terça-feira, 27 de maio de 2025

 É PRECISO AGIR


Bertold Brecht (1898-1956) 


Primeiro levaram os negros 

Mas não me importei com isso 

Eu não era negro 

Em seguida levaram alguns operários 

Mas não me importei com isso 

Eu também não era operário 

Depois prenderam os miseráveis 

Mas não me importei com isso 

Porque eu não sou miserável 

Depois agarraram uns desempregados 

Mas como tenho meu emprego 

Também não me importei 

Agora estão me levando 

Mas já é tarde. 

Como eu não me importei com ninguém 

Ninguém se importa comigo


Humilhações


O então presidente Jair Bolsonaro, em 2020, aproveitou a pandemia para congelar o salário dos funcionários públicos. Nem reposição inflacionária estava permitida. Seu decreto também congelava os avanços vegetativos do funcionalismo. Como sou professor em escola pública, a decisão me afetou. Fomos compreensivos na época, apesar de discordar da medida, porque a situação era nova e realmente excepcional. Nós, professores, e também os alunos, tivemos que comprar tablets, laptops ou celulares bons para poder participar das aulas online daquele período, além de pagar acesso à internet do próprio bolso, já que o poder público não achou que fosse necessário gastar com esses detalhes. Ou seja, além da diminuição salarial, fomos obrigados a aumentar nossos gastos para pagar pelos meios para executar nosso trabalho que agora era a distância. 

No município em que trabalho, Osório, no litoral norte gaúcho, ainda durante a pandemia, elegemos um prefeito bolsonarista, Roger Caputi. Ele também resolveu economizar conosco, os barnabés. Alegou que a economia da cidade estava debilitada devido aos transtornos causados pela emergência sanitária e, por isso, não poderia repor toda a inflação do período pandêmico porque estaria ultrapassando o limite prudencial da lei de responsabilidade fiscal. Nosso sindicato calculou em 23% o achatamento salarial, quase um quarto do salário e, mesmo respeitando o limite orçamentário legal, pelo menos 10% poderiam ser repostos. O chefe do executivo municipal resolveu nos dar somente 7% porque, segundo ele, seria o possível naquele momento, do contrário o serviço público seria precarizado. Ficamos injuriados, mas ficamos calados. Na pacata cidadezinha do interior em que vivemos, os valores morais são estranhos, se acredita que protestar contra injustiças é uma coisa condenável, elegemos conservadores. Eu e minha companheira, que também é professora, fizemos as contas e constatamos que economizaríamos se saíssemos da nossa casa própria e alugássemos uma casa mais próxima a escola em que trabalho. Por incrível que pareça, seria mais barato do que pagar a gasolina da moto para ir trabalhar todo dia, tal o valor que estava atingindo o combustível durante aqueles tempos de pandemia com Bolsonaro descarrilhando o país. 

Abandonei meu silencioso sítio com pomar e linda vista para o vale na serra do mar e fui morar na ruidosa vizinhança ao lado da escola com vista para o ginásio poliesportivo. Para ajudar nas despesas de locação, também aluguei para um estranho minha quentinha casa própria com lareira na sala e estoque infinito de lenha no pátio, bem no começo do inverno. No ano de 2022, em abril, do nada, o tal Caputi resolveu dar uma atenção especial aos professores e espremê-los um pouco mais: acabou com nosso “desdobramento”. Somos concursados para vinte horas mas trabalhamos quarenta, assim, temos 100% a mais do salário, pois trabalhamos o dobro. De uma hora para outra, no meio do ano, me vi com só metade do salário, aquele mesmo salário que já estava diminuído! Fiquei fulo da vida e falei com meio mundo sobre a situação absurda que estava vivendo. A secretaria de educação me disse que estava tudo certo, afinal eu só precisaria trabalhar vinte horas semanais a partir de agora! Como eu continuava birrento por só ganhar metade do salário que normalmente eu recebia, me ofereceram então uma “ótima oportunidade”, segundo eles: Pegar um contrato temporário para as vinte horas que haviam me tirado. Claro, o salário seria bem mais acanhado para essas vinte horas, igual a de um professor em início de carreira, cerca de metade do que eu ganhava no desdobramento. No desespero, aceitei. De uma hora para outra fiquei com 75% daquele salário que já era 75% do de 2019. Na ponta do lápis, meu poder de compra virou algo como 50% do que era. Passei a ganhar como um monitor de escola ou um servente, pessoas que eu convivia no cotidiano trabalhando sorridentes, e nem percebia as privações pelas quais passavam. Passei a entender como vivem os excluídos. Troquei minha moto grande e segura por uma bem pequeninha, com peças bem baratas e sem sistemas eletrônicos de segurança, não estava mais conseguindo pagar a manutenção daquela que confiava. Passamos frio naquele inverno sem a lareira do sítio e à sombra do ginásio. 

