Hiperplasia
Maligna
O jornal Zero
Hora de Porto Alegre, na edição do dia 1º de fevereiro, traz uma reportagem sobre
passeios turísticos e ecológicos no município de Maquiné em áreas próximas a Reserva
Biológica da Serra Geral, única área do estado que nunca foi desmatada. A
comunidade local comemora a publicação, pois dará uma visibilidade maior aos
seus esforços de sobrevivência na região ainda bem preservada e até certo ponto
hostil a ocupação humana. O prefeito e demais políticos da cidade também celebram
o artigo, com grande foto de chamada na capa do periódico, porque trará mais
desenvolvimento para a população. Os produtores e comerciantes citados no texto,
evidentemente, regozijaram com a possibilidade de maiores vendas e lucros
vindos do grande afluxo de visitantes que a matéria possibilitará. E,
finalmente, os turistas, ávidos por novas atrações, curiosos por conhecer
aquela novidade: o meio ambiente natural. Todos parecem estar contentes, só
quem lamenta são meia dúzia de ambientalistas que entendem o estrago que tal reportagem,
com toda sua boa intenção e ingenuidade, pode gerar ao ecossistema nativo.
Com o surgimento
da pandemia do novo vírus corona, a imprensa se esforça em tecer loas a ciência
e os benefícios que ela traz para a humanidade. É inegável. A longevidade média,
como exemplo cabal de sucesso científico, dobrou durante o século XX e continua
a subir atualmente. A criação de vacinas, que evitam muitas doenças, assim como
medicamentos eficientes, como a penicilina, para tratá-las, transformou nossa
espécie no maior sucesso evolutivo do planeta. De pouco mais de um bilhão de
indivíduos há cento e cinquenta anos, saltamos para cerca de oito bilhões
atualmente. Não é incomum que quatro ou até mesmo cinco gerações convivam
juntas. Assim como na reportagem da Zero Hora sobre os passeios de turismo
rural organizados pela prefeitura, todos estão felizes com os avanços da
ciência, exceto claro, aqueles mesmos ecochatos que falam de uma tal
insustentabilidade.
Observe o gráfico do aumento da população humana no planeta do século I até a atualidade (no eixo x os anos e no eixo y bilhões de habitantes):
No final dos
anos setenta, eu ainda uma criança, li uma entrevista do ambientalista gaúcho
José Lutzenberger que me impressionou muito. Ele abraçava a teoria de Gaia, de
seu amigo inglês, o cientista James Lovelock. Segundo eles, o planeta é um ser
vivo, com fisiologia própria, auto regulatória, capaz inclusive de manter uma
temperatura média como se fosse um mamífero. Para Lutzenberger, a Terra trataria
o tremendo aumento da nossa espécie como uma doença. Naquela época, a população
humana ainda não chegava aos cinco bilhões de indivíduos. A humanidade seria
uma enfermidade que provoca febre e um aumento insustentável da temperatura
global e Gaia logo acionaria seus mecanismos de defesa imunológica para nos expelir
como um pus nojento. A hipótese de Lovelock e Lutzenberger se torna muito mais
palpável agora com o aquecimento global ou a pandemia de covid-19, quando a
comunidade científica inteira se encontra apavorada, pois mesmo com seus
maiores esforços já se vislumbra a possibilidade de nossa extinção. Uma simples
mutação do vírus para uma maior letalidade ou um grau a mais na temperatura do
planeta elevando o nível dos oceanos pode por tudo a perder. A arrogante
soberba humana de total controle de Gaia está se aproximando muito do caos. Gaia
é uma deusa da mitologia grega, que surgiu depois de outro deus, Caos. Caos e
Gaia não são antropomórficos, são de difícil representação. Caos seria uma
eterna queda, escura e úmida, um desespero incerto. Já Gaia seria o chão, o fim
da queda e do caos, onde outros seres poderiam se abrigar e viver, a firme certeza,
o calor, a superfície terrestre. É simplesmente chocante constatar que somos
iguais a qualquer outra espécie do planeta e estamos sujeitos aos humores
caprichosos da Terra. O próprio conhecimento científico nos faz chegar a
conclusões aterrorizantes: segundo os estudiosos, 99% de todas as espécies
biológicas que já existiram no planeta já foram extintas. Ops...
