domingo, 17 de agosto de 2025

 Rizoma, cipoal e novelo: da Grécia antiga à Capoeira 


Se estudarmos as raízes da Educação Pública brasileira, percebemos que tem um rizoma profundo, coisa que vem crescendo há milênios, enovelando diversas culturas, dos europeus aos indígenas, dos africanos aos orientais, exatamente como a população brasileira. No entanto, ao contrário do que esse cipoal de diversidade poderia supor, houve uma série de decisões políticas ao longo da história que foram conduzindo o imaginário popular da nação para o que se deve pensar sobre o assunto privilegiando um fio ideológico e empobrecendo o tecido social. Me interesso mais ainda quando se trata da Educação Física, área do conhecimento em que estou envolvido até os cabelos e me preocupo com os rumos de como a disciplina é ministrada e suas consequências na sociedade em que vivemos. O cidadão desatento nem percebe, mas está tudo conectado numa trama bem urdida. Alguém poderia escolher qualquer conteúdo da Educação Física para desfiar, mas eu quero iniciar a exemplificar a teia que me refiro neste texto com o que considero o conteúdo mais alegórico de todos: a capoeira. 

A capoeira é uma tela bem tramada onde se pode pintar um belo quadro da luta que descreve maravilhosamente os meandros da cultura nacional atual. Há uma série de leis que os professores têm que estar atentos ao planejar suas ações pedagógicas. A partir da homologação da BNCC (Base Nacional Currícular Comum) em 2017, todas as escolas brasileiras devem ensinar a história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as disciplinas (tema transversal) como forma de promover a valorização da diversidade e combater o rascismo e a discriminação. Não é mais permitido legalmente ao docente simplesmente trazer um berimbau ao falar de capoeira, ensinar uma musiquinha, demonstrar como é o gingado e bater palmas com as crianças. Uma aula assim era divertida e as crianças saíam felizes, cantando e imitando os movimentos aprendidos, mas tão ocas e ignorantes como quando entraram na escola. A legislação atual exige uma contextualização da atividade para que o discente se aproprie de sua cultura com consciência histórica e criticidade. Assim, me esforço no planejamento, preocupado que sou em não ser acusado de alguma negligência. 

