Ciclista (Besta animalesca 1)
Através
da luta dos ciclistas organizados aqui de Floripa, eles conseguiram que os
acessos das passarelas da avenida beira mar fossem rampas, ao invés das escadas
inicialmente projetadas. Assim, os usuários da ciclovia poderiam também
utilizar as passarelas sem precisar apear. Coisa engraçada: a ciclovia mesmo,
aquela baita ciclovia de oito quilômetros de extensão, não era uma demanda dos
ciclistas! Foi uma obra feita para ficar bonitinha nas campanhas eleitorais.
Nos entroncamentos e nas pontes por que passa, a ciclovia simplesmente acabava
num meio fio. Obviamente quem projetou e construiu a ciclovia não foi um
ciclista. A ciclovia não era para ser usada de verdade, era para ser somente
olhada! De quando em quando o ciclista se via obrigado a apear e subir a
calçada. Ridículo. Somente ano passado que a prefeitura fez pequenas rampas,
muito curtas e mal feitas, para que o ciclista não precise parar.
Dia
destes fui andar de bicicleta na ciclovia, era final de tarde. Coloquei a
sapatilha e a bermuda de ciclismo, capacete e luvas, mas não vesti a malha de
ciclismo, só uma camiseta comum, destas Hering. Fui em direção a UFSC, a
intenção não era outra se não olhar um pouco a mulherada por lá, ver umas
bundas, talvez passar uma cantada em alguma tchanga que valesse a pena. O
passeio seria calmo. Ia girando os pedais numa marchinha de escalada, bem
baixinha. Já voltando para casa, desci uma daquelas passarelas na banguela para
pegar mais velocidade. Ao reentrar na ciclovia, nas rampinhas mal feitas, um
pequeno degrau fez minha corrente saltar e cair. Bicicleta velha, manutenção
negligenciada, sabe como é... Nem amaldiçoei a prefeitura, aproveitando o
embalo que estava a bici, automaticamente abaixei o tronco e alcancei com a mão
a corrente toda oleada colocando-a de volta no lugar. Me surpreendi que eu
ainda sabia fazer aquilo com a bicicleta andando, apesar da pança. Mas, ao
reerguer o tronco, percebi que um testículo tinha se enfiado entre a coxa e o
banco. Com vinte quilos a menos isto não acontecia ao realizar a mesma manobra.
Ali o ovo não podia ficar e, com a bermuda colante, dali ele não iria sair.
Fiquei em pé na bicicleta, sem as mãos no guidon e ainda aproveitando o mesmo
embalo da descida da passarela, com a mão da luva suja de graxa afastei a
bermuda para frente e enfiei a outra mão dentro da bermuda resgatando a bola
apertada puxando o saco para cima. Quem olhasse toda a cena veria uma série de
malabarismos sobre a bicicleta sem entender nada do que estava acontecendo. No
máximo imaginaria um maluco exibicionista fazendo um show erótico.
No
exato instante que dei por concluída todas aquelas atividades bizarras e
nenhuma corrente caída ou ovo espremido me distraia mais, um ciclista passa por
mim como um raio. Instintiva, automática e reflexamente eu subi as marchas,
colocando numa de sprint, bem alta. Saltei sobre os pedais e puxei o guidon com
força. Em dez segundos eu tinha me transformado numa besta animalesca e já
estava colado na roda do atrevido. Como ousa me ultrapassar? Estou cansado de
aceitar estas “provocações” e de vencer este tipo de “desafio” de ciclistas de
fim de semana. Mas aquele guri parecia ser diferente. Era um sujeito magérrimo.
Devia ter uns dezoito ou vinte anos. As pernas finas pareciam duas cenouras
grandes, de tão finas. Os feixes musculares eram visíveis a olho nu. Corpo e
técnica de atleta profissional. O jeito dele na bici é de quem está acostumado
a andar forte, muito acostumado. E ele estava andando muito forte. A bici dele
era um frankstein total, coisa de quem gasta as peças e tem que trocar com a
que aparece, com a que o dinheiro dá, coisa de quem anda muito. Muito afinada,
super bem montada e ajustada para o tamanho dele, uma bicicleta de corrida. Ele
estava concentrado na posição de contra-relógio: costas na horizontal, cabeça
erguida com os olhos focados no horizonte, pescoço mergulhado no meio dos
ombros como uma garça, mandíbula inferior lançada à frente numa expressão de
dor e raiva, joelhos passando rente ao quadro, cotovelos colados ao centro do
peito, mãos unidas no meio do guidon, as coxas visitando os mamilos a cada
pedalada, os pés girando como um ventilador. E eu, agora na mesma posição que
ele, com minha roda da frente a cinco centímetros da traseira dele. A roda
traseira dele era só o que eu via. Já não via mais o mar, era só um borrão sem importância
do lado direito. Os carros passando na avenida eram só um borrão irrelevante do
lado esquerdo. Nem o barulho da avenida ouvia mais, só o ensurdecedor barulho
do vento contra. Já não via mais nem uma bunda caminhando ao lado da ciclovia.