A mitologia
grega é parte importante da história do pensamento humano. Aquela conversa do
corpo ser separado da alma, por exemplo, de onde tu achas que o cristianismo tirou
isso? Sim, de lá, da Grécia antiga. No século I, a Palestina tinha sido
invadida e colonizada por romanos, que absorveram e ensinavam por todos os
territórios que dominavam a mitologia grega. Chamamos inclusive de mitologia
grego-romana, pois os nomes dos personagens mudavam, mas as histórias são as
mesmas. Provavelmente, o menino Jesus cresceu escutando “ad infinitum” nas ruas
aqueles mitos, como as coisas “na verdade” são, assim como nós atualmente
escutamos repetidas vezes que a ciência é a verdade e a vida. O filósofo francês
Edgar Morin, divide a história do pensamento em três momentos. O primeiro seria
esse que Jesusinho aprendeu na rua e deu uma melhorada, seria o paradigma
escolástico: a verdade está na bíblia e no que Aristóteles escreveu. Deus, ou o
cosmos para os gregos, era perfeito e o centro de tudo, aqueles que não
acreditassem nisso eram punidos com a fogueira para purificar o mundo das
heresias. O segundo seria o paradigma mecanicista ou científico: a verdade é a
experiência, se a razão for bem usada poderemos controlar tudo, até mesmo falar
com Deus. Esse é o paradigma antropocêntrico que ainda estamos imersos, o que aprendemos
na escola, surgiu com o renascimento e o iluminismo. Eu, como professor, tenho
que me ater a ele na escola por força de lei. A constituição também o defende
com unhas e dentes. No entanto, esse paradigma está vivendo seus dias de ocaso,
encontrou seus limites. Por mais racionais que sejamos, não conseguimos
controlar muita coisa e Gaia, nosso lar, nosso chão, caminha a passos largos
para o caos. Morin já nos introduziu um terceiro paradigma: o complexo. Nesse,
nem Deus nem o Ser Humano estão no centro de tudo. Não adianta rezar nem
raciocinar. No centro de tudo está a natureza e suas complexas interações entre
as espécies e o meio ambiente.
É doloroso
constatar que não temos a proteção de um papai do céu que nos salvará ou pelo
menos uma inteligência que racionalmente nos protegerá de qualquer enrascada. O
paradigma complexo nos obriga a admitir que não somos melhores que uma lesma do
jardim, ou pior, que um passivo gerânio comido pela lagarta. O paradigma
científico, todo esse tempo que ingênua e ignorantemente acreditamos que
tínhamos algum poder divino sobrenatural, talvez tenha se provado tolo ao final
das contas. A ciência inteira pode ter sido só um experimento em que as
hipóteses não se confirmaram. Erramos feio
na nossa avaliação inicial. José
Lutzenberger estava certo, somos um câncer no planeta com metástases em todos os
continentes, uma hiperplasia maligna em Gaia. Não vamos matá-la, não temos esse
poder, porém, provavelmente ela nos expelirá num pus nojento.
Observe o mesmo gráfico anterior, mas numa escala maior de tempo:
Vim morar há
nove anos na Barra do Ouro maravilhado com o lugar. Suas matas, seus rios e
cachoeiras, os pássaros e animais selvagens tão preservados. No entanto, eu sou
um ser humano contemporâneo, imerso no paradigma mecanicista, acredito que
posso controlar o meio ambiente. Me vacino e tomo medicações, não hesito em
matar cobras e aranhas que porventura apareçam na minha casa, retiro espécies
vegetais nativas para dar lugar a espécies exóticas que acredito serem mais
bonitas, além de cavoucar o pátio todo para formar um platô mais agradável para
um humano caminhar do que seria a encosta original do terreno. Eu também sofro
da ingênua boa intenção dos turistas atraídos pela Zero Hora. Não quero que
deixemos de nos vacinar ou tenhamos vidas mais curtas, não sou como Bolsonaro,
ele ainda está no paradigma escolástico. Mas é imperativo que para nossa espécie
sobreviver a própria estupidez que façamos um rigoroso controle de natalidade.
Os Chineses estavam certos, usaram o bestunto: só um filho por mulher. Gaia não
sustentará nosso sucesso ecológico por muito tempo.
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