Sobre educação
O
sonho de tudo que é professora da educação infantil é que todas as crianças
tenham os mesmos hábitos e preferências. Coisa que as professoras mais gostam é
por um desenho mimeografado em papel A4, branquinho, para as crianças
colorirem. Geralmente um desenho de um personagem importado: Cinderela dançando
com o príncipe encantado, aquela gatinha estilizada “Hallo Kitty”, os Power
Rangers, isso quando não é o Mickey! Às vezes as professoras se defendem: Ah
não, eu nunca faço assim, eu só uso da turma da Mônica porque é uma coisa
nossa, né? Mas, se estudas um pouco, vês que isto é um desrespeito com as
crianças, mesmo se for o saci pererê. Tu impedes que elas desenvolvam sua
criatividade e as induz a seguir uma regra pré-definida: O contorno já
impresso, o papel sempre retangular e branco. Todas as crianças vão colorir o
mesmo contorno da Hallo Kitty, a mesma alienada e distante de tudo que é real
gatinha Hallo Kitty, na mesma folha retangular, branca e lisa. Quando tu chamas
a atenção das professoras para este fato elas argumentam mil coisas: “Mas as
crianças adoram fazer estas ‘pinturas’!” Diz uma. “Não! Dá para ser criativo
sim! O Wesley usou giz de cera, lápis de cor e canetinha!” Diz outra. “A
Emellyn até pintou o príncipe de negro, porque ela é negra, né?” Lembra uma
última. As crianças gostam porque não conhecem outra opção, elas não são nenhum
Einstein para propor pintar numa lixa com giz, ou numa escultura de argila com
guache, fazem o que podem diante daquela limitação. Mas a cáca está feita. As
crianças são induzidas a sempre seguir regras, não devem pensar coisas
diferentes ou propor novidades. Nem as próprias professoras percebem o cocô que
estão fazendo. Elas mesmas formadas assim: pintando hallo kittys a vida toda.
Colocaram elas numa fôrma bem rígida durante sua vida escolar e elas agora
reproduzem na prática profissional, não sabem fazer diferente. A formação delas
foi esta também: pintora de Hallo Kitty! Tradução: pedagoga medíocre. Elas
acham que estão certas, elas acham que a criança que pinta dentro do contorno e
na cor certa é que é a “boa aluna”. Se tu conseguires pintar dentro dos
contornos tu vais se dar bem na vida. Tens que seguir as regras o melhor
possível. Se sair um pouco do contorno ou pintar a cara de verde tá errado, já
vi até em “avaliação”: “ainda não consegue pintar dentro de contornos”. Na
minha área da educação física, é uma desgraça, está cheia de folhas brancas,
retangulares e lisas com contornos de hallo kittys para pintar: São os
esportes. O importante é seguir a regra, tu podes fazer o que quiser, mas,
claro, dentro daquelas regras. O Pelé, por exemplo, é conhecido como rei,
gênio, super criativo, mas só dentro daquelas regras, daquele gramado lisinho
com um gol para mirar. Se for numa trilha no meio do mato ele já não sabe fazer
nada. O Ronaldo? É um fenômeno! Ele sabe pintar super direitinho dentro dos
contornos pré definidos e com as cores super certinhas, mas só se for com a
folha A4 branquinha. No berçário as crianças tentam morder a bola, sentam em cima
dela, deitam e rolam sobre ela, jogam em muitos lugares e tentam encaixá-la nos
cantinhos da sala e do seu próprio corpo. Lá pelo G6 as crianças já estão
bastante bitoladas pelo que elas já viram na TV ou vivenciaram em casa e avisam
umas as outras: não pode pegar com a mão! A criatividade já foi impedida de
florescer. Algumas professoras constroem traves de gol ou põe cestas de
basquete e acham que estão fazendo bem as crianças. A nossa sociedade valoriza
e gratifica super bem, aqueles que sabem seguir regras. Quanto mais bitolado,
melhor. Quanto mais especializado, melhor. O neonatologista ganha mais que o
pediatra que ganha mais que o clínico geral. A sociedade diz que seguir regras
é bom e todo mundo segue este mandamento, hipnoticamente. Em parte as professoras
estão certas mesmo, os bitolados especialistas ignorantes de todo o resto são
mais bem remunerados. A repetição e a conservação do status quo é um mandamento
do capitalismo. Os subversivos são primeiro ignorados, depois desdenhados e
debochados, e os ainda assim reincidentes, presos. Mas, paradoxalmente, são
exatamente os subversivos insensatos que fazem a sociedade se modificar.
