Paul Rabbit
Quando tinha 15
anos, num feriadão de 7 de setembro, amarrei no bagageiro da minha bicicleta
Caloi, com fios de sisal, uma barraquinha e uma mochilinha e fui sozinho até
Cidreira. A viagem foi horrível, me dou conta hoje. Não levei água, contando
que haveriam postos ao longo de todo trajeto. Os pneus estavam murchos já na
saída. Carregava só uns poucos trocados. A bicicleta pesava uma tonelada e nem
tinha marchas. O bagageiro era uma armação de arame toda soldada com guspe.
Meus conhecimentos a respeito deste tipo de viagem eram nenhum. Não sei como
meus pais permitiram a viagem! Acho que eles acreditavam no meu fracasso e num
breve retorno.
A ignorância era
total, o equipamento era sofrível, a distância era grande. Mas a disposição era
a de um transatlântico, e eu consegui. Foi a viagem mais importante da minha
vida. Todo tipo de obstáculo surgiu no meu caminho. Desidratação, hipoglicemia,
exaustão, tontura. Quebrou o freio dianteiro, furou o pneu traseiro, o
bagageiro desmanchou-se pelo caminho. Quase morri de frio a noite, fiquei com
bolhas de queimadura solar, as coxas assaram, caí um tombaço, me escalavrei
todo. Esqueci a toalha de banho e a escova de dentes, sequei ao vento e palitei
num bar. Gastei tudo o que sobrou da minha “fortuna” num xis salada na noite
anterior a volta. Todos os problemas que iam surgindo eu, espantosamente calmo,
contornava com naturalidade. Depois daquela viagem percebi que se existia algum
limite no meu mundo era eu que os fixava. De uma hora para outra recolhi uma âncora
mental.
Cheguei
em casa e a Mama perguntou:
-
E aí? Como é que tava a viagem?
-
Bá, mas tri boa, Mãe!
Nada
se compara ao tremendo sentimento de liberdade que eu senti naquela viagem
pioneira. Depois desta heróica primeira experiência fiz muitas outras viagens
na adolescência.
Teve
uma vez que passei um mês sozinho em Garopaba numa barraquinha de dois. No dia
em que cheguei, procurei o camping mais barato. O Camping do Casarão era o mais
em conta. As
facilidades do camping eram: duas “duchas” (cano que saia da parede) e dois
tanques, só. Perfeito. Fiz as contas, olhando o tabuleiro de preços de uma
barraca de xis, para saber o que eu poderia comer diariamente de modo que meu
dinheiro durasse um mês. Um hambúrguer sem ovo com uma garrafinha de Coca por
dia era a melhor coisa que meu dinheiro poderia pagar. O plano econômico furou
na segunda semana, tive que comprar um Hipoglós para tratar as bolhas de
queimadura do sol nas canelas e no peito dos pés! Na última semana, para
compensar o caríssimo remédio que arruinou meu orçamento, vendi todas as minhas
camisetas e bermudas novas para o dono do camping. Com a grana extra, resolvi
banquetiar, paguei um PF num restaurante de pescadores. Em duas horas vomitei
tudo, era muito para o meu estômago de faquir. Perdi a fome por três dias, só
tomava Chocoleite na Padaria Santos. Apesar das dificuldades consegui ficar o
mês inteiro e foi o melhor veraneio que já tive. A sensação de independência
era uma milionária gratificação para um guri de 16 anos.
A
primeira vez que fui para serra de bicicleta foi com o Alemão. A Caloi já era
outra, mais nova, mas também sem câmbio e com pneus balão. Claro que fomos no
inverno e de barraca. E lógico que fez um frio do peru e choveu o tempo
inteiro. E óbvio que deu bonk em todo mundo na subida da serra e nós chegamos
exaustos depois de 12 horas de luta. E naturalmente não conseguimos dormir
direito, encharcados e tremendo de frio. No meio da madrugada, quando a chuva
deu uma trégua, levantamos e fizemos uma enorme fogueira de grimpas onde
secamos e aquecemos tudo: roupas, sacos de dormir, sapatos, espíritos e corpos
cansados. De novo, as complicações que apareciam só serviram para temperar a
vida e torná-la ainda mais saborosa.
