Memória
O psicólogo canadense
Steven Pinker, no seu livro Tábula Rasa, supõe a razão do porque não termos
muitas memórias antes dos dois anos de idade. Ninguém lembra, por exemplo, do
momento do nascimento, o cheiro do seio da mãe ou do gosto da papinha. No
entanto, os testes em laboratório provam que os bebês têm uma memória perfeita,
tão boa quanto crianças, adolescentes ou adultos. Pinker lança uma hipótese,
apesar de não ter ainda como prová-la, que depois que aprendemos a falar,
passamos a organizar os pensamentos de forma verbalizada. Passamos a contar
histórias do que já nos aconteceu para nós mesmos com palavras. No entanto, as
memórias anteriores ao aprendizado ficam difíceis de acessar, já que agora
temos instrumento muito mais eficaz de pesquisa no cérebro, a fala. A fala potencializa a memória. As
palavras são uma espécie de senha para revivermos todo um contexto de sensações
trazidas para o cérebro pelos sentidos. Cheiros, sons, cores, tatos, gostos de
alguma cena de nossa história prévia voltam para uma reavaliação do momento
passado.
Já o filósofo australiano
Peter Singer, no seu livro Ética Prática, de divulgação filosófica, defende o
bestialismo desde que prazeroso para ambos os animais envolvidos, ser humano e alguma
outra espécie. No mesmo livro, defende o direito das mulheres de escolher se
querem ou não prosseguir com a gestação, o direito ao aborto. Os maledicentes
pinçam do texto essas duas posições descontextualizadas de sua argumentação e espalham
o ódio ao autor: Singer prega a morte de fetos e sexo com animais. Ler um livro
é bem mais demorado e difícil que ler uma frase no Whatsapp. E as frases podem
resumir tudo que basta para gatilhar o ódio a alguém. Apesar do cuidadoso
trabalho de argumentação filosófica detalhado no livro para chegar a tais conclusões,
quem não o lê encontra atalhos que acabam com o debate de acordo com os
conceitos aprendidos anteriormente.
Um livro é uma
forma de transportar o conhecimento de alguém, através do tempo e espaço, para outra
pessoa que não tenha possibilidade de sentar ao redor da fogueira com o sábio
que detém aquele conhecimento para ouvir de sua própria boca o que sabe. O
código escrito foi uma grande evolução na ampliação da memória, tanto quanto na
divulgação dos conhecimentos humanos, assim como o domínio da fala é para a
evolução do indivíduo. A escrita organiza e perpetua a memória e possibilita
que as recordações sejam partilhadas com outras pessoas. As memórias que não
são escritas são bem mais difíceis de recordar com precisão e são facilmente
esquecidas, assim como as memórias visuais ou olfativas antes do aprendizado da
fala são logo esquecidas pelas crianças, as falas vão se apagando com o tempo. A escrita potencializa a memória. No entanto,
decodificar uma longa história é trabalhoso além de obrigar a carregar um
volume. Alguém que sabe contar muitas histórias as carrega na cabeça para onde
vai sem esforço. Porém, uma biblioteca pode conter muito mais histórias que
qualquer cabeça, mas é muito volumosa e não dá para carregar por aí toneladas
de livros. Um livro é útil e preciso para guardar informações, mas um trambolho
enorme.
As culturas
orais desdenham das culturas que confiam na escrita. Como pode alguém abdicar
dos anciãos da aldeia para perpetuar a cultura? A transmissão cultural vai depender
da boa vontade do indivíduo em sentar num canto concentrado para decodificar
aquele amontoado de folhas de papel na ordem certa? Parece ser muito mais seguro
o ritual de sentar em roda, ao som e à luz da fogueira, com os cheiros e gostos
que a reunião implica para ouvir as histórias dos idosos sistematicamente,
assim o conhecimento se perpetua entre todos.
Já culturas que
se acreditam mais evoluídas, confiam na escrita. Tanto que aprender a
decodificar o código escrito é uma obrigação das crianças. Desde pequenos, os
indivíduos tem que passar horas diárias durante anos de sua juventude em
escolas para aprender a decifrar e codificar a língua adequadamente. Saber ler
e escrever determina o sucesso social ou o fracasso do cidadão. Até mesmo as regras
sociais, leis da comunidade ou os códigos de ética são colocados na forma
escrita em papel para que a memória precisa delas seja transmitida para toda
população. Uma das leis escritas diz inclusive que o cidadão não pode alegar
desconhecimento das leis escritas para não cumpri-las. É um círculo: alguns
acreditam que seja virtuoso, outros vicioso. As culturas alfabetizadas chegaram
a tal ponto que desmerecem as culturas orais, as tratam como inferiores e as
chamam de subdesenvolvidas.
