Horizontes infinitos (Besta animalesca 2)
No
dia 8 de agosto de 1988 comprei um livro. Ao colocar a data me surpreendi,
ficou bonito: 8/8/88. Desde então, sempre compro um livro nas datas que
algarismos se repetem. Sei lá porque, talvez seja só um hábito curioso, uma
supertição, um TOC, não sei. Sei que já tenho vários: 9/9/99, 1/1/1, 2/2/2,
7/7/7, etc. Escrevo a data com cuidadoso capricho, tenho até um irracional
ciúme e orgulho desta parte da minha biblioteca. Já tinha até planejado com
antecedência qual livro comprar para cumprir o ritual deste 8/8/8. Reservei um bem
bom e caro, para ficar bem na foto da coleção. Quando estava na fila do caixa
da livraria para pagar o vício, vi um paper back, destes de bolso, baratinho.
Eles põem ali, na boca do caixa, exatamente para ti comprar por impulso. Foi o
que fiz. O carismático livrinho pulou para cima da pilha de livros que tenho
para ler na cabeceira da cama. Estou lendo ele agora: Contos Gauchescos e
Lendas do Sul do Simões Lopes Neto. Vê que curiosas são as maluquices humanas e
deste primata que agora escreve em especial: também comprei e escrevi na mesma
data, poderia ser ele o livro do ano, mas na hora pensei que ele não era digno
da honra, não valeria para “o” 8/8/8. No prefácio do livrinho tem um histórico
do autor. O tal do Simões era de Pelotas, no sul do Rio Grande do Sul, cidade
perdida numa imensa planície pantanosa sem dono. Seu linguajar, carregado de
regionalismos, me lembra muito o Trigo, que também é de lá. Dividi o
apartamento com o Trigo três anos, logo que vim para Florianópolis. Ele era
muito engraçado e, quando queria imitar um grosso, engrossava a voz e falava
expressões semelhantes às dos Contos Gauchescos. Meu pai, o Jacques, também é
da beira da Lagoa dos Patos e também encontrei semelhanças dos seus bordões com
aqueles do livro. Então, lendo o livro, compreendi muito do cadinho cultural da
formação dos dois e, lá pelo terceiro ou quarto causo, via a cara deles em cada
personagem dos contos. As paisagens das histórias dos contos são descrições
perfeitas daquelas que cansei de ver nas muitas viagens Porto Alegre-Rio Grande
que fiz. Adoro aquelas paisagens imensas. Céu e campo em tons pastel, com
alguns capões de verde escuro, suaves coxilhas, banhados e açudes, os
horizontes infinitos. Sempre sonhei com horizontes infinitos.
Por
uma única vez na vida me vi tão profundamente concentrado em um pensamento,
completamente absorto, que, por alguns momentos, não vi nem ouvi nada do
entorno, mergulhado num sonho nítido e vivo. Aconteceu durante uma missa quando
tinha treze anos de idade. Como
diz meu tio Luiz: “aquelas missas pareciam levar umas seis horas de duração!”
Eram torturantes, ainda mais para uma criança. Por sorte, aquela foi uma das
minhas últimas missas. Logo minhas irmãs mais velhas advogaram alforria para
todos os filhos daquele sacrifício. Aliás, um dos significados de sacrifício no
dicionário é missa, o santo sacrifício. Depois de muita luta, elas conquistaram
o direito que nós não fossemos mais imolados todos os finais de semana naquela
selvagem seita ritualística primitiva.