Teve
inúmeras outras viagens, mas estas primeiras experiências foram decisivas, fui
infectado pelo “wanderlust bug”. Nas viagens que se seguiram as coisas não eram
tão sofridas. Fui aprendendo a evitar situações difíceis, o equipamento foi
melhorando, as técnicas foram ficando menos ingênuas e o planejamento mais
maduro. Depois as coisas se inverteram. Ao invés de esperar pelas dificuldades
que poderiam aparecer ao acaso, criava algumas pelo prazer de vencer o desafio.
Ir a pé, por exemplo. Delícia. Teve uma vez que caminhei até Esteio sem parar.
Viajar a noite. Maravilha. Saí de casa às quatro da tarde com minha bici e às
dez da noite estava montando minha barraquinha em Imbé. Que tempos
heróicos aqueles, cheios de liberdade, energia, alegria e esperança. Claro que
uma faculdade de engenharia, que exigia muito estudo e toneladas de exercícios
de cálculos de todas as espécies, era uma coisa descabida na minha vida.
Quando
acabei o segundo grau e completei 18 anos resolvi que já estava na hora de
viajar. Mas não uma “viagenzinha” qualquer como as que eu já tinha feito,
durante as férias ou em
feriadões. Tinha que ser uma epopéia global de mais de ano. E
tinha que ter neve, pelo amor de Deus, eu tinha que ver neve! América do Norte
e Europa eram os continentes que acenavam com possibilidades de arranjar um
emprego que desse dinheiro rápido para me catapultar ainda mais longe. A Europa
parecia ser a mais interessante pela diversidade de culturas e pelo mistério.
Só de ouvir as palavras “Eurorail Pass” eu já ficava excitadíssimo. Era como se
fosse um poderoso mantra mágico que poderia me levar a qualquer lugar. O livro
Let’s Go Europe, que só conhecia de ouvir falar da sua mística existência, era
como um cálice sagrado. Já os Estados Unidos não me empolgavam muito, já eram
conhecidíssimos dos filmes, não teria muita novidade. Falei aqui em casa sobre
a viagem e ninguém deu muito ouvido. “-Faz o vestibular primeiro.” Fiz. Passei
de cara. “-Termina a faculdade primeiro.” Ah, não, daí já é demais.
Comecei
a me interessar por Londres, todo mundo dizia que era a Meca dos viageiros.
Estava definido o objetivo. Pedi para o pai uma passagem de avião para lá, só a
passagem, o resto eu me virava. Não ganhei de jeito nenhum. Resolvi então
terminar o Parobé. Como técnico em mecânica eu poderia ganhar bem melhor que em
qualquer outro emprego. Fazia a engenharia com um pé nas costas, só para não
ser expulso de casa, não passava em nada. À noite, Parobezão. Terminei a escola
técnica e saí a cata de emprego. Arranjei meu primeiro só em Esteio, ganhava 3
salários. Pouco, mas suficiente para eu largar a faculdade com uma desculpa de
“carreira”. Colou. Depois de três meses naquela fábrica, fui chamado pela
Termolar. Eram 6 salários a dois quilômetros de casa, ótimo. Troquei de emprego
e trabalhei mais três meses para conseguir juntar 800 dólares, achei que
bastava.
Assim
que deu, larguei o serviço, já estava odiando cada momento lá. Era como uma
prisão para mim, todas as atividades eram rotineiras. Desde a chegada na
fábrica até a saída uma sucessão de rotinas. Ponto, vestiário, fedorão, piadinhas.