A
escola e depois a universidade são reprodutoras rígidas de folhas mimeografadas
de hallo kittys. Quem se submeter a elas vai sair formado. Tu és submetido a
muitos ritos de passagem onde terás que provar muitas vezes para a sociedade,
que sabes seguir regras. Não interessa muito para que aquele conhecimento
daquela prova, mas igual vais ter que provar! Alguém sabe aí qual a utilidade
de saber somar polinômios? Mas quem passou pela escola teve que provar que
sabia somar polinômios. Passar por provas é a regra na escola e na
universidade. Aliás, até para entrar na universidade tu tens que se submeter a
provas onde cai, entre muitas outras inutilidades, somas, subtrações e
multiplicações de polinômios. Quanto mais hábil tu fores em se conter aos
contornos, mais vezes se submeteres as regras dos ritos de passagem, mais
provas passares, mais especializada e restrita vai ser a engrenagem que estarás
formado. Tu te tornas muito sábio em pouco e muito ignorante em muito,
exatamente como um futebolista. O lado bom é que quanto mais rara é a peça,
mais caro ela custa. O sistema vai te reservar uma gratificação bem boa se tu
te despires de qualquer criatividade imaginativa. Por mais obtuso que tu sejas
em tudo, se fores muito bom em algo, vais ter uma TV de plasma de 42 polegadas
e um bom carro na garagem. Além disto, o sistema vai garantir boa visibilidade
para tuas produções, estádios inteiros, até bem iluminados à noite e com
transmissão em rede nacional, para que tu possas dar exemplo para todos de como
se faz para parecer ser criativo ao se manter dentro das regras durante horas.
As
crianças pequenas gostam muito de vestir fantasias. Elas se preocupam muito em
saber também quem é do bem e quem é do mal, elas querem ser do bem e vestem-se
de acordo. Lá no lugar onde trabalho as fantasias preferidas são as do batman,
super homem, homem aranha e, claro, das princesas. E com que orgulho ostentam a
fantasia! Algumas crianças insistem que até o seu rosto seja pintado para que a
fantasia fique completa. Tem um personagem agora que chama “Ben 10”, faz um
sucesso incrível, porque ele pode se transformar em dez super-heróis diferentes
e sua fantasia é só um relógio. Já vi o tal do relógio feito até de massinha de
modelar, legos, além de canetinha pintado no braço. Parece ser uma coisa fácil
lutar contra o mal: é só usar os super poderes para matar ou por na cadeia
aquela cambada do mal e pronto, o mundo será todo do bem! É fácil também
perceber quem é do mal por que são feios, os do bem são bonitos. As crianças
reagem ao que crêem ser o mal com muita violência, elas querem se livrar rápido
do mal. Vivem se esbofeteando para decidir rixas. Elas facilmente se
transformam em bestas animalescas quando identificam o que consideram o mal.
Mas, é engraçado, uma criança extremamente cruel num grupo pode se transformar
num anjo se colocada em um grupo diferente. A índole da criança depende sempre
do contexto, meio ambiente em que se encontra.
Infelizmente,
no mundo real as coisas não são mesmo tão nítidas e fáceis de distinguir. O bem
e o mal convivem harmoniosamente dentro de todos os seres vivos. Falo seres
vivos me referindo a indivíduos humanos, famílias, comunidades, cidades ou
mesmos países inteiros. Um indivíduo bom contigo pode ser mau para outros. Um
indivíduo que é bom hoje pode ser cruel amanhã. Um que aparenta estar fazendo o
bem pode estar fazendo o mal e outro que parece agir mal pode estar tentando o
bem. Tudo depende do contexto, do meio ambiente em que se encontra o ser, e o
meio ambiente muda. O que hoje se acredita ser bom, amanhã pode se descobrir
que é um crime. O que atualmente é crime pode ser aplaudido no futuro. O Irã é
bom ou ruim? E os Estados Unidos? O Lula? O FHC? O PT? O PSDB? O Obama? Será
que os Judeus são todos bonzinhos e vítimas e os nazistas todos malvadões
sádicos? Plantar cana para fazer combustível é bom ou ruim? E o petróleo? Comer
carne ou ser vegetariano? Nunca é fácil apontar quem é do bem, a não ser,
claro, se tu só olhares por um dos lados.
Apesar
de, obviamente, as coisas serem bem mais sutis e indistinguíveis, os adultos
ainda buscam esta distinção simplória das crianças. Com o mesmo empenho
enérgico, a mesma ignorante esperança e a mesma ingênua alegria das crianças.