Bom,
voltando então ao momento de abstração total. Foi no final da tarde de um
sábado. Meus pais foram me pegar para ir a obrigatória missa depois da minha
primeira tarde no grupo de escoteiros do bairro. Tinha sido uma tarde legal
para um guri de treze: um monte de meninos da mesma idade, liderados por
adultos perversos e infantis, fazendo todo tipo de brincadeiras racistas,
preconceituosas e xenófobas em competições violentas! Mas, fora toda esta
diversão despudorada, ganhei um livrinho para estudar. Era o Guia do Escoteiro
Noviço. A capa do Guia era espetacular! Tinha um desenho preto e branco lindo,
com meninos acampando no campo ao lado de rios, observando os animais na
natureza, fazendo caminhadas nas montanhas e seguindo rastros, cozinhando sobre
uma fogueira, usando facas e fazendo nós. Os meninos estavam todos
uniformizados, segurando bandeirolas e usando símbolos próprios desta outra
seita, esta também ritualística, primitiva e selvagem, mas que me agradava
muito mais. A capa daquele pequeno guia em papel grampeado vagabundo era, para
mim, uma extraordinária promessa de liberdade. A possibilidade de alguém me
ensinar a, finalmente, me tornar autônomo e independente e, acima de tudo, solto
nela e senhor da natureza, solto naqueles horizontes infinitos do desenho, me
fez imergir num oceano de sonhos prazerosos. Independência, autonomia e
liberdade era tudo que eu queria. Livre do cárcere, livre da opressão, em paz e
feliz. Fiquei, sentadinho no banco duro da igreja, segurando com as duas mãos o
Guia do Escoteiro Noviço e encarando a capa a missa toda, viajando num mundo
onírico. Acordei do transe, felicíssimo com a esperança de um futuro agradável,
num momento do rito que todos se levantaram na igreja e começaram a cantar.
Minha
irmã Verônica faz aniversário dia 23 de junho, então sua festa de aniversário
sempre foi comemorada com motivos de festa junina. O ponto alto da festa sempre
foi, para mim, a fogueira, normalmente feita no terreno baldio ao lado de casa.
Depois que construíram naquele terreno fizemos fogueira mais uma única vez, em
frente de casa no meio da rua. Naqueles tempos isto ainda era possível. Eu
deveria ter agora uns catorze anos, já era escoteiro há tempos e gostava muito
de ser o responsável pela montagem e acendimento da fogueira. Naquele ano,
depois da algazarra inicial do fogaréu, quando a fogueira começou a baixar,
ficaram só algumas poucas pessoas em volta do fogo. Fogueira é sempre uma coisa
sensacional: sensações de sons, imagens e cheiros, além é claro do calor, todos
os sentidos ficam super estimulados. Curtição total! Do nada apareceu uma
menina ali ao meu lado, ela também cutucando o brasil e comentando sua beleza
poética. Eu achei ela legal, tinha um sotaque forte do interior e expressões
engraçadas. Ela parecia um guri: baixinha, com cabelos curtos e usando
bombachas, cachecol e uma boina preta. Ela parecia um escoteiro! Imaginei que
tivesse uns dezesseis. A Verô nos apresentou, se chamava Alice e morava numa
fazenda lá pros lados de Lavras do Sul. Parece que estava passando uma
temporada na cidade na casa da prima Isabel, uma colega da Verô. Passamos a
conversar animadamente enquanto atirávamos os tições da borda para o centro da
fogueira. Ela contou muitas coisas da vida no interior. As ovelhas, os cavalos,
os campos, a lavoura, a marcação do gado, o trator, a água do poço, o motor
para gerar energia, os animais selvagens que apareciam no entorno da casa e
muitos e muitos e muitos horizontes infinitos. Ela chamava tudo de “lá fora”.
Eram montes de coisas super bacanas para um guri aqui “de dentro” da minha
idade. Ao final da conversa ela me convidou para ir até lá para fazer “uns
acampamentos” na beira do rio. A conversa com a Alice, ali na beira da fogueira
naquele 23 de junho foi, de novo, um momento de profunda concentração, assim
como o da igreja encarando o Guia do Escoteiro Noviço. E pelo mesmo motivo! O
aceno com a possibilidade de uma vida de verdade: solto e em contato com a
natureza selvagem nos horizontes infinitos. Mas agora, a imersão no oceano de
sonhos prazerosos já não precisava da absorção, do se afastar da realidade
modorrenta do santo sacríficio, ela estava ali, próxima, na minha frente,
quente, crepitando. E eu fiquei o tempo inteiro acordado.