Meu sistema nervoso interpretava, naquele momento, que a luta pela
sobrevivência passava antes por aquela roda traseira. Já não tenho mais vinte
anos, nem trinta, para aquele tipo de desafio, mas, irracionalmente, não
conseguia tirar o olho daquele pneu girando a toda velocidade. Qualquer mínima
distração, meu pneu rasparia no dele e somente eu cairia no asfalto quente e
abrasivo. Ele talvez só escutasse o tombo. A camiseta Hering panejava como uma
bandeira no meu ombro, funcionava como um paraquedas. Todas as informações que
meu cérebro processava eram somente sobre a direção do vento e as prováveis
condições físicas do guri. Eu tinha que me manter a sotavento, ali onde não se
ouve o barulho do vento e se pode sentir com grande clareza o cheiro do
ciclista à frente. Mesmo ali, me aproveitando da força do guri para acelerar a
massa de ar, eu já estava sofrendo. Ele não poderia segurar aquele ritmo por
muito tempo, não aquele ritmo. Passamos o Angeloni zunindo, ele não abaixou o
ritmo. Acho que ele percebeu minha inconveniente presença, mas nem deu bola,
não fez nenhum movimento de ataque para me despachar. Esta atitude no ciclismo
é típica de quem está muito treinado e confiante de sua condição física. Uma
forma de arrogância, quando tu tens tanto sangue para dar que não se incomoda
de remover um parasita minúsculo que te suga. Chegamos no koxixos a toda.
Lembrei de como ali costuma ficar cheio de pedestres à tarde, crianças com
bicicletinhas na ciclovia. Meu cérebro imediatamente deletou esta informação
como coisa inútil para a situação. Minha visão periférica e minha audição
registraram borrões de uma multidão passando, mas o guri não diminuiu o ritmo.
Pensei em como seria grave um acidente aquela velocidade no meio de um grupo de
pessoas caminhando, mas de novo meu cérebro deletou o pensamento. Eu não via
nada a frente, só confiava cegamente nele. Minha respiração já tinha o ruído da
de um asmático em crise, assobiada, e pela mesma razão: falta de ar! Já estava
esticando a veia do pescoço naquele tirambaço, mas, mesmo assim, eu só via a
roda girando a cinco centímetros da minha, algumas vezes chegou a sete e me
preocupou, me obrigando a pedalar mais forte. Lembrei que tenho vinte e cinco
quilos a mais de que quando corria de bicicleta e que eu estava numa pesada
bicicleta de viagem, mas meu sistema nervoso se irritou com mais esta lembrança
inútil. Chegamos na altura do shopping beira mar, na sinaleira que eu uso para
atravessar a avenida quando volto para casa. Mas nem me passou pela cabeça
parar. Minha boca já estava seca e com aquele gosto de vômito. A garganta em
brasa, queimando com a passagem do ar soprado que a secava. Um cuspe em forma
de pasta seca se formava nos cantos da boca. Eu já estava enrolando a língua no
pneu, mas não conseguia largar aquela roda que ia à minha frente. Ele tinha que
já estar sentindo algum tipo de cansaço, pensava eu a todo instante, logo ele
baixaria o ritmo. Mas não! Ele parecia tão concentrado no giro dos pedais como
quando passou por mim. Mesmo não estando muito quente no dia, um pingo de suor
se formou no meu nariz, pinicando, mas não tinha tempo para tirar ele dali com
a mão e nem ar sobrando para soprá-lo. Fiquei pensando que quando eu treinava,
nós revezávamos a dianteira para que o cara que vai na frente não se queimasse
sozinho. O guri esnobava solenemente minha presença ali e em nenhum momento
sugeriu com seu posicionamento na via que eu assumisse a dianteira. Na sombra
da minha bicicleta, vi luz do sol passando entre a corrente e a coroa, óbvio
sinal de desgaste e folga. Na sombra da bici dele, tudo justinho, somente
sombra entre a corrente e a coroa. Meus ouvidos estavam úmidos e pareciam
sangrar. Minhas musculaturas cervicais e lombares reclamavam em voz alta,
desacostumadas que estão, daquela posição estapafurdia. Meu corpo inteiro fazia
um grande esforço metabólico para extrair as últimas gotinhas de caldinho do
fígado. Uma faca parecia estar cravada nos rins, fazia muito tempo que eles não
tinham que filtrar tanto sangue. Até meu ombro já estava ardido do chicotear da
camiseta. De repente, num estalo de consciência, parei de pedalar e vi a roda
do guri se afastando rápido de mim já quase na ponte Hercílio Luz. O guri no
mesmo ritmo do início e eu já sem fôlego nem para ser seu parasita chupa roda.
Eu parei não porque me dei conta que aquele duelo idiota era uma coisa
primitiva ou infantil, mas porque meu sistema nervoso percebeu que meu corpo
tinha sido abatido por um macho muito mais poderoso do que eu. No esporte, uma
besta animalesca assim, que responde a estímulos instintivamente, como eu ou o
guri magrinho, se chama atleta.
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