Num dos três
relacionamentos que chamei de casamento, tive uma enteada. Quando comecei a
namorar sua mãe, ela já tinha quinze anos. Podia ter se revoltado contra mim,
mas nos demos bem. Eu a chamava de Léti. Tinha uma aparência europeia, assim
como minha namorada. Sua família era toda de descendência alemã, colonas do
interior gaúcho, muitas vezes falavam alemão em casa. Era uma adolescente cheia
de sonhos e eu os estimulava. Inteligente e com iniciativa, pleiteou e
conseguiu meia bolsa de estudos na Aliança Francesa. Logo em seguida, também
conseguiu um estágio numa agência de turismo para pagar a meia bolsa ela mesma.
Queria viajar pela França. Tínhamos alguns problemas de liquidez, usando
expressão de um ex-ministro da fazenda para não dizer que éramos pobres. A
esperança de realizar aquele desejo era remota. Mas Léti não se abatia, fazia o
que tinha que ser feito para caminhar em direção àquele objetivo. Lá pelas
tantas já falava o francês, tirou o passaporte, trancou a faculdade e conseguiu
um intercâmbio gratuito através do estágio, só faltavam as passagens de avião.
Seu pai biológico também não tinha dinheiro, mas tinha crédito e comprou a
passagem em dez vezes. Pronto, se foi a Léti para França nos enchendo de
orgulho.
Já na França, a guria
teve todo tipo de problema. Perdeu as bagagens, se viu ameaçada de deportação,
faltou grana para tudo. Nós só podíamos torcer de longe e mandar esperança em
drágeas de verbo via e-mail. Seu intercâmbio previa estudo e trabalho, então
fazia um curso de francês e trabalhava de “au pair”, uma babá. No trabalho
sofreu maltratos, trocou de emprego. No novo serviço, era perseguida, trocou de
novo. Assédio moral, exigências absurdas, xenofobia, deboches, toda sorte de
abuso, em cada novo trabalho um problema diferente. Mas não se faz uma boa
espada sem que o aço passe pelo calor da forja, muito fogo e malhação. Enquanto
isso, nos estudos, tudo ia bem. Conseguiu a transferência de seu curso de
história da Universidade de Santa Catarina para a Universidade de Strassbourg. Fez
amigos, começou a namorar, renovou o visto de permanência. Aos poucos a
situação se estabilizou. Conseguiu um trabalho bom e tinha uma rede de amigos
europeus que a apoiavam. Léti nos convidou para uma visita, já tinha a
infraestrutura para nos receber, sua espada já estava polida e afiada. Pronto,
nos fomos para a França.
Lá na Europa
conhecemos o namorado da enteada, Pierre, seus amigos, o trabalho, a faculdade,
a região toda. Ficamos muito felizes de ver onde ela estava. Era um ambiente
jovem, cheio de vida. Tudo era encantador, os prédios, as ideias, as pessoas. Estrasburgo
é uma cidade linda e curiosa, já foi alemã, francesa, alemã de novo e francesa
desde a última guerra. Dependendo do resultado do conflito, Estrasburgo muda de
lado. Cansada de joguetes, Strass, como é apelidada, reflete muito sobre a paz,
a solidariedade, a fraternidade. É uma das sedes da União Europeia. Ah, se John Lennon fosse mais escutado: Imagine there’s
no countries, nothing to kill or die for. Ou quem sabe Bob Dylan: how many
times must the cannon balls fly Before they're forever banned? Strass agora é francesa,
há uma grande tolerância com os diferentes no ar, com o estrangeiro. A cidade tem
muitos bondes, casas barco e bicicletas, parece Amsterdam. Gostamos
muito das padarias, era tudo delicioso, os “bretzel” e os “pain au chocolat” nos
faziam comer mais do que o adequado, seu cheiro delicioso era sentido de longe.
Os amigos da Léti eram simpaticíssimos, ouviam nossas histórias com interesse e
nos faziam rir. Um deles era muito disposto e me guiou na subida da torre da
catedral para ver a vista, eram muuuuitos degraus, mas subimos. Seu nome era
Geoffrey, mas a pronuncia em francês é Jô-frô-á. Se não me engano era formado
em relações internacionais ou algo assim, mas, naquele passeio, me contou
entusiasmado de um curso que fazia na Bélgica para aprender as artes de um ferreiro.
Conversamos muito, porque a forja também é uma paixão que tenho, ainda que platônica,
só no mundo das ideias.
Pierre e Geoffrey
estão a frente de seu tempo. Os dois ajudaram a fundar uma associação de
ciclistas, pessoas que usam a bicicleta como transporte, para se deslocar pela
cidade. A coisa não é capitalista, não objetiva o lucro ou tem dono, é uma
associação comunista. Os donos são todos os associados que vivem em comunhão.