Como exemplo desta verdade desconcertante, basta ver um jogo de futebol. Todos
no estádio se fantasiam, orgulhosos, dos seus super heróis do bem. Alguns até
insistem em pintar o rosto para a fantasia ficar completa. Torcem para que os
do bem vençam os que são do mal, aqueles, claro, que vestem as roupas do time
adversário. Como crianças discutem animadamente os feitos maravilhosos dos seus
super heróis do bem e as ações más dos do mal. Se vencem falam de justiça,
honra e glória, se perdem falam de injustiça, trapaça e vingança. É
impressionante a semelhança com as atitudes das crianças. Cada indivíduo de uma
torcida organizada, durante uma partida ou próxima dela, se funde ao grupo e o
“todo” da torcida passa a se comportar como se fosse só uma besta animalesca
que só se satisfaz com o massacre dos do mal, ou pelo menos uma grande
humilhação.
No futebol, o torcedor
típico é um “mané” da vida, erudito como uma lagartixa, se compreende. Mas na
política é a mesmíssima coisa! As pessoas são muitas vezes já bem estudadas,
mas mesmo assim vestem a camiseta e reconhecem nos outros, da camiseta
diferente, o diabo. Direita é ruim, esquerda é bom. Dentro da esquerda, uns
partidos são os bons os outros são os ruins. Dentro do partido, uns são muito
xiitas outros são muito liberais. Até entre os da mesma facção xiita tem uns
muito moles e outros os verdadeiros hard cores. Muitos políticos tem um
discurso muito ponderado, mas ao reagir as manobras de partido rivais se
transforma em bestas animalescas, principalmente se estão agindo sob o véu do
todo, do coletivo, do partido. E, como as crianças, os que são inimigos agora,
logo a seguir podem se tornar amicíssimos.
A
professora Alda, da primeira série do Grupo Escolar Cândido Rondon, chamou
minha mãe em outubro para avisar: o Tiago vai rodar na primeira série! Ele
ainda tem dois meses para se alfabetizar, se não pega uma segunda época em
janeiro, daí é a última chance de se recuperar, se não vai ser pau mesmo. Os coitados
do Gugu e da Paraguassu pegaram recuperação, lembro da cara de cu deles dentro
da nossa salinha quando fomos na escola fazer a matrícula. Bom, toda manhã a
Alda começava colocando a data: Porto Alegre, 25 de setembro de 1975. Daí fazia
uns desenhinhos das condições do tempo, sol se sol, nuvens com pingos, se
chuvoso, nuvens sem pingo, se nublado. Só então começava a passar os conteúdos
do dia. Teve um dia de aula que eu só tinha escrito “Port” da data a manhã
inteira, nem os desenhinhos do tempo eu fiz. Não sei o que minha mãe falou para
mim, mas surtiu efeito. Ela falava que me dava uma “luzinha” e eu fazia o que
era pedido. Agora, olhando para trás, acho que uma determinada hora eu entendi
o que todos queriam: Ah, são estas tolices que vocês querem que eu faça? Tá! Se
é isso que vai deixar vocês felizes, eu faço. E passei a fazer. No final do ano
nem peguei recuperação. Eu saberia fazer a qualquer hora, só achava bobo.
Os
resultados dos testes de Q.I. que já me submeti sempre dão algo como: “retardado”.
Ou ainda: “paralisado cerebral profundo”. Mas qualquer um percebe que eu não
sou assim tão burro. Daí é que vem minha conclusão: os testes de Q.I. são
feitos por ordinary people para ordinary people. Sendo assim, até me orgulho de
não ir bem nos testes, não sou um extraordinary, mas também não sou nenhum
ordinary para ir bem em teste de Q.I,! É exatamente por isto que eu tenho muito
orgulho de não ter terminado a faculdade de engenharia. Não me verguei aquela
instituição extremamente formatadora, não me submeti àquela fôrma idiota. Tenho
muito orgulho também de ter abandonado a vida de esportista, outra fôrma
imbecil que me dei conta depois de muito sofrer. Tenho muito orgulho de não ter
passado na seleção do mestrado lá de Porto Alegre, e mais orgulho ainda de
terem me dito que não podem me orientar! What an ordinary people those were.
Tenho muito orgulho que o mestrado em que fui aceito aqui em Floripa foi
destituído por ser transdisciplinar demais. Que orgulho meu Deus, que orgulho
que tenho disto! Tenho muito orgulho de não ter terminado nenhum dos outros
cursos que me meti, de mestrados a cursos técnicos. Tenho muito orgulho de não
ter casado. E tenho muito orgulho de não
ter religião nenhuma também. Não me submeti a estas bitolas tolas.
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