Os três barbeiros
Quando eu era guri e meus cabelos ficavam muito compridos, minha mãe me levava para cortá-los numa barbearia da Wenceslau Escobar, perto do centrinho da Tristeza. Minhas irmãs cortavam cabelo em outro lugar, num cabeleireiro, então, na barbearia só ia eu e a mãe. O barbeiro que trabalhava lá era nosso vizinho de rua, seu nome era Pacífico. O seu Pacífico tinha um nome muito apropriado, pois era calmo como o que. Quando chegávamos, depois dos cumprimentos, seu Pacífico se dirigia a minha mãe e perguntava como queria meu cabelo. Ela sempre orientava a fazer o corte “Joãozinho”. Passei a infância com o mesmo corte de cabelo, o tal do joãozinho que o Pacífico fazia. Lá pelos doze anos de idade eu já ia sozinho cortar o cabelo no Pacífico. Minha mãe me dava o dinheiro, eu levava todo enrolado fechado na mão, pelo menos agora já tinha o direito de eu mesmo pedir o corte que queria. Mas, inconscientemente, eu pedia o mesmo joãozinho que minha mãe achava adequado. Claro, aos doze ninguém, que não seja um Sid Vicious, pede cabelo moicano. Só tive oportunidade de ir sozinho ao Pacífico pedir o joãozinho mais umas três vezes. Ele morreu e a barbearia fechou. Fiquei uns dias cabeludo por não saber aonde ir para ter meu bom e velho joãozinho de volta a minha cabeça. Depois de anos fiquei sabendo que o filho do Pacífico tinha se formado engenheiro eletrônico e ficado riquíssimo. Fiquei contente com a notícia, sua vida simples, pacata e pacífica tinha subprodutos invisíveis, tinha sido proveitosa e frutífera!
A patrulha “Onça” era a
melhor de todas as patrulhas do grupo de escoteiros Nimuendajú. Eu me orgulhava
muito de dela participar. Na época, meu melhor amigo era o sub-monitor da
patrulha. Comentei com ele o causo de não saber onde cortar os cabelos com a
morte do barbeiro e o fechamento da barbearia. Ele me convidou para
acompanhá-lo ao seu barbeiro no centro. Lá fomos nós, contentes e orgulhosos de
ir ao centro de ônibus sozinhos. Que independência! O barbeiro dele era
conhecido como Pelotas, por ser daquela cidade. Apesar de ser pelotense, ser
uma espécie de cabeleireiro e de sempre lavar meus cabelos com um creme
amaciante, o tal do Pelotas não era gay. Sua mulher era a manicure do salão e
seus filhos às vezes apareciam para conversar alguma coisa. Um dos filhos já
era até formado administrador de empresas. Ele tinha muito orgulho daquele
filho. Aos poucos, conforme eu ia crescendo, fui descobrindo que os escoteiros
eram um movimento conservador para caramba e o sub-monitor era um verdadeiro
amigo da onça. Mas, daquela amizade escoteira, o que sobrou foi o Pelotas. Era
um senhor simpático, tinha assunto bastante, nem demais, nem pouco, bastante.
Sempre concordava comigo e valorizava minha opinião. Ele fazia o mesmíssimo
corte joãozinho do Pacífico, mas chamava de cadete. Eu achei bacana aquele
corte cadete, porque assim eu não era mais uma criancinha que cortava joãozinho
porque a mãe queria. Depois de alguns anos freqüentando aquele salão e cortando
cadete, subverti a ordem e resolvi deixar crescer os cabelos! Adolescente, sabe
como é. Deixei de ir ao Pelotas.