Reunião no setor, definição de tarefas, submissão ao chefe, piadinhas. Retirada
dos materiais e ferramentas necessários, manutenção preventiva das máquinas,
barulheira, piadinhas. Ponto, fila, almoço, piadinhas. E assim ia o dia
inteiro. Os caras eram felizes, as piadas eram mesmo engraçadíssimas. Para eles
a vida era só aquilo ali, as piadinhas eram o momento de lazer deles. Já para
mim não. Em vez de sustentar famílias, eu era o almofadinha do setor de
manutenção. Com meu salário comprava dólares e preparava uma jornada
intercontinental. Claro que eu nunca disse isto para eles. Para a peonada nas
fábricas, viajar para Europa era ficção científica, como uma viagem espacial,
impossível. Surpreendentemente, para minha família era um pouco assim também,
ninguém nunca tinha ido lá e nem cogitavam. Era uma coisa “caríssima”, somente
nobres e chefes de estado poderiam ir tão longe. Não seria eu, o ribeirinho
monstro, que conseguiria. Só que eu estava determinado, tinha aquele sonho na
cabeça e fazia tudo ao meu alcance para atingi-lo.
Durante
todo este tempo de Parobé e trabalho nas fábricas, fui agilizando minha ida.
Conversava com todo mundo que já tinha ido da forma alternativa, trabalhando.
Fiz meu passaporte, minha carteira internacional de motorista e de alberguista.
Tudo meio na surdina, para minha família minha “carreira” estava indo muito
bem, as empresas me disputando a tapa, meu salário dobrando a cada três meses.
Fiquei sabendo de um navio que saia de Rio Grande e ia para Oslo na Noruega uma
vez por mês. Se chamava Borg e só levava bobinas de papel da Riocell. Os caras
deixavam um ou dois carinhas ir cada vez, pintando, lixando e limpando. Mais de
um cara que conversei tinha ido trabalhando neste navio. Vi até as fotos da
viagem de um deles. Fiquei maravilhado, era assim que queria ir, de navio! Para
mim, esta perspectiva era como laçar um pégasus distraído pastando, mitológica,
lendária. Trabalhar num navio para pagar a passagem! Nada poderia ser mais
sensacional, diferente, desafiante e aventuresco. Liguei para meu tio em Rio Grande para saber
se poderia ficar lá uns dias: claro. Eu finalmente via luz no fim do túnel:
Tinha dinheiro para ficar lá um tempo e o meio para ir. Tinha chegado a hora,
arrumei a mochila e falei para família:
-
Amanhã vou para
Rio Grande tentar pegar um navio para a Europa.
Foi
um reboliço. De repente eles se deram conta porque eu limpava e lubrificava
máquinas o dia inteiro a seis meses. Perceberam que realmente eu ia, quer eles
quisessem ou não. Perceberam que eu já estava bem grandinho e capaz mesmo de
atravessar o oceano. De última hora me arrumaram mais uns trocados que troquei
por libras esterlinas no centro. Minha mãe foi comigo à rodoviária, fez
questão. Naqueles minutos esperando o ônibus ela me contou, chorando, que sempre
quis ser marinheira. Sempre sonhou cruzar os mares e conhecer outras terras,
mas a sociedade, com seus muitos freios culturais, obviamente não tinha
deixado. Ela me invejava.
Esta
mesma surpreendente confissão eu ouviria depois que voltei de dezenas de
pessoas. Sempre emocionadas, com o rosto contorcido e, se não às lágrimas,
quase. Comecei a perceber o tamanho da minha coragem. Não era uma simples
rebeldia adolescente, era um desejo profundo de liberdade e empreendimento.
Lá
em Rio Grande
começaram os problemas. Estive em vários lugares: Companhias de navegação,
representantes de armadores, companhias exportadoras, quartéis da marinha,
polícia federal, consulados e embaixadas de tudo que é país europeu,
prefeitura, gabinetes de vereadores, escola de marinheiros, até na sede dos
escoteiros do mar eu estive. A maior parte do tempo eu ficava vagando pelo
porto, subindo e descendo dos navios que atracavam e falando com capitães e
embarcados. As pessoas me perguntavam:
-
Tu conheces
alguém lá?
-
Não.
-
Tu sabes falar
outra língua?
-
Não.
-
Tu tens bastante
dinheiro?
-
Não!
-
Que navio tu
vais?
-
Não sei. Espero
que no Borg.
-
Tu sabes onde vai
ficar lá?
-
Não.
-
Tu sabes onde
conseguir trabalho?
-
Não.
-
Tu vais sozinho?
-
Vou.
-
Tu tá doido?
