Passárgada
Na casa de um dos
alunos dos quais eu dou aula, trabalha uma guria. Ela tem uns vinte e cinco
anos, eu acho. É uma alemoa batata, meia feia, nariz vermelho de furar fronha,
com sotaque carregado, seu nome é Noela. Dia destes eu fui lá especialmente
para montar uma bicicleta. Prescrevi para o menino tamanho, modelo, cor, preço,
tudo. Mandei a mãe da criança comprar. Ela foi. O guri tem algumas dificuldades
motoras, para ele seria bom, ganharia no Natal. Enquanto eu montava na
lavanderia puxei conversa com a coloninha na cozinha:
-Maaas... Daonde tu é,
tchê? Com este sotaque...
-Sô do Agudo.
-Nããããããooo... Do
Agudo?!!
-Sô sim.
A partir daí a conversa
seguiu animada, e continuou muito depois da bici estar pronta. Ela me contou
tudo que sabia da “Picada do Rio”, pequeno e calmo lugarejo de onde tinha
saído. Também me falou da geografia do lugar, dos “môro”, dos “mato”, dos
“bicho” e do Jacuí, e da atmosfera amigável (ela, claro, não usou estas
palavras) que envolve a cidade. Ela está com saudades dos parentes, dos amigos
e de tudo lá. Está arrependida de ter vindo para “capital”, aqui ninguém não tá
nem aí pra ninguém, anda decidida a voltar.
Esta atmosfera amigável
de que falava a Noela, tem me chamado muito a atenção. Não só de Agudo, mesmo
porque nem conheço o tal do Agudo, mas do interior em geral. Aqui é este stress
tão gigantesco. No meu curso a gente estuda a saúde, a prevenção de males e a
busca da longevidade através de uma maior qualidade de vida. Em tudo que eu
estudo verifico que a vida aqui em Porto Alegre está ficando incompatível com a
saúde, insalubre, e no interior, ao contrário, tudo favorece uma melhor
qualidade de vida. Isto anda tocando alto como trombeta dentro da minha cabeça.
Estes últimos três
meses foram horríveis. Eu estava levando ao mesmo tempo, não sei como, estágio
(1ª e 6ª séries) no Colégio Uruguai, três cadeiras na ESEF, a pesquisa e a
monitoria, a oficina de bicicletas e ainda uns dez alunos por fora. Felizmente,
metade disto tudo acabou agora e eu posso sentar e escrever.
Eu andei muito
estressado por estes dias. Saía sempre correndo de um lugar para o outro,
dormia pouco, comia mal. Sempre atucanado com alguma coisa que era para ontem.
Teve um dia que eu discuti e quase bati num velho que me fechou no trânsito,
horrível. Depois fiquei tremendo (ação adrenérgica), arrependido e
envergonhado. Teve outra vez que corri para pegar um taxi, entrei esbaforido: -
Toca pra Nilo! O motorista era um velhinho bem magro e calmo, ele não disse
nada e tocou. Respirei um pouco: - Que correria né? O véio mudo, só dirigia.
Respirei mais. Eu parecia aquelas galinhas que atravessam a cidade dentro de um
caixote, do aviário para o matadouro, aquele fel todo inundando a carne (depois
a gente come aquilo!). Ainda estava atarantado. Respirei de novo e comecei a
falar sozinho já que o véio não se incomodava comigo. Precisava falar algo com
alguém, se não eu ia abrir a porta e correr empurrando o taxi para ir mais
rápido.
- Não sei se o senhor
viu... Uma reportagem que saiu na Veja estes tempos... A cidade com melhor
qualidade de vida do Brasil fica aqui, no Estado... É Feliz, ali, logo depois
de Campo Bom... O senhor viu?... Acho que muito da qualidade de vida que eles
tem é porque eles não tem esta correria toda no cotidiano... Eles não tem
metade do que a gente tem, mas tão numa boa... Barulho... Congestionamento...
Assalto... Tudo tão caro... Esta porcaria de shopping novo aqui agora, só pra
atrapalhar...
Quando eu parei de
reclamar, divagar e maldizer tudo, fiquei, eu e o velho, um pouco em silêncio.
De repente, eu até me assustei, o véio falou calma e pausadamente, com uma voz
grossa e firme, como se não estivesse parado num congestionamento da Ipiranga,
sob um sol escaldante, com um passageiro a beira de um ataque de nervos:
- Eu sô daquela cidade,
aqui no Estado também, que tem a maior longevidade da América Latina...
Eu atropelei o véio e
adivinhei a cidade:
- Eu sei: Veranópolis.
Eu li aquela reportagem também.
A partir daí o velho
destramelou. Começou a me descrever todas as vantagens de Veranópolis e eu
concordando. - É mesmo... Tem toda razão... Isso... Não, o senhor tá certo... É
verdade... Não, não tem dúvida... Bá, nem fale... No fim, esqueci até da
pressa, o velho estacionou na frente do guri que eu ia e, em vez de descer
correndo, fiquei ali sentado no taxi conversando com o véio um pouco mais. A
gente se despediu com um aperto de mão e um tapinha nas costas como se já nos
conhecêssemos a muito tempo.