Quando me chamaram para
o exército, com dezenove, achei melhor cortar os cabelos antes de aparecer no
quartel para não ficar estigmatizado. Naquele tempo, servir o exército era
obrigatório. Era aterrorizante para quem chegava perto dessa idade e não queria
ficar um ano rastejando na lama, marchando léguas ou dormindo com um monte de
homens. Principalmente para quem já tinha se conscientizado nos escoteiros que
uniformes, ordens unidas e patrulhas eram um horror. Cortei o cabelo lá na
Tristeza mesmo, numa cabeleireira que a mãe freqüentava. Se eu aparecesse com
aquele cabelão no Pelotas talvez ele nem me reconhecesse, fiquei sem jeito de
ir lá. Servi quatro dias, então meu pai mexeu alguns pauzinhos, fiz um juramento
e consegui minha “terceira”: a carteirinha que dizia que eu era da reserva e
tinha cumprido minhas obrigações militares. Para avacalhar, a foto três por
quatro que coloquei na terceira foi a que tirei uma dia antes de cortar o
cabelo, parecia o John Lennon nos momentos mais cabeludos! Livre do exército e
das obrigações militares, tirei o passaporte e fiz uma grande viagem pela
Europa. Fiquei dois anos por lá e era difícil cortar os cabelos. Cada hora num
lugar, numa língua, cidade, salão e barbeiro diferente. Era difícil encontrar
um barbeiro! E me fazer entender sobre o que era um Joãozinho ou um Cadete?
Levava um tempão. Mas difícil mesmo era pagar. Não porque em cada país que eu
ia tinha uma moeda diferente antes da comunidade européia e seu Euro entrarem
em vigor, mas porque era caro. Meus dinheiros de ilegal não eram o suficiente
para pagar um profissional que lá é muito valorizado. Eles chamam de “hair
dresser”, o cara que veste tua cabeça. Teve até uma amiga alemã que se ofereceu
para quebrar meu galho uma vez, ela mesma fez o serviço, de graça.
Quando voltei da
Europa, fui direto no Pelotas. Ele me recebeu com alegria e nem ficou chateado
que fiquei anos sem aparecer. Se fosse uma namorada já me enchia de tapas.
Voltei a fazer o corte cadete de anos atrás por anos a fio até que o Pelotas
também morreu. Cheguei no salão dele e tinha um outro cara. É como pensar que
vai tomar coca gelada e é café frio, qualquer um gospe com nojo. Não que café
seja nojento, é até legal, mas eu fui pensando na coca. Sai testaveando do
salão sem cortar o cabelo e, de novo, fiquei um tempo sem saber o que fazer:
onde ir para cortar o cabelo? Somente o Pelotas sabia como era o cadete que eu
gostava. Por sorte, eu estava para fazer outra grande viagem, vim para
Florianópolis fazer o mestrado.
Quando cheguei aqui em
Floripa deixei o cabelo crescer, simplesmente porque não tinha idéia de onde ir
cortar. Aos poucos, claro, me inculturei na cidade e logo achei um barbeiro
legal e barato ali na Major Costa, quase esquina com a Mauro Ramos, pertinho de
casa. Seu nome era Antenor e era gaúcho também! No começo eu pedia o corte
cadete, mas, diante da descrição do corte, ele chamava de americano, então
passei a pedir o americano. Tanto faz se era cadete, americano ou joãozinho, o
que me interessava é que eu entrava pela porta parecendo o desgrenhado Kurt
Cobain e saia parecendo o certinho Ronie Von. Cortei anos o cabelo com o
Antenor. Até que em novembro passado ele também morreu. Meu terceiro barbeiro
na vida e o terceiro que me trai sem querer. A barbearia estava fechada e
perguntei numa lojinha vizinha se sabia o porque. Fui informado da morte do
Antenor e, de novo, fiquei sem saber o que fazer. Não conheço outro lugar para
cortar o cabelo e, além disso, quem vai saber fazer o perfeito americano que o
Antenor fazia? Ele era um profissional muito bom. Sempre entendia o americano
que eu queria no cabelo, além disso, conversava animado sobre qualquer assunto
ou conservava respeitoso silêncio quando percebia que eu não estava no clima
para conversa. Ele chamava alguns clientes de bancários, eram aqueles que
ficavam o dia inteiro ali nos bancos da barbearia só conversando. Ele chamava
os arruaceiros, aqueles que os bancários identificavam passando, de cacos. E
quando ele percebia que eu torcia o pescoço para olhar alguma bunda mais
gostosa que passava ele perguntava, malicioso? Robusta a senhora, não é?
