Carnaval
No cotidiano de uma
creche da prefeitura sempre está faltando alguém. A pessoa sai para curso, está
de atestado ou alguma folga. Então, nunca fico na creche no horário do almoço
para que a diretora não encontre alguma coisinha para eu fazer. Na creche que
estou agora tem um shopping bem perto, chama Floripa Shopping. Caminho até ali
e fico matando tempo no ar condicionado. Primeiro compro um suco ou uma
coquinha no super, porque é mais barato. Depois saio com aquela lata na mão a
perambular, atraindo a atenção dos seguranças. Paro na frente das vitrines,
olho tudo. As vezes até entro nas lojas, pergunto coisas interessado. Os
vendedores ficam bem iludidos que eu vá comprar algo, mas geralmente eu nem
tenho dinheiro no bolso. Tem uma loja de produtos esportivos que eu atravesso
todos os dias para olhar as bicicletas, o coitado que cuida da seção já nem
pergunta se eu desejo alguma coisa. As gurias da banca de revistas também, já
sabem que eu só vou mariscar um pouco, ler todas as manchetes e sair com as
mãos abanando. Até o homem que cuida do banheiro já me conhece, passo sempre lá
para fazer meu ritualístico cocô diário. Dia destes eu estava com a latinha de
coca na mão, olhando uma vitrine inteira de televisores, destes modernos de
tela plana. Estava olhando como as tevês estão enormes, uma maior que a outra:
32, 42, 52 polegadas! E como estão ficando baratas! Na primeira vez que vi uma
TV de plasma custava 24.000 reais, agora dá para levar uma de 42 polegadas por
dez vezes de 259 reais. Mais um pouco e vão te jogar nas costas uma quando tu
passares na frente da loja! Bom, ficam todos os televisores ligados no mesmo
canal ou no mesmo DVD, não sei. Sei que a imagem era a mesma na vitrine
inteira, parecia um cinema. Acho que é para que os clientes possam comparar as
imagens. Eu, distraído, lendo os cartazinhos ao lado de cada aparelho e
comparando preços e recursos de cada um. A vitrine inteira, gigante, bem no
salão principal do shopping, tomada pela mesma imagem da finada Cássia Eller
fazendo um show ao ar livre. Ela cantava uma música dos Rolling Stones com uma
voz mais parecida com a do Mick Jagger que a do próprio Mick Jagger. Levantei a
lata da coca acima do nariz para tomar os últimos goles. Excitada com sua
própria performance, a Cássia tirou a camiseta e segurou os dois mamilos como
se fossem cigarros. Com a ponta dos dedos, sacudia as mamas para cima e para
baixo enquanto gritava esganiçada: "satisfaaaaction!!!" Percebendo a
aprovação do público em delírio, segurou uma das mamas com as duas mãos, levou
o bico do seio a boca e mamou de sua própria teta. Eu, que olhava tudo vesgo,
atrás da latinha, me engasguei ao rir e saiu coca até pelo nariz. Olhei para
trás, ainda limpando o nariz, duas senhoras idosas passavam com uma menina de
uns dez anos de idade. As véia me olhavam com muita censura e, no mezanino, um
segurança já falava ao rádio me fuzilando com o olhar, não sei se por derramar
coca ou por acreditar que fui eu o perverso que colocou aquele DVD!
Há uns anos atrás li um
livro sobre formigas, se chamava Formigas em Ação. Sim, o livro inteiro era
sobre os hábitos de uma determinada espécie de formiga do deserto do Arizona
nos Estados Unidos. Ótimo livro, recomendo! Nós, os leigos, temos a mais nítida
impressão que cada formiga é um ser independente, com vida própria. Mas não, a
formiga é somente uma célula de um ser maior que se chama formigueiro. O
formigueiro é que a formiga mínima. As conclusões da autora do livro nos levam
a perceber que o ser humano mínimo também não é aquele com cabeça, tronco e
membros. O indivíduo humano é só uma célula de um ser maior: O real ser humano
é a família. Muito interessante a parte do livro que trata do acasalamento das
formigas. Mais ou menos uma semana após o inicio do verão, a estação das chuvas
naquele deserto, todos os formigueiros da região enviam suas rainhas e machos
alados numa revoada para um determinado local do deserto. Somente neste dia
estes habitantes esquisitos e diferentes do formigueiro aparecem na superfície.
Dois ou três metros quadrados de deserto recebem os representantes de todos os
formigueiros dos dez quilômetros quadrados do entorno para um grande carnaval
onde todos se dão bem. Tudo acontece, todos os acasalamentos daquela nuvem de
formigas voadoras, no mesmo dia, na mesma manhã, no mesmo chãozinho de deserto.
Obviamente as formigas lêem algum jornal que nós, humanos, não temos acesso,
porque todos os anos mudam o local e o dia do encontro e nenhuma rainha ou
macho se perde ou chega atrasada para o compromisso. Mas, ainda no mesmo dia,
as rainhas escavam um novo formigueiro e desaparecem da superfície por mais um
ano.