A
tal da Alice sumiu, mas eu não esqueci o convite. Continuei sonhando com “lá
fora” e seus horizontes infinitos. Nem lembro mais direito como aconteceu,
parece que ela ia e voltava do interior, às vezes se encontrava com as gurias,
outras vezes as gurias iam na Isabel. Sei que, passados uns tempos, fui
convidado para ir passar os feriados de carnaval lá em Lavras. Não titubeei.
Peguei
o ônibus para Lavras sozinho, por si só uma aventura para quem, como eu, recém
estava para fazer quinze anos. Estava super ansioso, com muita expectativa,
passava um monte de coisas na minha cabeça. O pano de fundo era a possibilidade
de finalmente perder a virgindade! Haviam várias possibilidades para isto:
baile de carnaval, acampamento no meio do mato, casa da fazenda, histórias
sobre barranquiadas, etc. havia um cheiro de foda no ar. A viagem era longa,
então comprei uma revistas sobre jipes e caminhonetes para ir lendo. O ônibus
ia atravessando muitos campos abertos com verdes coxilhas ao fundo, uma
paisagem que me chama muito a atenção, então nem lia muito a tal da revista.
“Lá dentro” da jaula da cidade, uma revista que mostra veículos que te levam
para “lá fora” me era muito interessante, mas aqui não. Dava uma folhada e já
voltava a cabeça para fora do ônibus para apreciar a vista. Quase no fim da
viagem, um homem atrás de mim pediu a revista emprestada. Emprestei, já que já
tinha visto tudo que queria ver. Ao chegar na cidade de Lavras do Sul o homem
me devolveu a revista e agradeceu. Peguei minhas coisas e desci do ônibus. Me
recebeu uma estranha, meio sem peitos, com uma mancha rosa cobrindo metade da
cara, se apresentou como irmã da Alice, se chamava Maria José, a Zeca. Ela me
levaria à casa da “vó”. Fiquei sem jeito e desapontado, além de esperar que a
própria Alice, bem peituda, me recebesse, pensei que ia acampar numa fazenda no
campo, não numa casa da vó na cidade! Para piorar, o homem que me pediu a
revista emprestada desceu atrás de mim do ônibus, beijou e abraçou a Zeca. Aos
15 anos me senti um macho sem fêmea. A Zeca e ele tinham muitos assuntos,
conversavam sobre pessoas que eu não sabia quem era. Subimos a rua em direção
ao centro da cidadezinha comigo quieto, quando dava olhava a bunda da Zeca.
Estava chuleando quando aquele chato iria embora. Tentei entrar no assunto
perguntando o porque do nome Lavras. Me veio uma baita explicação, falada em
jogral pelos dois, das minas de ouro que haviam ali noutros tempos. Finda a
explicação o homem perguntou por outro desconhecido e eu de novo fiquei boiando
na conversa. Pensei que talvez tivesse me metido numa indiada gelada. Aos
poucos fui me acalmando, o cara era irmão da Zeca e da Alice, era o Beiço,
tinha acabado de chegar de Porto Alegre onde tirou o beiço duplo, daí o
apelido, numa plástica. A Alice chegaria à noite e no outro dia já partiríamos
para a fazenda! O beiço, finalmente, dobrou uma esquina e foi para sua casa,
Legal! Ao chegar a praça central da cidade, no alto de uma pequena colina, vi o
por do sol com as cores mais nítidas da minha vida, exuberante. Tudo naquela
singela praça me pareceu lindo e acolhedor. Meu corpo todo tremeu de felicidade
e percebi que tinha chegado numa terra prometida. Não a Lavras do Sul da Alice,
da Zeca e do Beiço, mas a minha terra dos horizontes infinitos, das imensidões,
das cores nítidas e da liberdade.
A
casa da vó era logo ao lado da praça, numa ladeira que descia a colina. Era uma
casa amarela bem alta e velha, na esquerda da fachada tinha um portão. O portão
era a única parte do chão da casa que encostava na calçada porque, conforme a
rua ia descendo a ladeira, as janelas iam ficando mais e mais altas. O portão
dava para um pátio pequeno ao lado da fachada, coberto por uma parreira de
uvas, era neste pátio que estava a porta de entrada. O pé direito da casa era
muito grande e o piso era de tábuas de madeira o que fazia o som da casa ser
muito característico. Nos recebeu a vó, uma velhinha de noventa anos muito
simpática e calma, nos ofereceu bolo e chá. Ela fez tudo parecer acolhedor. A
Alice logo chegou e ficou alegre e surpresa de me ver, duvidou que eu viria de
verdade. Conversamos um tanto e fomos dormir.