De novo, eu e minha companheira fizemos as contas e percebemos que, apesar de todos os sacrifícios que estávamos fazendo, mesmo assim teríamos que fazer bicos. Ela passou a trabalhar numa pousada à noite e eu virei Papai Noel no Natal, vestindo vermelho e balançando uma sineta, engrossando a voz para falar ho, ho, ho. As humilhações começaram a se empilhar uma atrás da outra. Rapidamente, o requeijão virou margarina, a carne virou ovo e quando o gás acabava procurava algum lugar que aceitasse pré-datado, pois não tinha na conta os cem reais para trocar o bujão. Um dente quebrado vai ficar quebrado, pois o SUS só faz reparos menores e o orçamento num dentista particular é proibitivo. Se o postinho de saúde não oferece determinado medicamento, a coisa fica dramática. Fui ao banco pedir que aumentem o limite do cartão de crédito porque o enteado cresceu e seu tênis estava apertando. Mendiguei ajuda aos meus familiares e até meu velho pai aposentado de 85 anos se prontificou a vir em nosso socorro. Comprar livros ou ir ao cinema viraram luxos inacessíveis como uma vez já foi viajar ao exterior. O professor não pode mais comer ou morar bem, muito menos se atualizar. Isso sim é precarização. 

Os anos passaram e a inflação foi comendo nosso salário velozmente, ano passado Caputi resolveu dar 0,5% da inflação que tinha sido 5%. Fizemos campanha intensa para eleger um novo prefeito, alguém que valorize o servidor. Também nos empenhamos na luta por uma câmara de vereadores mais favorável. Vibramos quando elegemos um ex-prefeito que tinha sido generoso com os servidores no passado, Romildo Bolzan, e duas companheiras da categoria, uma servente e outra professora aposentada, Rosi e Isabel, para a câmara de vereadores. Para nossa desagradável surpresa, o eleito nos traiu e perpetuou as políticas anteriores. Bolzan fez uma audiência pública para dizer que não ia dar nem a reposição inflacionária do ano passado, 4,5%. Além disso, resolveu extinguir cargos importantes para as escolas, como secretário ou cozinheiro, para terceirizá-los. Anunciou também que nosso plano de saúde do IPE vai subir, praticamente dobrar de valor mensal. O desespero nos abateu, percebemos que teríamos que parar de pagar o plano de saúde porque agora, obviamente, não cabe no orçamento. Mas não podemos nos entregar pros home, levantamos a cabeça para lutar e promovemos as primeiras manifestações contra o executivo municipal desde que entrei na prefeitura. A consciência de classe finalmente chegou aos meus colegas de trabalho, aos coices, mas parece que agora entenderam. Marcamos uma passeata de protesto contra a precarização do serviço público, a superlotação das turmas, o sucateamento das escolas, o desmonte do atendimento em saúde, a desvalorização do servidor. 



Na concentração para a passeata, em pé numa praça do centro da cidade, ouvi duas colegas professoras conversando. Uma delas ficou inadimplente e o banco já tomou os seus dois últimos salários por inteiro, a instituição a escravizou, está presa aos seus grilhões. Não conseguia mais pagar os empréstimos consignados. Ela lamentava que a fome se avizinhava de sua família. Estava temerosa de ser denunciada por estar comendo a merenda com as crianças nas escolas que trabalha. A outra professora oferece a solução que utilizou para si: abriu uma conta em um banco virtual e fez a portabilidade do salário, abandonado a conta insolvente. Que se exploda seu nome no mercado. As duas humilhadas, se viram obrigadas a se tornar marginais fora da lei, apesar de seguir fazendo seu trabalho docente da melhor forma que podiam. Me interessei pela conversa, então não sou só eu que deixei de ser cidadão de direitos? Me aproximei para pegar as dicas com as duas sobre as estratégias que encontraram para sobreviver ao empobrecimento vertiginoso. Elas revelaram que aprenderam o que fazer com os alunos, ouvindo falar como agem seus pais na favela. Passamos a conjecturar ir morar ao lado dos alunos, nos barracos da ocupação desesperada, lá o aluguel é metade do preço e também fica próximo a escola.