Quando eu era guri, ia
na padaria e deixava a bici na porta. Os brinquedos ficavam o dia inteiro
esquecidos na frente de casa protegidos por uma cerquinha de quarenta
centímetros de altura e um portão sempre aberto. A passagem do carro para os
fundos era aberta, da calçada a gente via a mãe capinando na horta. Naquela
época não tinha nenhuma grade aqui em casa ou na rua. Era melhor. Depois veio a
época em que a mãe nos dizia que era bom não deixar nada dando sopa. Um tempo
depois um cachorro se tornou necessidade, veio a Pepita e a Chiquita. Depois
era bom ter grades, correntes e cadeados, veio a casa nova. Depois não se podia
mais sair de casa sem ficar alguém cuidando. Depois seguro, depois alarmes.
Agora já estamos na época dos vigias 24 horas na porta de casa, sensores de
infra-vermelho e cercas eletrificadas. A Veja faz uma reportagem por mês sobre
as vantagens de se ter um carro blindado! Até quando isto bastará? Isto é
qualidade de vida? Não tô mais vendo graça nisto.
A Verô sempre me
propagandeou o interior como uma boa opção, ela pensa em ir morar no Cassino um
dia, perto do Luíz e da Hélida. Ela sempre me disse, do jeito dela, que a
qualidade de vida lá é melhor. As vezes a gente fica pensando alto juntos. No
interior a gente ganharia muito menos, um terço do que faz aqui mais ou menos.
Não tem cinema nem teatro. Shopping: nenhum. Banco 24 horas... Não.
Restaurantes ou bares, talvez um ou dois. Máquinas de Coca-cola e asfalto: ã,
ã, nada disso. Mas... Pense bem, será que a gente precisa de tudo isto mesmo?
Talvez às vezes! Mas será que o preço que se paga por tudo isto não é muito
alto? E as necessidades inadiáveis que se inventa então? De uma hora para outra
todo mundo tem que ter celular, se não é o fim. Computador conectado a internet
para o chat e e-mail são quase o pão de cada dia para alguns. Carro tem que ter
ar, direção hidráulica, câmbio automático e mais um monte de mequetréfes.
Apartamento tem que ter três quartos, dois banheiros e uma bela vista por
favor. No interior as necessidades não são assim tão urgentes. Depois, tem
outra, todo mundo sabe que as coisas no interior saem pela metade do preço e o
dobro da qualidade, acaba o cara tendo o mesmo poder de compra que aqui com o
triplo de qualidade de vida. Só que tem uma coisa que lá fora se tem e que aqui
já se perdeu a horas. E isto para mim não tem preço, é o que a Noela tentava dizer.
É o sentimento de comunidade, o sentimento que todos tem um compromisso social
com todos. Everybody care about everyone, that’s nice. Todos se cumprimentam na
rua e se conhecem, isto não é fofoca, é qualidade de vida.
Eu tenho pensado muito
em ir morar no interior. Não é uma fuga, é uma escolha. Tanto não é uma fuga
que eu estou ficando muito bem colocado aqui nesta sociedade louca, estou bem
encaixado, bem louco. Os grandes caciques da minha área me reconhecem e me
consideram um louco a compartilhar privilégios. Trabalho feito louco, estudo
feito louco e, agora, estou podendo passar a fazer o que é bom nesta comunidade
louca: consumir como louco. Como eu sou jovem, forte, bonito, rico e
inteligente, venço qualquer competição contra indivíduos menos favorecidos. E
como estou fazendo tudo, direitinho, como a sociedade urbana neoliberal
idealiza como bom, estou sendo muito bem recompensado e mais linhas de crédito
estão se abrindo para que eu possa ficar ainda mais fisgado nesta vida. Mas eu
sou bagre velho e já carrego outros anzóis no beiço (lembra dos automóveis).
Quero pular fora desta loucura de alguma forma. De jeito nenhum quero meus
filhos neuróticos como eu. Uma maneira legal de escapar seria ir morar no
interior. Mas não como a Verô pensa, uma Rio Grande pra mim já é muito grande.
Pelotas, Santa Maria, Caxias, Uruguaiana, Passo Fundo, nada disso me serve. Diz
que até Lajeado já tem um shoppinzinho. A não! Sinto muito. Eu quero menor. Eu
quero uma cidade em que o centro seja uma praça rodeada pela igreja,
prefeitura, correio, padaria e ferragem e onde tudo fecha ao meio dia, até o
restaurante. E assim mesmo eu não gostaria de morar no centro, gostaria de
morar na periferia. Lá nos últimos postes, onde a estrada já é de terra e não é
reta, serpenteia desviando de pedras e árvores. Lá onde a água é de poço, e um
motor enche a caixa. Lá se colhe do quintal e um cachorro espanta os gambás. Lá
teria milhões de trilhas e estradinhas de terra subindo e descendo morros para
eu andar de bicicleta sossegado. Lá teria ar puro, lá teria silêncio, lá teria
boa alimentação, lá teria saúde, lá teria paz, nenhum vizinho chato. Lá o
progresso demoraria quarenta anos para chegar. Passárgada, lá eu mesmo
construiria meu castelo de dois quartos e um banheiro. Nem tô se tu achas
romantismo besta. Lá teria um pátio imenso. Lá meus filhos cresceriam bem.
Informação eles teriam, porque hoje em dia ela vai para qualquer recanto do
planeta. Além disso os pais são sempre os melhores professores e eu estaria
muito mais presente que se vivesse aqui. E a riqueza de experiências que eles
teriam? E quando precisassem algo diferente, como um dentista, a capital é ali
e os transportes são rápidos. Quando eu penso numa cidade do interior que se
encaixa neste perfil, desde que conheci a Noela, eu penso “no Agudo”. Não, na
verdade eu não penso num Agudo, eu penso é numa Picada do rio.
Bah! Desejar é o início ...olha agora...anos se passaram e você está onde queria
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