No
outro dia, bem cedo da manhã, o pai da Alice já chegou animado, com uma velha
picape Ford F-100, azul e prata, de quatro cilindros. Colocamos tudo,
mantimentos, mochilas e ferramentas, na caçamba e montamos, eu e a Alice, nas
laterais da caçamba. Para mim, tudo aquilo estava perfeito. Eu já adorava
camionetes, ainda mais naquele uso tão legítimo do veículo, realmente para
carga. Pra melhorar ainda mais a coisa, ninguém se importou de eu ir solto,
livrinho, encarapitado na caçamba! Ao contrário, me deram uma ordem: tu vais na
caçamba! Fiquei encantado. “Lá dentro” da cidade nunca se vê uma caminhonete
carregada e muito menos se vê alguém tomando um ventinho de verão na cara
sentado na lateral da caçamba. Passamos ainda por uma farmácia para pegar
alguns remédios de vaca e finalmente entramos numa estradinha de terra em
direção a fazenda, a mítica fazenda da Alice.
Estradinha
de terra é outra coisa que sempre me encantou. Não é reta, contorna árvores e
pedras, segue o relevo natural, é toda esburacada, levanta poeira, se chove
vira uma lameiro, nos pontilhões se pode ver os córregos, com sorte se vê algum
animal selvagem solto. Completamente diferente das ruas da cidade: retas,
planas, lisas e nem se vê o que um dia foi o meio ambiente natural do lugar.
Pegamos diversas estradas, sempre chegava uma bifurcação e a caminhonete seguia
por uma das vias. A Alice ia me explicando: por aqui vai lá para Bagé, por ali
vai lá para o açude do fulano, por lá volta para Lavras. Em cada encruzilhada a
estradinha de terra ficava mais precária, até se tornar uma picada. Nós íamos
nos agarrando como podíamos na caçamba enquanto a caminhonete balançava. Lá
pelas tantas paramos na frente de uma porteira ao lado da estrada. O pai da
Alice desceu e abriu, passou a caminhonete e me encarregou de fechar a
porteira, me mostrando como funcionava o mecanismo, o que fiz com alegria. A
partir desta porteira não havia mais estradas, nem estradinhas de terra, nem
mesmo picadas! A caminhonete simplesmente ia pelo meio do campo, sobre o pasto,
no rumo que o motorista bem quisesse! A passagem por aquela porteira me quebrou
mais este paradigma mental: não é preciso estrada para andar no mundo, a gente
que faz o caminho ao ir. Passamos por mais algumas porteiras e mata burros. A
Alice sempre explicando tudo, satisfeita com minha visível alegria e
curiosidade: é para o gado não passar de um campo para o outro, assim o pasto
descansa e vem mais bonito. Ela ia me apresentando os campos, me contava nome
do dono, causos e curiosidades de cada um. Fiquei com uma incrível angustia de
querer conhecer tudo rápido. Descemos um morro e passamos um riacho com a F-100
dentro d’água, sobre as pedras. Meu deus, onde fui parar? Nem pontilhão tem! É
o paraíso! Nem no sonho mais selvagem, um cidadão urbano como eu, poderia
conceber aquele deslocamento para a fazenda de forma tão aventuresca! Eu estava
maravilhado com tudo. Senti um ventinho nas partes, olhei para baixo e vi que com
a agitação da caçamba, minha piroca estava apontando para fora do shorts.
Fiquei constrangido, porque percebi que a Alice também viu. Exatamente aquela
idade que não se pode mais andar de calças curtas, não se quer parecer guri,
mas ainda não se têm outras roupas para vestir.