Partilham as ferramentas, o espaço da oficina, os saberes. A prefeitura apoiou
não cobrando o IPTU. A comunidade doa bicicletas velhas, estragadas,
abandonadas ou que estejam sem uso. Elas são desmontadas e as peças servem para
arrumar as bicis que estão em uso. Tudo grátis. Todos os associados podem usar
as ferramentas da oficina, aprender as técnicas que não dominam para arrumar
suas bicicletas e ensinar o que sabem. Alguns só aparecem quando precisam de
algum reparo, outros gostam de ficar por ali batendo papo e ajudando no que
podem. É obviamente uma associação de uma nova economia, solidária, comunista, sustentável,
ambientalmente responsável. A alegria dos participantes é evidente, há brilho
em seus olhos. Quando a fundaram, pensaram em mesclar no nome alguma coisa
muito local, característica de Estrasburgo, com as bicicletas. A associação foi
batizada de Bretz’selle, um trocadilho com a palavra Bretzel, dos pãezinhos alemães
em formato curioso, e selle, que é selim de bicicleta em francês. O símbolo gráfico
da associação é também uma mistura de bicicleta com bretzel. Maravilhoso, a
comunidade local logo a reconheceu como legítima e passou a frequentar o lugar.
Ontem foi o
aniversário da queda do muro de Berlim. Há trinta anos eu estava em Amsterdam
quando tudo aconteceu e senti de pertinho a euforia gerada pelo fim daquela
fronteira. O entusiasmo era perceptível na pele, se fez muita festa por toda Europa.
Os acordos para a União Europeia estavam selados, seu lema era “in varietate
concordia” em latim, unidos na diversidade em português e seu hino a “Ode a alegria”
do compositor alemão Ludwig van Beethoven. A união previa uma cidadania europeia,
sem distinção e com livre movimentação dos cidadãos entre os países membros. Já
estava até marcada a data para seu início. Que tempo alvissareiro. A profecia
de John Lennon parecia estar começando a se realizar. Um mundo sem fronteiras. A
onda progressista avançava por todos os lados e o apartheid da África do Sul estava
com os dias contados, Mandela logo seria solto. No Brasil, dias depois se fez a
primeira eleição direta em décadas e o presidente Collor de Mello foi eleito em
segundo turno contra Lula. Nesse momento efervescente, nessa primavera mundial,
estavam nascendo Léti e seus amigos.
Coincidentemente,
ontem fui à Porto Alegre para tentar arrumar uma máquina. Estava caminhando
pelas ruas do centro com uma amiga, descendo a Marechal Floriano, comemorando a
libertação do companheiro Lula, quando sinto um cheiro conhecido. O aroma vinha
de uma minúscula padaria especializada em Bretzel. Com a memória olfativa, meu
cérebro se encheu de boas lembranças. Entramos e a sorridente atendente era uma
simpática moça com aparência alemã, bem da idade da Léti, seus olhos brilhavam.
Pedimos um bretzel romeu e julieta, devidamente abrasileirado com queijo e
goiabada, delicioso. Enquanto comíamos, conversamos com a moça. Ela tinha feito
doutorado em biologia genética na Alemanha, era uma espada afiada, forjada no
calor e na malhação da academia em outra língua. Porém, se cansou da vida
acadêmica e ali estava ela, em sociedade com seu irmão, ganhando a vida como
padeira. Me lembrou muito Geoffrey e sua busca pela simplicidade, pelas
profissões realmente importantes. A aparência da Brüder Bretzel da Marechal era
muito semelhante a Bretz’Selle, até um pequeno sofá na frente para sentar e
conversar os dois estabelecimentos tem.
Algum tempo
atrás, reencontrei Léti no facebook. Com alegria observo o rumo que sua vida
tomou, assim como de seus amigos. Pierre e ela estão dando a volta ao mundo de
bicicleta, agora estão subindo montanhas por estradinhas da Ucrânia. Geoffrey
virou ferreiro e tem sua escola de forjaria em Estrasburgo. Os valores da
loirinha da padaria são os mesmo da Léti, do Pierre e seus amigos. São poliglotas,
não veem fronteiras, não se preocupam em enriquecer, buscam a felicidade e viabilizam
meios para sentar e conversar. Os quatro estão fazendo um esforço grande, mas
que para eles é fácil. Já passaram pela forja da vida, muito calor e malhação,
são mestres e doutores, espadas afiadas, estão construindo uma nova sociedade. Não
é a toa que Geoffrey escolheu ser ferreiro, profissão tão nobre, assim como
padeiro, existem desde os tempos bíblicos. São profissões simbólicas. Depois do
inverno de Trump e Bolsonaro, eles estão planejando e ensinando gerações anteriores
e futuras que outro mundo é possível. Com partilha e solidariedade. Nada mais
cristão. A geração deles está chegando finalmente ao poder e a primavera de uma
nova sociedade florescerá. Acredito que a libertação de Lula, assim como de Mandela
há trinta anos, simbolize esse equinócio. Olha... You may say I’m a dreamer, but I’m not the only one. Até Bob
Dylan já ganhou o Nobel em literatura, The answer is blowing in the Wind.
Um leque aberto à inúmeras reflexões. Gostei.🌹
ResponderExcluirComo sempre e não seria diferente, um texto maravilhoso de ler! Espero que a libertação de Lula nos leve pra um novo rumo, onde a esperança de que coisas melhores aconteçam!
ResponderExcluirParabéns belíssimo texto.
ResponderExcluirUm texto, como os demais, nos faz viajar e as cenas saltam aos olhos. Um passeio pelos continentes ligados pelo processo das novas expedições, da busca do novo mundo e nos faz refletir sobre a ida ao Velho Mundo, das gerações atuais, na busca de um mundo novo para se viver. E esse mundo novo pode estar mais perto que imaginamos..pode estar na padaria ao lado.
ResponderExcluirObrigado, Lourdes!
ExcluirAdoro suas lembranças cheias de histórias....
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