Conversa vai, conversa vem, e descobri que estamos todos sendo expulsos de uma classe para sermos incluídos em outra: a classe despossuída, a classe dos ribeirinhos, daqueles que vivem à margem da sociedade, a classe dos excluídos. As soluções encontradas para a salvação vão desde as mágicas como procurar Jesus ou apostar na bet do tigrinho, até as mais pé no chão como vender Avon, Boticário ou brigadeiros. Os sortudos fazem Uber, cortam grama nas casas de veranistas ou faxinam nos condomínios. Nem a solução mais comum entre professores, trabalhar sessenta horas semanais, está dando conta. Eu resolvi apostar na megasena, fazer Uber, móveis rústicos para fora e no Natal o ridículo Papai Noel. Minha mulher se arrebenta numa pousada e vende licores para fora. E assim mesmo nada mudou, nem para nós, nem para meus colegas. Nem Jesus, nem o Uber, nem o tigrinho ou a mega ajudaram ninguém. As conversas são uma competição de desgraças, uma pior que a outra. O mundo que conhecemos está ruindo. 

Percebi que a melhor solução é dentro da lei, via política ou judicial. O presidente Lula é uma esperança grande dos pobres. A isenção de imposto de renda até R$ 5000 já vai ajudar alguns colegas. Ganhamos na justiça que o município pague o piso salarial definido nacionalmente, mas o município recorreu, vai demorar. Ganhamos na justiça que a lei seja cumprida também a respeito dos 33% das horas do professor para o planejamento. Nisso o município recorreu só nos retroativos, não quer pagar os cinco anos devidos. Eu fui ao banco novamente mendigar, renegociar as dívidas: devo, não nego, mas pago quando puder. O atendente me disse que todos os dias professores estão ali na sua frente fazendo o mesmo pedido que eu. Primeiro tinham sido professores estaduais no governo Sartori. Agora estão chegando os municipais, antes arrogantes diante dos colegas do estado, na mesma vala dos humilhados. Revelou que os trabalhadores, todos ex-marajás, da antiga CEEE e da antiga CORSAN, ambas empresas públicas privatizadas, também estão chegando às pencas. O rapaz me confessou que mesmo eles bancários do Banrisul, banco público, com sindicato forte, estão chegando a mesma situação. Finalmente, o cara me aconselhou a procurar outra profissão. A que ponto chegamos? A sociedade está concluindo que ser professor é semelhante a não trabalhar, virar mendigo, depender da esmola alheia. 

Cinco anos de desgovernos em meio a uma pandemia nos arrebentou de forma avassaladora. Morávamos bem, vestíamos bem, comíamos bem, tínhamos seguro saúde, veículo quitado, íamos ao cinema e até ao restaurante de vez em quando. Tínhamos orgulho da profissão. As coisas mudaram muito, viramos excluídos e agora nos vemos obrigados a refletir sobre justiça social. Antes tarde do que nunca! Preciso lembrar alguns sábios do passado para ajudar nessa reflexão. Primeiro, aquele judeu palestino que falava de amor, igualdade, fraternidade e divisão da riqueza, com certeza o primeiro comunista da história, Jesus: Eu não vim para trazer a paz, eu vim para trazer a espada! Ele quis dizer que a justiça social não vem sem luta. Algumas pessoas tentam esquecer o que ele falou, mas ele disse que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Outro pensador importante que nos ajuda a repensar posições conservadoras é, coincidentemente, também de origem judaica, mas alemão, e falava as mesmas coisas que Jesus, Marx. Não dá para chamá-lo de cristão porque era ateu, mas Marx também falava em igualdade, fraternidade e divisão das riquezas, além de nos exortar a lutar juntos: Trabalhadores do mundo, unam-se! Vocês não têm nada a perder exceto seus grilhões. Finalmente outro alemão, mas esse um cristão luterano, Bertold Brecht, com o qual abri esse texto. Brecht nos alertava em bom alemão: Ó, te liga, porque se tu não te juntares à luta agora, tu serás jantado nas próximas refeições pelos tubarões do mercado!


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