Chegamos
em mais uma porteira, acima dela tinha uma placa: “Cinco Marias”. A Alice
anunciou: chegamos! De pronto me explicou o porque do nome. A mãe é Zita Maria,
depois nasceram quatro filhas chamadas Maria. Maria Emilia, Maria Alice, Maria
José e a mais velha eu até já esqueci que Maria que era! Desci correndo e abri
conforme me ensinaram. Uma cachorrada nos recebeu latindo, eram uns oito ou
nove, todos enormes ovelheiros, exceto uma cadela perdigueira de pelo curto. A
Alice foi me apresentando: aquele é o trovão, aquela a nega, aquele com uma
mancha... Cada um tinha uma característica especial e uma história engraçada ou
heróica. De onde estávamos dava para ver toda a sede. O terreno era cercado,
mas enorme, todo coberto com capim. Na cidade aquele espaço seria todo um
bairro. A esquerda da porteira estava um brete e o tanque para dar banho no
gado. Descendo um pouco a colina estava um pequeno açude. Ao fundo, lá embaixo,
estavam o galpão e a casa. Na frente da casa havia um duplo renque de frondosas
árvores que se estendia até o galpão. Na sombra das árvores descansavam alguns
cavalos. E, em frente ao galpão, um velho trator vermelho me chamou a atenção.
A visão da fazenda Cinco Marias me emocionou com uma profunda saudade de algo que
eu nunca tive, uma incompreensível nostalgia duma terra, duma querência que
nunca foi minha.
Ali
em Lavras e com aquele povo lá de fora, tudo parecia ter razão de ser. Desde o
nome da cidade, o nome do cachorro ou da fazenda, até o apelido do beiço, tudo
tinha uma história. Não tinha nem um campo que não tivesse um causo para
contar. Era um mundo oral, as coisas eram contadas de novo e de novo e todo
mundo sabia as histórias.
Descemos
e descarregamos a caminhonete. Ao levar as coisas para dentro, a Alice já ia
apresentando a casa, os familiares e os empregados que apareciam. Entramos pela
cozinha, que não era muito grande, mas tinha um enorme fogão à lenha. Preso ao
teto da cozinha havia um depósito de metal, onde era armazenada a água aquecida
no fogão para o banho. A casa toda, sim,
era grande. Tinha uma sala enorme com uma grande lareira, muitos quartos, mas
somente um banheiro. Me foi mostrado o meu quarto. Era pequeno, mas tinha um
poema gauchesco numa espécie de pergaminho pendurado na parede. Larguei minha
mochila e voltei para a cozinha onde a Alice me chamava para continuar as
apresentações.
Ao
sair da cozinha para a área lateral da casa, vi uma cena marcante. O pai da
Alice já estava arrancando o couro de uma ovelha pendurada por uma das pernas traseiras
numa árvore. Muito sangue brotava do pescoço da ovelha do avesso como se fosse
uma fonte e escorria para uma bacia de alumínio no chão. Assistindo a cena
estavam duas crianças pequenas, muito interessadas, filhos dos empregados. Um
peão ajudava o patrão na tarefa, o pelego resistia a largar a carne branca e
trêmula do corpo da ovelha, que ainda coiceava com a pata traseira solta no
ar. A Alice me explicou que a
“carneação” daquela ovelha era porque ia ter uma grande festa no almoço, uma
churrascada, e muitos parentes iriam vir, até de Bagé. Fiquei meio enojado, mas
acho que a Alice não percebeu e, se percebeu, não entendeu o porque de meu
nojo. Para um guri da cidade, que pela primeira vez entendia realmente de onde
então vinha a carne, aquilo era realidade demais, chocante. Caiu a ficha. Eu
estava muito mais perto da natureza selvagem, inclusive a humana, do que achei
que quisesse e pensei ser possível. A naturalidade com que todos encaravam a
cena, até as crianças, era desconcertante. Era tão natural para eles ver aquela
carnificina quanto para mim era ver a mãe martelando um bife numa tábua de
carne em cima da pia. Felizmente a Alice, com a mesma voz calma de sempre, me
levou dali daquela área e continuou a apresentação do lugar como se tivesse acabado
de me mostrar outra sala.
