Roteiro
Estamos
em campanha salarial, nossa data base é maio. O sindicato me deu algumas
tarefas essa semana. Primeiro pediram que ajudasse no “roteiro”, distribuir o
jornal do sindicato, conversar com os trabalhadores e colar os cartazes pelos
locais de trabalho, escolas, creches, intendências e postinhos de saúde. Fiquei
responsável pelo leste da ilha: Santinho, Ingleses, Rio Vermelho, Barra da
Lagoa e Lagoa da Conceição. Eu gosto de fazer roteiro: é uma espécie de turismo
de carro por toda a ilha, se encontra um monte de gente amiga super interessada
em ouvir o que tu tens para falar e o sindicato ainda paga o almoço! Depois
ainda assumi a tarefa de fazer uma apresentação de power point para a reunião
dos agentes de saúde e endemias. Isso tudo dá um trabalho! Mas oportuniza
também um momento de muita reflexão. Não gosto de escrever qualquer coisa,
tenho que me concentrar. Por isso, protelei a hora de sentar e escrever para o
final de semana.
Quando
eu era adolescente ficava tentando me achar. Era apavorante, não sei se lembras
dessa fase! Não podia cair no ridículo, isso seria o fim. Quando alguém
perguntava algo, eu me sentia obrigado a ter uma resposta, e uma resposta
inteligente para não virar motivo de gozação por um mês, ou ganhar um apelido
cruel. Qual era o meu grupo? O que eu gostava? Na dúvida, ia em tudo que é onda
para tentar encontrar algo de bom ou com sentido. Uma coisa que eu fazia na
adolescência era ouvir música. É verdade! Quem me conhece agora não crê, mas
naquele tempo eu não só escutava vários tipos de música como até comprava LP's.
Estava me procurando. Eu tinha que me encaixar em algum lugar e a única coisa
comum a todos os adolescentes era que todo mundo curtia música. Qual era a
minha tribo? Alguns colegas gostavam de Pink Floyd, outros de AC/DC e tinha até
aqueles que gostavam de The Cure. Dark, progressivo, metaleiro. Minha irmã do
meio gostava de Talking Heads e Caetano, a mais velha curtia umas coisas mais
gauchescas como Bebeto Alves e Nei Lisboa e a mais nova teve muitas fases, de
Michael Jackson ao grupo new wave Devo. Algumas coisas eu gostava, outras me
davam verdadeiro asco. O primeiro show que fui na vida foi do Camisa de Vênus
no Gigantinho. Não conhecia nada deles, mas fui na carona das minhas irmãs. A
acústica era uma merda e não se entendia nada. Então, o Marcelo Nova gritava: ô
Silvia... E o gigantinho inteiro respondia em coro: PIRAAAAANHA!!! Eu TINHA que
gritar aquele refrão a plenos pulmões também, não podia ficar de fora daquele
orgasmo coletivo. Mas, como eu não conhecia a música e não entendia nada o que
todo mundo gritava, imaginei que a palavra cantada em coro fosse outra, mas não
tinha certeza. Ficava só movendo os lábios como se gritasse também, confiando
que o ruído ensurdecedor do lugar camuflasse minha ignorância. Um amigo da
minha irmã mais velha, percebeu meu truque e ficou me olhando. Ele exigiu:
Grita Tiago! Arrisquei e gritei com tudo: TIRAAAAANA!!! O show acabou ali para
mim e para os amigos da minha irmã. Eu tinha uns treze e eles eram muito mais
velhos que eu, uns verdadeiros sábios anciões, tinham uns dessessete! Ficaram o
resto da noite me rodeando, me imitando, me gozando e rindo da minha cara!
