreve, caro leitor, parece evidente que,
no longo processo civilizador pelo qual atravessa a humanidade na sua
experiência na Terra, os esportes tiveram papel fundamental para afastar o ser
humano da sua animalidade, colocando regras e limites nos conflitos, retirando a
morte e as mutilações como coisas normais do cenário social. No entanto, não
são um fim em si, mas um meio, uma ferramenta necessária numa etapa intermediária
na construção de uma civilização humana igualitária, fraterna e socialmente
justa. No meio do século XIX, quando surgiram os esportes modernos estimulados
pela revolução industrial, o conhecimento era produto consumido somente por uma
elite, mulheres eram coisas negociadas em troca de terras ou dotes, nem sequer votavam,
os pobres não tinham direito a educação ou saúde, negros, asiáticos e indígenas
eram escravizados nas colônias exploradas sob coerção de armas de fogo. O mundo
era completamente diferente do atual, tínhamos um bilhão de habitantes no
planeta e agora somos oito bilhões, os recursos naturais são finitos e não há
mais territórios inexplorados. O passado é tão moralmente vergonhoso aos olhos
do cidadão do mundo atual para algumas nações e castas sociais, que ações
afirmativas se fazem necessárias para reparar os abusos cometidos com os
oprimidos ao longo da história.
O livro Drácula,
escrito pelo irlandês Bram Stoker em 1897, conta a história de um nobre Romeno
da região dos Carpatos que renega a igreja católica por essa se recusar a
enterrar em solo sagrado sua amada por não ser cristã, sendo então amaldiçoado
a não morrer. Artistas como Coppola e Stoker, denunciam inteligentemente injustiças
sociais praticadas por um status quo opressor e cruel. Suas obras trazem à luz mazelas
sociais importantes que precisam ser debatidas e resignificadas, não podem cair
no esquecimento. O código de ética humano é reescrito toda vez que lumiares
assim nos fazem refletir. Fico feliz ao perceber que nas sociedades mais
desenvolvidas como aquelas retratadas nas series da Netflix, Merli e Rita, as
competições já são tidas como nefastas ao bem comum das sociedades catalã e
Dinamarquesa. No entanto, fico triste ao perceber que obras muito
contemporâneas como os filmes Apocalipse e Lições de Um Sonho, ainda pregam o
fundamentalismo dogmático de ideologias conservadoras e representantes de um
passado cruel. Por mais que a Globo e seus esportes, ou a Record e seu
cristianismo, tentem nos convencer do contrário, o código de ética humano tem
que ser reescrito de forma laica, sem as leis de qualquer deus e sem a lei da
selva das competições capitalistas. Temos todo o conhecimento humano na palma
de nossas mãos agora, como previu Coppola no começo dos anos 2000, precisamos estudá-lo
e usá-lo para construir um mundo solidário e cooperativo, respeitador das diferentes
crenças, do meio ambiente e de toda diversidade sexual e étnica humana.
Coragem, companheiros, pois o processo civilizador fabrica muitos mártires.
Muito bom. O olhar crítico nesses meios de comunicação em massa , as mensagens subliminares, são poucos infelizmente que tem essa percepção.
ResponderExcluirMuito bom, mesmo! Um outro olhar sobre o mesmo tema, q pra maioria é só o normal!
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