Chegamos
em frente ao galpão, onde estava o trator vermelho. Era bem velho, e
encantador. Volvo, a tinta já toda queimada do sol a sol, com uma lata sobre o
cano de descarga para não entrar água da chuva, o banco era de metal com uma
mola embaixo. A Alice me explicou que era com ele que nós iríamos acampar, me
mostrou a carreta de quatro rodas parada sob outra árvore. Fiquei louco! Já
comecei a ouvir o ronco do motor diesel e a fumaça saindo do escapamento apesar
do trator ali: paradinho. Carregar a carreta, engatar a carreta, puxar a
carreta! Ia ser melhor que a picape Ford!
A Alice me apresentou
os cavalos que estavam ali, parados na sombra, como que esperando para cumprir
nossos desejos. Me disse em qual eu montaria. Me explicou as razões porque eu
andaria nele. Eu já nem escutava direto, tamanha era minha excitação naquela
manhã. Andar de picape, conhecer uma fazenda, subir no trator e ainda andar a
cavalo... Era muito! Aquela minha desinibição para aceitar o convite de ir a
Lavras, mesmo sendo o bicão mor, estava valendo a pena! Ela pegou os freios que
estavam numa forquilha de árvore e “instalou” no cavalo. Puxou pelas rédeas e
levou para dentro do galpão me explicando o temperamento do cavalo, seu nome, o
que eu deveria falar para ele, os ruídos que deveria fazer que seriam
compreendidos, por qual lado deveria montar e como deveria agir com as mãos e
pés. Se ele empinar, se ele correr, se ele virar de repente, se ele parar, etc.
Quinhentas instruções, eu prestei o máximo de atenção que pude, mas eram muitas
informações e o simples barulho das patas do cavalo no chão já me atraiam mais.
Só a ignorância e a coragem de um adolescente me mantinham dizendo tá... tá...
tá... Ela me deu uma breve aula de outra língua, uma língua cheia de
interjeições, assobios, ruídos e gestos que para mim eram teatrais. Para
completar, eu deveria saber falar todo aquele idioma animal dentro de dez
minutos para não me esborrachar no chão. Enquanto ela me explicava, ia
colocando um monte de coisas no lugar, cada coisa com um nome, uma história e
uma razão de ser, tudo para no final ser um lugar para sentar no cavalo: a
sela. Camada um, camada dois, amarra embaixo da barriga, camada três, amarra de
novo, sela e estribo, amarrava de novo, finalmente o pelego. Como aperta a
barriga do cavalo! Parece um espartilho. Como é que ele respira? Apesar de a
Alice ficar mexendo, cutucando e espremendo ele, o cavalo se mantinha passiva e
resignadamente calmo. A Alice sempre falando, comigo e com o cavalo. O cavalo
sempre quieto e eu: tá... tá... tá... Trouxe o cavalo para fora do galpão
puxando pelas rédeas. O galpão era lindo e cheio de cheiros, mas nesta hora eu
não percebi nada daquilo, era muita ansiedade. Ia ser minha primeira voltinha
sozinho num cavalo! Passamos por uma mesa enorme que já estava sendo arrumada
para o almoço por um exército de mulheres tagarelando sob o renque de árvores
em frente à casa. Não avaliei direito a cena, que era linda com a claridade do
sol da manhã, era muita ansiedade. Mais um monte de instruções enquanto eu
colocava o pé no estribo e jogava a perna por sobre a bunda do cavalo para me
achar já montado, alto do chão. Tá... tá... tá... Agora chegava à hora em que
eu já tinha que desempenhar ativamente as primeiras palavras e gestos do
idioma. Parecia ser fácil! Mas, assim que a Alice largou a rédea do cavalo, ele
virou a cabeça com violência para o lado e disparou em velocidade máxima,
colina acima, em direção a porteira da fazenda. Blublu, blublu, blublu! Era o
barulho dos cascos na atropelada sobre grama. Blublu, blublu, blublu! Demorou
uns três segundos para eu entender que estava bem encrencado, mas nisso o
cavalo já tinha corrido uns cem metros e já estava passando rente ao açude,
levantando barro do chão, já bem longe da casa. Blublu, blublu, blublu! Lembrei
que a Alice avisou que às vezes aquele cavalo tentava derrubar quem ele sentia
que não sabia montar. Blublu, blublu, blublu! Mais uns três segundos de pânico
e tento desesperadamente lembrar, fazer e dizer as coisas que me foram
ensinadas do idioma para situações assim. Blublu, blublu, blublu! Puxei as
rédeas, jogando o corpo para trás e os pés para frente, com toda minha força.