O
meu problema com músicas é que tem que ter silêncio absoluto no ambiente para
eu conseguir sentir se gosto ou não daquilo. Qualquer estímulo no ambiente que
não seja a própria música já me desconcentra. O negócio é tão grave que
qualquer música, por melhor que seja, passa a ser um desconfortável estorvo se
alguém simplesmente me dirigir a palavra. Eu tenho que ficar deitado no chão,
sozinho e no escuro para ouvir a música, se não, não consigo, vira ruído
desagradável. Além disso, decorar uma letra, junto com sua melodia, é uma
tarefa muito árdua para esse cérebro Neandertalensis que vos escreve. Tenho que
ouvir umas quatro mil vezes a música, deitado no chão e no escuro, para poder
cantar sozinho toda a letra. De formas que, aprender a cantar uma música é,
para mim, como um trabalho de Hércules. Tirando o “atirei o pau no gato”, que
aprendi depois de ouvir 4000 vezes na infância, o total de música que sei
cantar de cor de ponta a ponta a letra é: uma! A música se chama “O Astronauta”
de um grupo de punk rock que tu deves conhecer, Os Replicantes. A letra esta
reproduzida abaixo:
Quando
ela disse, "cai fora"
A
lua inteira soube, na hora
Eu
era só um pobre, astronauta
Trabalhando
numa armadura de lata
Meu
chefe era um, robô desalmado
Ele
disse aqui na lua isso é bem normal
Mulher
é coisa rara, brinquedo mimado
Primeiro
bota em órbita e depois trata mal
Comprei
uma passagem num foquete pra terra
e
disse ao robô, a ferrugem te espera
Ele
acendeu uma, luzinha na testa
e
disse lá em baixo já acabou a festa
Não,
eu sempre posso voltar
roubar
um carro e rodar por aí
Não,
eu sempre posso esquecer
a
poeira lunar e ter uma mulher só pra mim
Desci
pensando em todas as mulheres da vida
Gastei
o meu dinheiro nos prazeres do sexo
O
que pode fazer um astronauta cansado
Além
de esquecer que um dia foi amado
Não,
eu sempre posso voltar
Roubar
um carro e rodar por aí / rodar por aí
Não,
eu sempre posso esquecer
a
poeira lunar e ter uma mulher só pra mim
Agora
quando a lua, cresce no céu
Aperto
contra o peito o coração de Bebel
e
abençôo toda a indústria eletrônica
por
ter criado a minha nova esposa fiel
E
molho a garganta tentando me livrar
das
últimas partículas de poeira lunar
Bebel
então percebe e começa a chorar
e
eu tenho medo que ela vá enferrujar também
Não,
eu sempre posso voltar
roubar
um carro e rodar por aí / rodar por aí
Não,
eu sempre posso esquecer
a
poeira lunar e ter uma mulher só pra mim
Sim,
eu me achei no Punk Rock. Titãs, Cascavelettes, Clash, Replicantes. Debochados,
provocadores e subversivos da ordem me atrairam. Mas eu só conseguia ouvir
deitado, sozinho e no escuro. Quando eu estava em pé, acompanhado e no claro,
ou seja, para o mundo, eu não era um subversivo, mas sim um pacato cidadão.
Andava de bicicleta e até cheguei a usar cabelos mullet, era “new wave” e
estava na moda. Como pacato cidadão eu até me saia bem, parecia um gatinho
comportado, penteava o cabelo, estudava e lia. Uma vez li um livro de um
subversivo diferente, ele nem falava de música. Um cara que largou tudo e saiu
pelo mundo a viajar de bicicleta. O livro era tremendamente mal escrito, o
autor era um bronco do interior do Piauí, mas para mim, naquela altura da vida,
era ótimo. Quando passou pela África, o ciclista relatou duas experiências que
me impressionaram tanto que até hoje lembro. As duas foram durante a travessia
do deserto na Namíbia. A primeira, foi quando estava pedalando numa estrada,
sob um sol escaldante. Alguém num carro de luxo parou a seu lado, abriu a
janela e estendeu a mão com uma lata de coca-cola gelada sem dizer uma palavra,
fechou a janela e arrancou o carro. Uma coca-cola gelada no meio do deserto
para alguém que viaja de bicicleta realmente anima a vida do sujeito. O outro
fragmento do livro ruim que me chamou a atenção foi que, entre dois oasis
distantes um do outro, o ciclista ficou sem água. Quando finalmente chegou num
poço d'água, já cambaleante ao final da tarde, foi com tanta sede ao pote,
bebeu tanta água de uma vez, que vomitou ainda com o jarro na boca.
