A
Francisca é uma senhora Pernambucana que trabalha lá na casa da minha mãe há trinta
e cinco abnegados anos. Durante todo este tempo ela nunca faltou ao serviço.
Varre a casa, arruma as camas, espana os móveis, molha as plantas. Lava, passa,
dobra as roupas. Lava, seca, guarda a louça. Cozinha maravilhosamente e tem
tudo pronto para por na mesa as 11:30, sem falta. Chega sempre pontualmente as
7:50 da manhã. Uma única vez ela chegou atrasada, mesmo assim ligou avisando o
motivo do atraso: Seu marido tinha sido esfaqueado numa briga de bar. A Frã
está sempre feliz e sorridente, cantarolando pela casa. Nunca reclama de nada e
nunca pediu aumento (mesmo porque a mama providencia de quando em quando).
Cumpri
com um dever social numa dessas idas a Porto Alegre. Fui a festa de aniversário
de sessenta anos da Francisca, bem no meio da Vila Cruzeiro, com a Mãe, Verô,
Brêta e Raca. Super estranho. É como visitar outro país, bem distante, com uma
cultura diferente. Todos os códigos sociais que tu estás habituado são
revogados. Gestos e palavras são diferentes e tanto nós quanto eles ficamos
completamente sem jeito diante da situação. A cada cumprimento uma
atrapalhação. Tu imaginas o tamanho da confusão, sabendo que a Frã tem doze
filhos, uns vinte e cinco netos, duas bisnetas e uns duzentos vizinhos filando
a boca livre. E o pior, todos me conheciam pelo nome e ficavam felizes de me
ver. Já eu não reconhecia mais do que dois ou três e não conseguia ligar o nome
a pessoa. Fiascão. Eu disse, várias vezes, a cada reapresentação, algumas
palavras soltas, tentando variar: Oba!... Legal?... E aí!... Que tal?... Tudo
bom?... Todos achavam muito engraçado eu não lembrar ninguém. Sabe aquela
imagem de alguém vestido para festa, tentando se equilibrar numa estrada
lamacenta? Pois é, foi mais ou menos o que literalmente aconteceu. Joelhos e
quadril semi-flexionados, pés afastados, braços um pouco afastados do corpo e
olhos arregalados. Desviando de cachorros, gatos, crianças e bêbados,
procurando um cantinho da microscópica sala para me escorar. Logo sou entupido
com canudinhos, empadinhas, docinhos, torta fria, bolo, Coca-Cola... Tinha que
comer, não aceitam não como resposta. É desfeita, alguém logo esclarece em voz
alta. Tentei relaxar conversando com uma senhora que está sentada ao meu lado.
Logo fui puxado para “rua” por um dos filhos mais jovens para ser apresentado
para a turma: “- Tudo sangue bom.” Fui rodeado e comecei a ser questionado
sobre muitas coisas. Por um momento percebi que posso fazer o que sempre faço
nestas situações: contar piadas e estórias engraçadas e cair nas graças da
moçada. Refleti por uma fração de segundo and decide to be dull, talvez por
covardia. Eu sou um alien naquela comunidade e todos ali também seriam aliens
na minha comunidade. Não dá para criar laços afetivos ali! É impressionante o
tamanho do vão cultural que nos separa. Não é minha culpa nem deles, mas nós só
não vivemos no mesmo mundo.
Competição.
Acho que é o que cria este vão. Merda. Não sei o que fazer quando me defronto
com estas situações. Tu sabes? Penso no que poderia equalizar ambas
comunidades... As bicicletas? Talvez, a longuíssimo prazo... O interior, a
ruralização da população, a reforma agrária? Talvez...
Passados
uns dias a Francisca faltou, primeira vez em tantos anos. Ligou às sete da
manhã avisando que não viria. Dos seus doze filhos, três eram alcoólatras, um
deles morreu naquela madrugada com problemas no fígado. Se chamava Sérgio,
tinha minha idade. Coitado do ribeirinho. Trinta e um anos e já estava no fim
de seus dias. Ele era um Brasileiro típico. Cor, altura, escolaridade,
trabalho, sálario, número de filhos... Tudo igualzinho a média nacional. Tinha
um professor meu da faculdade, o paraninfo da minha formatura, que dizia que
nós não somos Brasileiros. Acho que ele tem razão, after all.
Acordei as nove e já
senti a falta da Frã assim que botei o nariz para fora do quarto. A casa
fechada, a louça suja do café ainda na mesa, as camas por fazer, o chão por
varrer. O coitado lá morrendo, a família vivendo um drama, crianças ficando
órfãs, uma viúva desesperada,
mas tudo que pensava é que íamos ter que cozinhar para nós mesmos. Do jeito que
está estruturado o sistema, bem individualista, a morte do tal Sérgio me
atingiu tanto quanto a morte de um soldado israelense em gaza. Afetivamente eu
nem tô! É praticamente que a morte deste infinitésimo social me atingiu: tive
que juntar minhas cuecas do chão, putz! Horrível, né? Mas eu não sou um
insensível mau sujeito, só contemporâneo numa família abastada de uma cidade
grande.
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