Era
mais ou menos sempre este papo. A partir daí, todo mundo começava a me
enfileirar um monte de possíveis tragédias que poderiam acontecer. Tinha desde
ser jogado ao mar até ser fudido pela tripulação inteira. Isto eram só os
problemas durante a viagem! Mas tinha os de lá também: ser deportado ao
desembarcar, morrer de fome, morrer de frio, trabalho escravo, ser roubado,
ficar doente, quebrar uma perna, etc, etc e etc. Não tinha ninguém, a não ser
meu tio Luiz e a tia Hélida sob influência dele, que me dizia que poderia dar
certo. Bueno, sei que só se pode saber se dá ou não dá tentando, e eu estava
decidido a tentar.
Todo
mundo sonha em mudar, mas quando alguém realmente começa a mudar esculhamba
nosso mundinho estável. É como a reforma agrária, todo mundo é a favor, desde
que em outro lugar. Ou como os automóveis, todo mundo identifica os problemas,
mas sempre se pensa em ampliar o sistema, aumentar o problema e não
solucioná-lo. É como o amor, ninguém se questiona nunca, mas todo mundo sofre.
Mudar? Sim, mas não hoje, tá? Dieta? Sim, mas na segunda que vem, tá? Programa
de exercícios? Sim, mas mês que vem, tá?
Fiquei
um mês em Rio Grande
tentando. Não deu. Voltei arrasado. Teria que trabalhar mais seis meses para
juntar o dinheiro da passagem. Mais seis meses dentro de máquinas barulhentas e
ensebadas. Mergulhei numa depressão profunda, hoje eu sei o nome daquilo.
Dormia o dia inteiro e via televisão de madrugada. Fiquei assim um tempo.
Depois de uns dois meses o pai marcou uma reunião, só comigo. Queria que eu
voltasse a estudar, terminasse a engenharia, depois me daria a passagem. Eu
disse que não, não sabia o que faria para conseguir o dinheiro, mas agora eu
queria viajar. Ele disse então que assim não me ajudaria. Saco. A reuniãozinha
resultou em mais um mês de madrugadas catatônicas e dias sonolentos. A Verô
então, sempre ela, se reuniu com a Mama: com um guri morto dentro de casa não
dava para ficar. Uma deu 200 outra deu 300 dólares, os outros 500 necessários
para a passagem de avião a Mama pegou de uma poupança da família (claro que era
ela que decidia o que iria fazer com o dinheiro). Fui dia 10 de outubro de
1989, com uma tremenda paz no coração.
Quase todas as tragédias que previram que aconteceria,
aconteceram mesmo. Quando cheguei em Londres não me deixaram entrar, me
mandaram para Holanda, país que eu nunca tinha ouvido uma palavra a respeito.
Tive muita dificuldade em me comunicar. Demorei 20 dias para conseguir o
primeiro emprego. O trabalho era escravo. Me envolvi num acidente de trânsito.
Passei fome e frio. Não tive onde ficar. Fui preso pela polícia. Quebrei um
dente. Cai de bicicleta e me escalavrei todo. Mas para todos os problemas
surgia sempre uma solução quase que imediatamente após e eu encarava todas as
situações com uma tranqüilidade de fazer inveja.
Apesar de todos os percalços, dois anos depois do
início da viagem eu estava muito melhor do que quando havia partido do Brasil.
Falava oito línguas diferentes, havia ganhado mais de 10.000 dólares
trabalhando e com eles comprado a melhor bicicleta do mundo para viagem, havia
morado em cinco países de culturas estranhas, rodado mais de 6.000 km por estradinhas
do interior europeu, visitado vários museus, monumentos, palácios e castelos,
experimentado comidas e bebidas exóticas, conhecido pessoas do mundo todo e não
só tinha visto a neve como feito bonecos com ela, limpado calçadas cheias dela,
deitado e rolado nela, até enjoar. Me sentia livre, jovem, forte, poderoso e
feliz como nunca havia estado. Era independente de tudo e de todos e não sentia
falta de nada nem de ninguém.
