Tambora,
Corona e O Grande Inquisidor.
A
erupção do vulcão do Monte Tambora, numa remota ilha da Indonésia no Oceano
Indico, em 1815, foi a maior já registrada até hoje. O dramático fenômeno natural,
de proporções bíblicas, expeliu uma quantidade descomunal de partículas sólidas
na atmosfera. Estima-se que algo em torno de cento e oitenta quilômetros cúbicos
de rochas foram pulverizados, o que formou a mais terrível nuvem de cinzas já
vista pela humanidade. A trágica ocorrência cobriu a atmosfera por dois anos,
determinando uma brutal diminuição de incidência solar no planeta. O evento
ficou conhecido na Europa como “o ano sem verão” porque um inverno emendou no
outro e fez com que as plantações e mesmo o pasto morressem no mundo inteiro. A
situação foi sinistra, a fome se espalhou pelo mundo. A população de cavalos, força
motriz base da economia de então, foi dizimada por não ter o que comer e por
ter virado alimento para os humanos famintos. Uma gigantesca onda de inovação
tecnológica se ergueu durante aquele impiedoso inverno vulcânico. Alternativas ao
cavalo foram logo pensadas. Um funcionário público alemão, Karl von Drais, da
pequena cidade de Karlshure próxima a Heidelberg, colocou duas rodas de madeira
num cavalinho de pau e saiu rápido pelas ruas pedalando o chão, como num
patinete, sentado numa confortável sela. O que poderia ser interpretado somente
como um retardado circulando num brinquedo de criança em qualquer outro momento
histórico, aquele cavalinho de pau determinou uma avalanche criativa nas mentes
mais inteligentes e inovadoras do mundo. A invenção causou sensação naquele
momento de incrível imobilidade e foi imediatamente copiada e aperfeiçoada por
todo continente europeu. A primeira modificação criada foi colocar uma alavanca
para direcionar a roda dianteira, possibilitando a mudança de rumo daquela maquininha
tão simples. Mas a coisa não ficou por aí, pois o mundo necessitava
urgentemente de soluções e aquela, apesar de um tanto ridícula, era a única que
funcionava. Passaram a construí-la com treliças de tubulações metálicas soldadas,
sem a cabeça do cavalo entalhada na madeira, o que não só tirou a aparência de
brinquedo, mas revolucionou a construção metal mecânica da época e tornou o
objeto muito mais leve e resistente. As rodas sofreram uma revolução semelhante,
passaram a também ser feitas de leves aros metálicos ligados ao eixo por uma
trama de cabos de aço. Isso significou, literalmente, a reinvenção da roda. O
veterinário escocês John Boyd Dunlop, inventou um pneu com ar dentro para dar
mais conforto ao triciclo de sua pequena filha. Novas ligas metálicas foram
desenvolvidas para tornar as agora chamadas bicicletas ainda mais leves e
duráveis. A máquina bicicleta não só se tornou a locomotiva de inovação
tecnológica industrial, mas também uma grande atratora de mudanças sociais. As
mulheres puderam começar a se deslocar rapidamente com aqueles instrumentos
leves e eficientes para se reunir longe de homens. Passaram a modificar suas
vestimentas para se adequar as bicicletas e surgiram as primeiras calças femininas.
O movimento feminista deu um salto em quantidade de adeptas e conquistas em tal
magnitude, que uma de suas maiores lideranças, Susan Anthony, chegou a declarar
que nada fez mais pelo movimento feminista que as bicicletas. A crise detonada
pela erupção do Tambora reacomodou a humanidade em uma nova fase, muito mais
sofisticada, tanto industrial como socialmente, que ninguém poderia imaginar
durante o sofrimento daquele ano sem verão. Alguém que crê em Deus diria que
Ele escreve certo por linhas tortas.
O
espetacular desenvolvimento humano após a erupção do Tambora foi ao custo de
uma enorme degradação ambiental devido ao grande crescimento econômico,
populacional e industrial dos países sobre seus territórios. Novas fontes
energéticas e até mesmo novos territórios tiveram que ser encontrados,
alastrando pelo mundo a fogueira da prosperidade humana. As zoonoses, doenças infecciosas
vindas dos animais, passaram a se multiplicar e ser muito mais comuns entre nós
humanos conforme fomos devastando o meio ambiente original. Ebola, AIDS, dengue,
zika, chicungunha, malária, são todas doenças trazidas para o ser humano das
florestas derrubadas, surgem novas toda vez que avançamos sobre os ecossistemas
naturais para criar um sistema antropogênico. A atual pandemia do novo vírus
Corona não é diferente, resulta de nossa própria eficiência na proliferação de
nossa espécie sobre as demais. Deus parece gostar de matar ao escrever suas
linhas bastante tortas.