O mundo da
voltas e mesmo a pessoa mais erudita da cultura escrita está atualmente sendo
constrangida pelo veloz surgimento de uma outra cultura, talvez ainda mais
arrogante e de poder avassalador, a cultura digital. O império do código
escrito está começando a declinar, pois mesmo alguém já morto há muito tempo ou
distante milhares de quilômetros pode ser escutado e visto como se estivesse
sentado do nosso lado ao redor da fogueira. A erudição pode vir sem a
necessidade de decifrar nenhum volume impresso em papel. Todos tem acesso a
tudo a qualquer momento num pequeno aparelho eletrônico que cabe no bolso e
falta pouco para que possa ser implantado no cérebro. Isso inclui os livros e
jornais impressos, mas vai muito além. A digitalização entrou na também academia,
qualquer pessoa que deseja saber o que Steven Pinker ou Peter Singer sabem não
mais precisa decifrar as seiscentas páginas de papel de cada um de seus livros,
mas sim pode ouvi-los falar no YouTube as mesmas palavras. O conhecimento se
democratizou. Alguém que vivenciou uma cena pode mostrar para seus interlocutores
o que viu e ouviu, há minutos ou há anos e essa memória partilhada é mais fiel a
realidade que qualquer fala ou escrita. A
digitalização do conhecimento potencializou a memória de forma exponencial.
Pela primeira vez na história, os indivíduos mais jovens podem ter o que
ensinar para os mais velhos, tal a velocidade de transmissão das informações. De
novo, os detentores da cultura ancestral desdenham dos mais novos: como assim o
conhecimento pode ser transmitido sem leitura??? Absurdo!!! Mas o mundo não
para e é impiedoso com aqueles que se recusam a ficar parados no tempo.
O neurologista português,
Antônio Damasio, nos ensinou, no seu livro O Erro de Descartes, que para tomar
qualquer decisão, desde se queremos ou não um cafezinho até se aceitamos casar
com a Marília, consultamos rapidamente a memória de toda nossa história prévia para
melhor decidir o que fazer. Atualmente, com essas próteses de memória
portáteis, podemos consultar a memória do mundo inteiro. Assim, algo que poderia
ajudar, pois acelera a obtenção de dados a respeito do que fazer, pode também
dificultar a decisão numa magnitude oceânica. Se antes era relativamente fácil,
pois só tínhamos que analisar a Marília, a Valdete, a Maria das Dores, a
Lavínia e a Nilce, nossas vizinhas de aldeia na idade de acasalar, agora temos
milhares de possibilidades no Tinder, num raio de 50km, para avaliar. Os sofrimentos
psíquicos de ansiedade e depressão, que antigamente eram raros, são agora
epidêmicos. Temos a memória do mundo visível na palma da mão e veranear em Cidreira
parece muito pior que veranear em Creta. A memória das paisagens gaúchas e gregas
estão ali na nossa memória protética para compararmos.
O conhecimento
se democratizou e a memória se tornou global, divina e onipresente. Porém,
paradoxalmente, as decisões não tem sido mais sabias. Selecionar o que é joio
do que é trigo no manancial de informações que recebemos diariamente se tornou
uma tarefa difícil. Ainda não há um aplicativo do bom senso. A erudição na
atualidade está justamente aí, a pessoa que consegue sabiamente acompanhar o
avanço desembestado da cultura digital sobre todas as outras sabendo
diferenciar o que é o conhecimento pertinente do que é festim. E aqui chegamos
ao filósofo francês Edgar Morin no seu livro Os Sete Saberes Necessários a
Educação do Futuro. As escolas não mais precisam ensinar a decifrar o código
escrito ou a tabuada, esses saberes serão facilmente acessíveis on line para
quem quiser se divertir, mas sim precisamos ensinar os alunos a diferenciar o
que é relevante na floresta do conhecimento. O bom pesquisador, treinado,
saberá perceber o que interessa para a construção de novos conhecimentos
pertinentes. No atual ritmo de devastação ambiental que a enorme exposição ao
conhecimento e a memória proporcionou, que ameaça nossa própria espécie, não
vou me admirar se aos poucos cheguemos a conclusão que bom mesmo era aquela
conversa com os anciãos ao redor da fogueira, ou quem sabe até aquela memória
visual, tátil, olfativa, sonora e gustativa dos bebês, gatinhos e cachorros. Eles
é que sabiam mais o que é realmente necessário para ser feliz, desde o início.
Sempre perfeito no que escreve.
ResponderExcluirMuito interessante esse teu texto.