Sexta feira, tarde da
noite e eu atravessei a Mauro Ramos para entrar na Internet. Agradeço aos céus
que abriu este ciber café nos fundos da locadora de vídeo aqui da frente de
casa, posso ir ali até descalço. Antes eu tinha que caminhar quadras e quadras
até outro ciber lá na Tenente Silveira. Infelizmente, o atendente me disse que
estava fora do ar, saco. Lá fui eu caminhando de novo para a Tenente Silveira.
Já na ida passei por alguns blocos de carnaval nas vielas do centro. Ah, é!
Tinha até esquecido! É carnaval! Eu sempre fui um super folião empolgado, durmo
que é uma beleza os quatro dias de carnaval. Para mim é só um feriadão com nada
de bom para assistir na TV. Carnaval me atrai tanto como uma drag queen de mau
hálito.
Bom, já no ciber,
estava eu vendo os e-mails quando ouço na rua outro bloco passando pela rua.
Quando sai do prédio, eles ainda estavam no fim da rua, perto da catedral.
Resolvi ir conferir o bloco que se afastava, curiosidade antropológica mórbida.
Era de maracatu, não estava muito animado, mas faziam um batuque infernal e
tinha algumas gostosas. Todo mundo suando em bicas. Os tambores fizeram eu
sentir uma estranha melancolia, uma angustia inexplicável. Resolvi descer a praça
quinze para ver o movimento. Estava fazendo um calor de suar parado. Um outro
bloco... Mais gente suando e bebendo cerveja. Passei rente a bateria, uns
trinta percussionistas mais ou menos. Eles enchem a rua de vibração. O peito
vibra no compasso do bumbo, o corpo inteiro vibra. Senti uma alegria, até uma
certa euforia. Aquela angustia anterior se transformou em uma distraída
esperança. Um monte de foliões brincavam, se coxando, amontoados entorno da
bateria. Muitas fantasias têm asas, não sei porque esta mania de asas. Na
calçada, muitas famílias assistiam a brincadeira, até com crianças de colo.
Agora, à noite, no escuro, faziam sentido aquelas ridículas decorações
carnavalescas que a prefeitura colocou em tudo que é canto do centro. De dia
elas parecem grotescas, Carmens Mirandas tristes, com cores gritantes e
detalhes espalhafatosos, inclusive asas, a noite elas ficam até bonitas e
sorridentes. Depois fui até o palco da prefeitura no largo da alfândega. Um
genérico da Ivete Sangalo cantando... Uma faxineira da creche já meio bêbada...
Alguns beijos de língua trançada... Vou para Hercílio Luz, já no caminho de
casa. Outro bloco... Como tem gente esquisita nos blocos, pessoas que não
aparecem no dia a dia da cidade, ficam enterradas em algum canto, não vêm à
superfície. Começa a cair uma garoa, mas logo para. Começo a perceber que
sempre têm, em tudo que é bloco, uns homens vestidos de mulher. Alguns
caricatos, outros quase imperceptíveis e outros ainda mais "gostosos"
e atraentes que as próprias gostosas. Não era o dia do concurso "Pop
Gay", nem dia do bloco dos sujos, era só um dia normal de carnaval, numa
cidade comum do Brasil. Mas a quantidade de GLS na rua era muito, mas muito
maior que o normal. Algumas pessoas tu ficas te perguntando, o quê que é aquilo?
X ou Y? Aquelas pessoas com fantasia, então? Não tem como adivinhar o gênero do
cidadão!
A partir daí comecei a
ligar os pontos. O calor, o escuro da noite, a vibração dos instrumentos e o
compasso do bumbo, BUM-bum, BUM-bum, o bafão úmido da garoa e do suor, o
contato físico intenso entre os foliões... é um útero! Um aconchegante e
prazeroso retorno ao útero. Emociona qualquer um. O útero te acolhe com todos
os teus defeitos e esquisitices, tuas cores berrantes e detalhes
espalhafatosos. Todos somos iguais no útero. Aceitos independente da cor,
credo, orientação sexual ou classe social. No útero somos satisfeitos de todas
nossas necessidades, inclusive pulsão sexual. Para algumas pessoas o carnaval é
muito prazeroso. E, um detalhe do carnaval que historicamente deve ter sempre
sido muito importante, mas que sempre me passou despercebido, é que o carnaval
é o dia da revoada de acasalamento, principalmente da espécie GLS. Deve ter
sempre sido dureza para a população GLS se encontrar sem medo, francamente.
Mas, no carnaval fica fácil. Todas as Cássia Eller da vida, as rainhas aladas,
se sentem aprovadas pelo público e, autorizadas pela multidão, soltam a franga
sem censuras culturais nenhuma. Devem esperar este dia com ansiedade. É o prazo final para as
delícias da carne antes do longo jejum da quaresma. O profano está autorizado a
se manifestar. Nunca é no mesmo dia, mas ninguém se atrasa para o compromisso.
Muitas vezes não é no mesmo local, mas ninguém se perde. E todo mundo que quer
se dar bem consegue. É, sem dúvida, a revoada do acasalamento, porque, depois
do carnaval, todos aqueles seres alados esquisitos, voltam aos seus
subterrâneos e desaparecem por mais um ano da superfície.
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