Uma
nova terrível praga de proporções bíblicas assola a humanidade. A pandemia do
novo vírus Corona imobilizou as pessoas em casa, derrubou a economia dos países,
matou muita gente e causou fome como o Tambora há duzentos anos. No entanto,
enquanto alguns sofrem com o flagelo, outros privilegiados que podem se
distanciar da possibilidade de contágio, trabalham intensamente para tornar o
mundo mais agradável para nós humanos. Enquanto não somos extintos por nossa
ganância e estupidez, as pessoas mais inteligentes e criativas vão tratando de
sofisticar nossa breve existência no planeta em crise. A arte, particularmente
o teatro, ficou muito debilitada com o confinamento exigido pela quarentena
sanitária. No entanto, algumas cabeças brilhantes e resistentes tentam por
rodas em cavalinhos de pau inovando na adversidade. Assisti à peça de teatro “O
Grande Inquisidor”, com o ator Celso Frateschi, texto extraído do livro Os Irmãos Karamazov, do engenheiro militar
e escritor russo Fiodór Dostoiévski, numa montagem on line. A encenação lembra
um teatro normal, temos que chegar um pouco antes, lemos o programa conversando
com os conhecidos que estão na “sala” virtual, podemos inclusive ver o ator se
vestindo e maquiando para a entrada em cena, toca uma campainha para mantermos
o silêncio fechando os microfones e a peça começa. O figurino e o cenário são
perfeitos, melhores até, acredito, do que seriam num teatro de verdade, o
calabouço parece mesmo um calabouço e podemos ver pequenos detalhes da roupa do
personagem. Assistimos tudo de uma só câmera, como se tivéssemos sentados no
teatro, ou realmente presentes na cena, no entanto, o texto nos leva a perceber
que temos o ponto de vista de um dos personagens, que nunca se pronuncia ou
aparece, vemos através dos olhos dele. O monólogo é de um inquisidor espanhol do
século XVI que acaba de condenar Jesus que retornou, conforme havia prometido.
Nós vemos através dos olhos do silencioso Jesus que serenamente aceita seu
destino e somente escuta o inquisidor justificando porque foi obrigado,
novamente, a condenar o Cristo à morte. O debate teológico e social é oceânico,
mas meus modestos conhecimentos são de um pequeno bote, não consigo atravessar
sem fazer água. Atenho-me a detalhes da montagem. Não é cinema, pois a câmera é
fixa por horas, como se fosse mesmo um espectador sentado na plateia de um
teatro, mas é, de certa forma, melhor que teatro, pois posso chegar tão perto
do ator que vejo os pelos de suas narinas e os poros de sua pele. A experiência
de assistir essa peça de teatro on line é inquietante, temos a certeza de estar
assistindo um momento histórico, as primeiras voltinhas de um cavalinho de pau,
mas que nos faz vislumbrar toda uma nova indústria, como Guttenberg e sua Bíblia
ou os irmãos Lumière com seu cinematógrafo.
A
montagem de O Grande Inquisidor on line nos põe na posição de Deus, somos Ele,
vemos o que ele vê e ouvimos calados as justificativas dos poderosos para
manter as diferenças sociais. Obviamente, Dostoiévski não
imaginou essa montagem que assisti com recursos eletrônicos bastante atuais quando
escreveu o texto, mas é interessante reparar que ele nasceu em São Petersburgo,
no nordeste europeu, apenas cinco anos após o ano sem verão. Certamente sua
família e ele mesmo sofreram com a fome que se abateu nos anos seguintes, não
tinham cavalos ainda que fossem bem abastados e se questionavam sobre os designíos
de Deus. Sua forma engenhosa de construir soluções para uma nova sociedade,
como bom engenheiro militar, foi através da escrita. Fez uma obra de tal
envergadura que me alcançou duzentos anos depois e me fez refletir com muita
intensidade sobre as questões da atualidade. O Grande Inquisidor alerta para o
fato de que a humanidade, ou melhor, os seres humanos poderosos, sempre
repetirão seus erros, como condenar o Cristo novamente. No nosso caso atual,
nessa terrível nuvem de vírus corona que cobre o planeta, teremos de novo
pessoas que sofisticam moralmente a sociedade, como quem cria teatro on line, mas
também teremos pessoas que aproveitam a crise para expandir seus negócios,
passar a boiada por cima dos ecossistemas naturais, trazendo um grande aumento
de destruição ambiental e provocando ainda mais zoonoses. Dizem que as crises
geram grandes oportunidades, mas tanto para o bem como para o mal. Precisamos
ler mais Dostoiévski ou, tão bom quanto, assistir com atenção as montagens
online de seus textos para poder melhor compreender que Deus somos nós que
criamos, assim como muitos de seus desígnios.
Muito bom, Tiago!
ResponderExcluirMuito bom, Tiago!
ResponderExcluirMuito bom meu amigo...
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