Toda
essa baita introdução é para ilustrar como pequenos paragráfos mal escritos por
broncos ou punks podem nos influenciar. Algumas coisas que se lê podem ficar
anos no subconsciente até fazer algum sentido. Outras entram direto, como se
aguardadas para completar alguma lacuna cerebral. Algumas, eu pelo menos, leio
como um astronauta que desce para a terra depois de anos na lua lidando com
robôs, com muita gana de andar de carro e tara por sexo. Leio como quem se
refrigera com uma coca-cola gelada quando está ardendo no sol do deserto. Leio
quase me afogando, as golfadas, várias vezes, como quem encontra água no oasis
depois de dias de angústia da sede no deserto. Leio como quem espera muito
tempo por alguma coisa. Anos. Leio com alegria. E se o parágrafo for escrito
por alguém inteligente? Em você, não sei, mas em mim provoca vontade de
escrever, de responder aquela provocação. Este parágrafo, por exemplo, vi
fazendo o roteiro:
”Pois
falar em democracia no Brasil [...] é coisa extremamente difícil: em primeiro
lugar, sempre foi difícil em decorrência da estrutura autoritária da sociedade
brasileira; em segundo, ela se torna quase impossível diante da hegemonia
econômico-política do neoliberalismo e da sua expressão social-democrata, a
chamada “terceira via”[...] (CHAUI, 2001, p. 13)."
Marilena
Chauí é a filosofa mais famosa do Brasil, é a mais conhecida
internacionalmente. O livro mais popular dela é o Convite a Filosofia. Este
livro, se tu vais fazer mestrado, em algum momento vão mandar tu ler. Ela faz
uma revisão dos filosofos mais famosos da história. O livro é caro, deve estar
uns cem reais hoje em dia, mas tem sempre um truque de estudante pobre para
contornar o problema. A Editora Ática tem uma coleção de livros didáticos para
o segundo grau. Cada área quem escreveu foi um autor famoso por sua didática ao
ministrar a ciência. Tem o de matematica, o de português, o de geografia, o de
física, etc, e, felizmente para nós estudantes, o de filosofia quem escreveu
foi a Marilena Chauí. Lembra o Convite a Filosofia, com muito mais figuras, só
que custa vinte cinco pila. Com o desconto de professor e algum choro eu
comprei o meu por dezenove. Mas não tenho mais! Dei, sem nem ter lido todo,
para a filha de uma namorada que tive em 2004. Ela ia fazer vestibular e estava
indecisa entre filosofia e história. Eu quis ajudar. Outro livro da Marilena
muito conhecido entre os estudantes é O que é Ideologia daquela coleção
primeiros passos. Esse custa uns déiz pila.
Bueno,
eu não sou nenhum filósofo, sociologo ou economista para dizer com propriedade
o que é neoliberalismo, mas vou tentar. Adam Smith, conhecido como o pai do
capitalismo, dizia que a riqueza das nações se daria quando não houvesse muitos
impostos e regulações do governo. O mercado deveria ser livre de amarras, por
isso seus seguidores são chamados de liberais. Assim, mesmo se cada um tratasse
somente de seus próprios interesses, mesmo se cada um agisse de forma egoísta,
uma mão invisível se encarregaria de auto regular o mercado porque os clientes,
cuidando de seus interesses, se afastariam de alguém que cobra agio ou lucros
exorbitantes. A mão invisível também previa que outras pessoas entrariam no
mercado oferecendo o mesmo produto ou serviço para concorrer com preços mais
baixos com quem quissesse se aproveitar. Além disso, todo mundo buscaria
oferecer melhores produtos e serviços para ter uma clientela maior, essa
concorrência acirrada por clientes levaria a um avanço tecnológico.
O
Adam Smith compreendia o lado biológico do ser humano, a lei da selva: se eu
posso mais tenho mais! Mas ele também pensou, e isso pouca gente sabe, no lado
cultural do ser humano. Esse lado cultural deveria ser o das leis, das regras,
das regulações. Então, os liberais também diziam que o governo deveria exercer
um poder moderador sobre algum excesso do cidadão. Adam Smith previa que em
caso de excessos ou escassez o governo deveria moralizar os negócios: tomar de
quem tem para dar para quem falta. O Neoliberalismo é um termo até um pouco
jocoso por parte das pessoas que criticam o liberalismo de Adam Smith. É que as
regulações governamentais, culturais, que impediam os excessos, muitas vezes
eram um impedimento para a obtenção de lucro mais animal, mais natural, mais
selvagem. Os predadores naturais da sociedade, aqueles mais adaptados ao meio
ambiente do mercado, eram quase castrados a força. Além disso, os indivíduos,
as pessoas físicas, sentem um pouco de culpa se estão comendo caviar e faisão e
seu vizinho está comendo papelão com polenta para estufar mais. Aqueles
predadores da sociedade, pressionados por muitos outros individuos da comunidade,
o poder moderador da coletividade do estado, se sentem obrigados a dividir. Por
isso foram criadas as corporações, corpos não humanos, pessoas jurídicas,
completamente insensíveis a qualquer moralidade, para que a possibilidade de
lucros seja grandemente aumentada sem ferir a moral de ninguém. A pessoa
jurídica foi uma esperta manobra dos liberais mais ferozes e contidos por mais
mordaças. O neoliberalismo é o liberalismo de corporações, é o mesmo
liberalismo de sempre, mas não humano e desprovido de moralidade!