Morte é uma coisa
esquisita, desestabiliza todos no entorno. Em dezembro, na festa de final de
ano no lugar em que estava trabalhando, veio uma cabelereira cortar o cabelo da
comunidade de graça: entrei na fila. Essa tinha sido a última vez que cortei o
cabelo até hoje. Comentei com minha supervisora, Denise, que pega o ônibus
comigo, essa situação. Ela me disse que o Antenor era pai da Grasi! Uma
companheira da base do sindicato que sempre que tem greve se dispõe a
participar do comando. A filha do Antenor é uma criatura crítica, com
consciência de classe. Aqui em Florianópolis todo mundo é conhecido, vizinho,
parece até a Tristeza da minha infância.
Tanto o Pacífico,
quanto o Pelotas e o Antenor tinham o mesmo ofício. Ofício considerado simples
e pouco importante na nossa cultura. Mas, para mim, que ignoro completamente o
que se deve saber para ser barbeiro ou cabeleireiro, é um ofício necessário.
Além disso, para os três era um trabalho digno, que dava prazer, não era
penoso, sustentava suas famílias e até permitia uma educação crítica e de
qualidade para sua prole. Talvez os três tivessem outros hobbies, estudos,
sonhos, lutas ou profissões fora do que minha vista alcançava. Suas existências
talvez tivessem subprodutos muito mais gratificantes para eles que cortes de
cabelo. A gente não percebe, mas tem muita gente que faz coisas interessantes
sem aparecer para a sociedade. Não tive tempo para conhecê-los o suficiente,
mas seus filhos são os frutos mais visíveis de seu esforço fora dos salões.
No nosso sindicato,
pela primeira vez tem um médico na diretoria. Os médicos são sempre arrogantes
e se acham melhores que os outros seres humanos. Eles dificilmente se unem ao
resto da categoria quando é para reivindicar algo. Eles preferem fazer um lobby
em separado, direto com o secretário ou o prefeito. Mas o Cláudio, nosso
médico, é diferente. Ele se percebe um trabalhador como os outros e se importa com
os problemas dos servidores mais humildes, mesmo ganhando umas dez vezes mais
que quase todos. Ele entrou na chapa representando a saúde e a saúde está muito
mais interessada na mobilização sindical agora com ele. Porém, ele mantém uma
arrogância de fundo. Sem nem perceber ele desdenha de alguns serviços. Dia
destes, estávamos conversando. Ele me admira muito, naquela ocasião falava mais
uma vez que eu me expresso verbalmente muito bem, escrevo muito bem, tenho
muito vocabulário, que minhas apresentações no power point são muito
convincentes e que minhas falas nas assembléias são sempre muito engraçadas e
relevantes. Em resumo, ele falou que eu sou um homem de muitos recursos, um
carismático político mobilizador das massas. Em seguida ele falou que acha um
desperdício eu ficar todo dia brincando com criancinha. Sem nem perceber, ele
arrogantemente desdenhou a minha profissão. Sem nem perceber também, demonstrou
uma total ignorância sobre o que significa ser professor de Educação Física na
Educação Infantil. O desafio intelectual que é, o quanto precisa estudar,
planejar, registrar, avaliar constantemente. Além disso, ignora o quanto minha
atividade profissional permite abundante pesquisa, sobre a rotina da unidade,
sobre os profissionais, sobre as crianças, sobre as relações, sobre as
expectativas dos pais, um estudo de caso sobre alguma criança em especial e
milhões de outras coisas. Ou seja, dá para fazer mestrado, doutorado e
pós-doutorado sem sair da unidade de ensino. Eu, na hora, nem percebi e concordei
com ele. Sou diletante, ganho pouco, estou de saco cheio e realmente me acho
sub aproveitado na atual função. A nossa conversa era sobre o que eu seria se
não fosse professor, já que eu estou pensando em mudar de vida.