Por várias vezes nesta viagem à Europa eu encontrei
uma encruzilhada no meu caminho. Eram momentos que eu tinha dinheiro suficiente
para voltar de avião para casa. Eu poderia optar: ou voltar, já tendo viajado e
aprendido bastante, ou continuar e perseguir uma maior realização de meu sonho
mas com o risco de ficar sem dinheiro para voltar. Eu sempre optava, sem
hesitação, por ficar e arriscar. Nunca tive dúvida das decisões tomadas e meu
coração estava sempre cheio de paz e
alegria. Mesmo se precisasse passar fome, frio ou qualquer necessidade eu não
ficava nem um pouco chateado, não me desesperava nem me deprimia. Até que
cheguei em Gênova.
Cheguei em Gênova, o maior porto da Itália, com a
quantia exata de uma passagem de avião para o Brasil no bolso. O dinheiro
estava em várias moedas diferentes, mas eu sabia que convertendo tudo dava uns
1000 dólares. Fiz um balanço mental de toda viagem até ali. Eu já estava
rolando há dois anos, atravessei a Europa de norte a sul de bicicleta, meu
sonho havia se realizado completamente. O último mês inteiro eu tinha pedalado
sem parar pelo sul da França procurando emprego e necas. Estava exausto,
faminto e ignorando onde poderia arrumar emprego, não sabia nada da Itália. O
país parecia ser bem mais pobre do que os outros que havia estado. Diferente
dos outros países, eles pediam os documentos até no Camping. Tudo era o dobro
do preço, até o pão. A Comunidade Européia estava para começar e havia uma
sanha legalizadora de tudo. Meus dias de trabalho ilegal pareciam estar no fim.
Tinha chegado na Itália fazia quatro dias e ainda não falava italiano, os caras
lá não falavam outra coisa, ninguém me entendia direito.
Estava pensando todas estas coisas e num moto-contínuo
fazendo o que deveria fazer para dormir mais uma noite. Fui num bureau de
turismo perguntar onde era o Camping mais barato da cidade. A moça foi muito
atenciosa, mas todos os campings eram afastados e caros demais. Neste momento
me apareceu na cabeça uma encruzilhada. Duas enormes placas em formato de
flecha apontavam para direções opostas, uma dizia “Israel” e a outra “Brasil”.
Israel é a solução dos viajantes do mundo inteiro
quando se apertam. Nos Kibutz sempre tem trabalho, lugar para ficar, comida,
amigos, dicas e idéias. Meu dinheiro poderia me levar até lá num tapa e eu
estaria ampliando minha jornada com mais um capítulo sensacional no Meio
Oriente. Outras culturas, outros climas, outras línguas, outra geografia,
outras pessoas, outros caminhos se abririam para mim. Mas o risco era enorme,
eu estaria a 2000 dólares de casa, mais 10000 km de distância.
Quase que literalmente, para lá de Bagdad. Mas também tinha o risco de ficar
ainda mais livre.
Se eu voltasse para o Brasil naquele momento estaria
consagrado como um vencedor, um empreendedor de sucesso. Além de voltar quase
que para o útero materno. Certeza de comida de graça, quente, variada e na
hora. Cama seca e abrigada de qualquer intempérie. Ambiente acolhedor e rico de
futilidades. Luxos como carro, tv, video, computador, som, livros e revistas.
Escolas boas, ensino regular. Assistência médica e odontológica. Enfim, toda a
segurança do lar. Só que, e isso eu não sabia, minhas asas seriam cortadas e eu
seria engaiolado para sempre. Minha liberdade acabaria.
Li um livro do Paulo Coelho chamado O Alquimista. É um
livro legal. Conta a história de um pastor que segue seu sonho, o rapaz
Santiago. Todo o universo conspira a favor do sonho de Santiago enquanto ele o
está seguindo. Muitas coisas boas e ruins acontecem durante sua jornada e
muitas vezes o pastor encontra uma encruzilhada, mas sempre ele opta por seguir
o seu sonho, apesar dos riscos. Mesmo diante das maiores dificuldades ele
raciocinava que estava, naquele momento, melhor do que quando iniciou sua
viagem. Perceber isto lhe reanimava e coisas boas passavam a acontecer. Ele
sabia que se abdicasse de seu sonho, para o resto de sua vida sentiria uma
angustia de não o ter realizado até o fim. É claro que, no fim do livro, ele
realiza seu sonho.