Blublu, blublu, blublu! O cavalo parecia ignorar por completo meus comandos,
ele não era nem aritmético nem mecânico, eram 400 quilos duma besta animalesca.
Blublu, blublu, blublu. Passamos rente ao brete, embaixo de algumas árvores!
Blublu, blublu, blublu! Puta! Eu não sei falar este idioma! É o fim! Mas, ao
chegar próximo da porteira, o cavalo parou bruscamente. Vendo que eu não tinha caído, ele passou a obedecer
todos os comandos. Fiquei todo borrado de medo, mas, para não dar na vista,
voltei para a casa da fazenda dando várias voltinhas no brete e no açude, agora
trocando passos. Quando apeei, embaixo das árvores, o almoço já estava sendo
servido. Muitos me cumprimentaram, tinham visto, que ótimo cavaleiro eu era! Só
anos depois me dei conta: Tá... tá... tá... no idioma que os cavalos se
comunicam com os humanos quer dizer blublu, blublu, blublu. Lá em Lavras, uma
besta animalesca assim, que tenta te matar, eles chamam de animal doméstico.
Fomos almoçar sob aquelas frondosas árvores na frente da casa, numa enorme mesa de madeira. Havia umas trinta pessoas e muita animação, a conversa era alta, assim como as risadas. Tinha muitas piadas de contexto sexual e eu ficava temeroso de alguém me perguntar alguma coisa para eu cair numa cilada constrangedora. Mas não, me respeitaram e eu fiquei bem quieto, rindo baixo, para não chamar a atenção. A comida, claro, era churrasco. Agarrei com as mãos uma costela, como todos faziam, e comi com disposição! Estava delicioso! Quando já estava repetindo, comentei com alguém ao meu lado quão bom estava aquele churrasco, no que a pessoa me respondeu, falando bem alto: Pois claro, ovelha recém carneada! Lembrei da cena da manhã e percebi que aquela gostosa carne estava tremendo a perna até agora a pouco. Mas, assim, assada e mergulhada na farofa, a costela já parecia mais com comida e não com bicho morto. Todos pareciam bem à vontade, alguns até com bombachas e alpargatas. A Alice, inclusive! Aqueles que usavam alpargatas pisoteavam a parte de trás, ficando de tal forma amassada que o sapato parecia mais um chinelo. Outros usavam uma espécie de chinelo de couro, igualzinho às alpargatas amassadas! E todos palitaram seus dentes após a refeição, de alguma forma acomodados com os pés para cima sob as arvores em roda da mesa. Era evidente que a cena era comum para todos. Aquela orgia, aquele banquete de animais recém abatidos ao ar livre, nada mais era que um campeiro encontro familiar dominical. O único ali estranhando tudo, era eu, o bundinha da cidade. Não pense, caro leitor, que eu estava achando ruim, horrorizado com a selvageria do lugar e das pessoas. Não. Eu estava maravilhado e essa refeição até hoje me preenche a memória como uma das cenas mais alegres e autênticas que vivi.
A tarde inteira ficamos ali, em roda, embaixo das árvores. As mesas foram tiradas e guardadas e as cadeiras andavam atrás da sombra conforme o sol caminhava para o poente. As cinzas do enorme fogo que assou a ovelha esfriavam agora ignoradas. O almoço se estendeu por horas, com chimarrão e violão, causos, doces caseiros e recordações. A paisagem do entorno, seus horizontes infinitos e suas cores fortes, me enchiam a cabeça de esperança de viver mais daquilo. Aquele pessoal, naquele lugar, naquela situação, era uma amostra maciça: O mais puro retrato da cultura rio-grandense! E eu ali no meio, me encontrei. Me emocionei diversas vezes nessa tarde e me percebi, pela primeira vez, gaúcho!
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