Não é só o Cláudio que
acha que escrevo bem e que desperdiço meu talento dando aulas... ou melhor,
brincando com criancinhas. Muitas pessoas já me falaram isso. Minha mãe fala
que eu sou escritor desde quando ainda morava na Europa. Ela e toda família
adoravam ler minhas cartas. Meu tio Luiz fala que eu sou escritor desde que eu
era um adolescente. Ele trabalhava em Rio Grande e me deu uma cópia da chave do
seu ap em Porto Alegre para eu aproveitar durante a semana, nós trocávamos
muitos bilhetes. Eles são ambos suspeitos para falar: o Luiz é escritor e, o
pai deles, meu avô Dante, também era escritor. Todas as namoradas que tive
também se rasgaram em elogios para meus textos. Tenho uma lista de umas
sessenta pessoas que mando testículos por e-mail a toda hora e muitas delas
gostam também. Tem uma guria que já até decidiu o título do meu livro, segundo
ela vai ser: Os meus testículos! Muitas pessoas já riram e se emocionaram com
meus escritos. Até o sindicato logo percebeu e passou a se aproveitar dessa
minha capacidade, já escrevi várias vezes para o jornalzinho, desde conclusões
sobre o resultado da greve, até resenhas de livros e sinopses de filmes. Mas,
nunca tinha dado muita bola para nada disso.
Meu ofício é simples,
me dá prazer, não é penoso, me proporciona muito tempo de ócio, tem um status
de merda, mas acabo ficando por lá mesmo. Acabo me identificando com
profissionais como o Pacífico, o Pelotas e o Antenor. Na nossa cultura somos
desvalorizados, mas lá na Europa, Japão, ou outras culturas mais desenvolvidas
somos muito mais reconhecidos e bem gratificados pela sociedade. Quanto mais
inteligente e qualificado for o educador, mais é com os menos instruídos que
deve trabalhar. O mais famoso educador brasileiro, Paulo Freire, trabalhava com
analfabetos pobres da periferia de alguma cidadezinha do interior. Eu sei o
valor do trabalho dos barbeiros e dos professores de Educação Física na
Educação Infantil. Só percebi o valor dos barbeiros quando faltou, mas percebi.
Além disso, também me sinto muito como um bom samaritano. O tal do samaritano,
que era um povo considerado impuro pelos judeus, agiu como Jesus pregava,
cuidou do próximo. Muitos judeus falavam em pureza mas não agiam como puros.
Ser filho de teóloga tem suas vantagens, conheço o outro lado das parábolas. Eu
sinto que estou fazendo o que posso para ajudar os próximos, tanto adultos no
sindicato, como crianças na creche. Afinal, vinde a mim as criancinhas. Nisso,
eu sou um bom cristão. E, já que embalei nas citações bíblicas, como é mais
fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar para o
reino dos céus, até a baixa remuneração da minha profissão não me preocupa
muito. Sei que uma hora ou outra vou ser gratificado, nem que seja no céu! Sou
ateu, sabes, não é? Mas adoro esses papos bíblicos pela riqueza das metáforas.
Hoje comecei a
freqüentar a cadeira de um novo barbeiro. E ele é novo mesmo, jovem. Fiquei
totalmente sem graça quando ele, depois de me chamar de senhor o tempo todo,
sem a menor cerimônia e sem me consultar, aparou cuidadosamente minhas sobrancelhas,
meus ouvidos e minhas narinas! Aprendi essa dura lição: Quando o seu barbeiro é
mais novo que você, significa que você está... VELHO!!! Bom, estava eu lá
sentado, vendo os cabelos brancos caírem no avental de cetim, quando tive um
insight. Meus elogiados escritos são o resultado de toda uma vida. O que
escrevo é, para mim, como o filho engenheiro eletrônico rico do Pacífico ou a
filha com consciência de classe do Antenor ou, ainda, o filho administrador do
Pelotas: o subproduto da minha atividade econômica principal é que é o belo
fruto de toda minha discreta e marginal existência. Minha vida simples, pacata
e discreta serviu para alguma coisa. Agora já posso morrer. Minha atividade
invisível vai ficar para perpetuar meus memes. Me olhei no espelho a noite e,
depois de muitos anos, me achei bonito. Não porque estava com o cabelo bem
aparado, mas porque me percebi um criador. Ganho a vida como professor mas sou
mesmo um escritor.
Lindo, amei!
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