Naquela encruzilhada de Gênova eu hesitei. Perguntei
para moça do bureau de turismo, numa mistura de Inglês, Francês, Espanhol e
mímica se, já que ali era um porto tão grande, por acaso não havia um navio de
passageiros que fosse para o Brasil. Perguntei brincando, era óbvio que não ia
ter. Para meu assombro, ela disse:
- Ecco là, guarda!
Me apontando um cartaz colado na parede ao lado da
porta atrás de mim. Uma mulata carnavalesca anunciava um navio que fazia uma
linha regular para o Brasil. Quase cai para trás de susto. Perguntei para moça
então se ela não sabia quanto custava tamanho luxo. Ela tinha a resposta na
ponta da língua, como se ela mesma tivesse interessada em partir, parecia
entusiasmada com meu interesse:
- 1.260.000 lira!
Sim mas quanto, mais ou menos, era isto numa moeda
mais internacional, digamos... Em dólares? De novo ela sabia de cor e, sem
titubear um segundo, me respondeu com precisão:
-
Mille!
Estremeci. Não era
possível! Eu estava a uma decisão de casa, do conforto, da segurança, da
comida. E viajar de navio também era um antigo sonho meu. Peguei o endereço da
agência que vendia as passagens e saí testaviando do bureau. Não podia gastar
um centavo até decidir.
Naquele momento me
pareceu melhor voltar. Eu fecharia com chave de ouro a viagem, seria uma
história de sucesso total. Além de tudo, eu realizaria mais este sonho, o de
viajar de navio. Decidi e comprei a passagem com todo o dinheiro que me
restava, apesar de o navio só zarpar em doze dias. Depois de decidir me
angustiei, meu coração se encheu de dúvida.
Até hoje me pergunto
se aquela decisão foi por que já tinha ido até o fim na realização do meu sonho
ou por encagaçamento. O Certo é que até hoje eu realmente me sinto um pouco
enjaulado. Quanto mais eu me envolvo numa vida “normal”, menor é minha
liberdade.
Desembarquei de um
cargueiro com minha bicicleta no porto de Paranaguá, no Paraná. Já fazia dois
meses que eu não telefonava para casa, quinze dias só de viagem no mar e dois
anos desde que me despedi da família no aeroporto. Pedalei uns 130km até
Joinville em Santa Catarina e descobri, na rodoviária, que todo o dinheiro que
me sobrara era exatamente o preço da passagem de ônibus para Porto Alegre mais
um Chicabom. Em nove horas estava em casa. Pedalei para o bairro Tristeza e
apertei na campainha de minha casa às seis da manhã. Minha mãe atendeu o
porteiro eletrônico perguntando quem era e eu dei um: Bom dia, Dona Belinha.
Ela, meio sonolenta, não se flagrou que era eu.
- Bom dia, quem é?
Perguntou já aborrecida.
- É teu filho Tiago,
Dona Belinha.
Nesse instante ouvi,
por fora do porteiro eletrônico, gritos de alegria:
- É o Tiago! O Tiago
chegou! O Tiago tá aí!!
O barulho dela
descendo as escadas correndo. Sim, naquele tempo ela ainda corria. Abriu a
porta de calcinha e camiseta e me apertou num abraço apertado, chorando e rindo
ao mesmo tempo. Eu também estava assim. Meu pai desceu correndo também, de
pijama, naquela fria manhã de junho. Os dois me abraçavam e riam, se afastavam
um pouco e checavam meu corpo, para ver se estava inteiro. Me beijavam e
comentavam meu estado, como está magro, como está bronzeado, parece que
espichou! Me botaram para dentro de casa e me serviram café da manhã, ligaram
para os parentes e minhas irmãs que agora moravam fora. Meu pai, que nunca
tinha me dado um centavo furado, me deu uma nota de cinquenta mil cruzados
novos, se não me engano. Tinham cortado seis zeros da moeda durante minha
ausência, aquela nota estranha que não conhecia, depois fiquei sabendo, era a
de maior valor na época.
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