A
social-democracia se auto intitula a terceira via porque estaria entre o
privilegiamento da liberdade individual do capitalismo (primeira via), e o
privilegiamento da justiça social do socialimo (segunda via). Os países mais
desenvolvidos do mundo são democracias sociais. Suécia, Holanda, Noruega,
Dinamarca, Finlândia são exemplos de Social-democracias. Lá a economia é
capitalista: concorrência com preços mais baixos e melhores produtos. Mas o
governo é socialista, tomando, através dos impostos, todo excesso que alguém
possa vir a conseguir. Isso faz com que o indivíduo mais rido do país ganhe
mensalmente somente cinco vezes mais do que aquele que ganha menos. Parece bom,
não é? Mas é uma falácia porque as corporações neoliberais amorais desses paises
exploram pessoas noutros países. Quem usa um celular Nokia (empresa sueca) está
garantindo a seguridade social tranquila de um cidadão sueco, mas explorando o
trabalho semi escravo do operário terceiro mundista que fabrica o aparelho. O
bem estar social lá na escandinávia é resultado de um mal estar social em
Bangladesh. É um neoliberalismo de estado, não de indivíduos!
É
por isso que a Marilena Chauí chama de Hegemônico o neoliberalismo, porque
mesmo disfarçado de social democracia ele está lá com toda sua força. E, claro,
os estados socialistas que sobraram, moralistas que privilegiam a justiça
social em detrimento da liberdade individual, são minúsculos e sufocados por
todos os lados para que morram por estados capitalistas imorais.
Acredito
que a Marilena Chauí fala da dificuldade de falar em democracia no Brasil,
assim como em qualquer país neoliberal, por que no nosso sistema de governo a
"verdade" é a do mercado. Então, as opiniões de todos tem a
fortíssima influência do que é melhor para o mercado. Temos a nítida impressão
de que estamos escolhendo livremente numa democracia, mas isso não é verdade.
Imaginemos que houvesse um plebiscito no Brasil sobre a legalidade da farra do
boi. Provavelmente o folguedo seria colocado na ilegalidade, como aliás, já
foi, sem nem a consulta da população. Mas porque é ilegal correr atrás de um
boi tentando dar um tapa na sua bunda? Porque não tem regras de participação do
cidadão, não tem limites de onde a brincadeira pode ocorrer e principalmente
não tem competição, coisas importantíssimas para o mercado. Torturar milhares
de bois, porcos e galinhas lá em Chapecó, em escala industrial, visando o lucro
de corporações, pode! Uma comunidade de pescadores, brincar com um único boi
num momento de festa do vilarejo, num momento raro de alegre comunhão de bens e
alimentos, um exemplo prático de sociedade humana ganha-ganha, para comemorar a
única carne que os pobres vão ver no mês, isso é terminatemente proibido! O
mercado pinta os foliões com as cores do pecado, da maldade, da crueldade.
Agora, se fosse feito o plebiscito da legalidade do futebol, certamente o
futebol seria mantido legal. Os cidadãos que dele participam seguem regras,
limites e, principalmente, competem entre si! O mercado quer isso, quer que o
cidadão seja mantido sob regras rígidas, sob limites claros de movimentação e
que esteja sempre iludido que quanto mais comportado for ao seguir essas regras
e limites, maiores serão as chances de vencer (na vida). O mercado abre espaço em horário nobre da TV
para essa brincadeira em que uns competem contra os outros e a maioria perde,
quem ganha o campeonato é uma "seleção" dos melhores cidadãos. A
exclusão é celebrada. Os mais criativos dentro daquelas regras e limites, os
operários mais produtivos dentro daquelas estratégias e táticas para massacrar
derrotados, esses serão premiados. É isso que o mercado quer! Obediência as
regras e resignação por ser perdedor. O mercado pinta os jogadores com as cores
de altruístas, cidadãos maravilhosos, verdadeiros heróis da pátria. Uma
sociedade neoliberal imoral de ganha-perde. Ou seja, não é democracia quando o
sistema induz as pessoas em suas opiniões sob um falso discurso de liberdade de
opinião. A estrutura autoritária da sociedade brasileira que a Marilena fala é
essa.
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