Coloco uma frase no quadro para os alunos se situarem sobre o que vamos estudar, o tema gerador. Em seguida, convido os alunos que já praticam capoeira para explicar o que sabem. Poucas falas ousam desafiar o constrangimento adolescente, mas faço questionamentos sobre as que afloram. Começo indagando as origens da palavra capoeira. O termo vem da língua tupi. Explico que o tupi, nos tempos do Brasil colônia, era a língua mais falada nas grandes cidades costeiras do país, pois ali moravam há milênios os indígenas nativos falantes desse idioma muito antes da invasão portuguesa. As crianças se surpreendem, imaginam que o português é falado desde sempre por aqui. Tupi quer dizer povo. Aproveito para explicar que o Brasil não se chamava Brasil naquele tempo. Em tupi o povo conhecia a região como “Pindorama”, terra das palmeiras. Os alunos se chocam com essa informação, seu mundo sólido está se liquefazendo numa aula em que a primeira coisa que o professor escreveu no quadro foi “Lutas”, e sublinhou. Não era para a gente aprender sobre lutas? Então! Estamos chegando lá, calma! Mas as coisas não vêm flutuando no espaço, alienadas do mundo, elas estão imersas em todo um contexto histórico. Para estudar a capoeira é preciso que estudemos as línguas das pessoas que a criaram para entender o que elas estavam pensando na época. Mostro um livrinho infantil da biblioteca da escola com vários termos em tupi e provo que eles também ainda falam o tupi sem nem se dar conta. De pipoca a paçoca, de guri a abacaxi, tudo é tupi e lá em Portugal não entendem essas palavras, é coisa só nossa, como a capoeira. Capoeira então vem de “ka’a”, que é mato em tupi, e “poeira”, que é algo como aquele que foi. Pergunto, na sequência, porque alguém iria chamar a luta de “aquele que foi para o mato”? A resposta é que o termo se referia àqueles que fugiam da escravidão, do estupro, dos castigos físicos, para o mato. A turma se inflama. Um fala: Eu fugiria! Uma menina grita: Se me estuprarem, eu mato! Outro argumenta: Se o cara fugia não precisava nem lutar! Explico sobre o sequestro de africanos, desenho um pequeno mapa mundi no quadro com Península Ibérica, América do Sul e África. As crianças protestam: é aula de Educação Física, não geografia! Me esforço para explicar os motivos religiosos que faziam os portugueses crerem que eram moralmente superiores aos indígenas nativos e aos africanos. Desenho um  navio negreiro, tento fazê-los entender o que era uma senzala, fechada à noite, ensino sobre as correntes, sobre os capitães do mato que saiam à caça do fugitivo usando cães farejadores como se fossem caçar animais, das dificuldades de sobreviver no mato, da falta de estradas, dos castigos físicos quando capturados, mostro a foto das cicatrizes nas costas de um fugitivo recapturado e outra de um pelourinho onde o sujeito era torturado em público e ficava sangrando até amansar, até jogavam sal nas feridas abertas para aumentar o sofrimento e o arrependimento. Sigo o debate tentando responder as dúvidas que surgem. Mostro um vídeo de  uma roda de instrumentistas, cantando e batendo palmas num ritmo próprio, com dois falsos dançarinos gingando com a música, falo sobre os instrumentos indígenas e africanos usados na prática da luta. Porque eles tinham que fingir ser uma simples dança para treinar a luta? Porque hoje em dia se fala “jogar” capoeira? Afinal é luta, dança, ginástica, jogo ou esporte? Se é luta, porque não há contato entre os participantes além de um amigável aperto de mãos no começo? As crianças são um abundante manancial de curiosidade e a aula se adensa estudando profundamente o fenômeno sem ninguém nem sair da sala para o ginásio. O alunado se indigna quando conto que a capoeira foi proibida por lei durante séculos no país porque era uma manifestação de africanos e indígenas escravizados e a pequena elite branca que decidia as políticas públicas não queria validar nada que viesse deles, nem música, nem dança, nem religião, nem idioma, nem gastronomia, muito menos se fosse algo para ajudar na fuga dos escravos. O objetivo era apagar e vilipendiar a história e a cultura de todos os povos originários. 

Veja que, para estudar a capoeira, obedecendo a legislação vigente, tive que puxar vários fios para tecer o conteúdo. Ao estudar a luta, precisamos estudar primeiro um pouco do idioma Tupi e sua enorme influência no português falado no Brasil, a geografia das etnias que migraram para o país, os motivos que autorizavam os portugueses a matar, torturar, escravizar e estuprar sem culpa devido às crenças de sua religião cristã, a história de resistência dos escravizados africanos tentando escapar daquele jugo, a política pública que colocava a capoeira na clandestinidade, a luta que fingia ser dança em rodas de pessoas fazendo uma música com ritmo característico, cantando e tocando instrumentos indígenas, tudo para tentar entender a cultura nacional atual e onde a capoeira se insere. Ao se tentar puxar o fio da capoeira, o que vem é toda uma tessitura indissociável.

Somente aí, depois de toda essa exposição, posso procurar um berimbau para experimentar o gingado… Mas não o faço. Sou da opinião que as lutas não deveriam ser ensinadas na escola, nem as brasileiras, nem as estrangeiras, mas a lei me obriga a trabalhar com elas, assim como os esportes. Para que ensinar a lutar? Os japoneses e coreanos que migraram para o Brasil exigem que o judô, caratê e o jiu jitsu sejam ensinados nas escolas, principalmente nos estados do Paraná e São Paulo. Aprender a derrubar os outros, é isso? O sucesso de alguém só acontece se houver a derrota de outro? Depois da BNCC, os legisladores decidiram a idade em que cada conteúdo deve ser trabalhado e lá estão explicitados tanto as lutas, quanto os esportes desde a mais tenra idade na escola básica. Sério? É essa a sociedade que queremos, colocando uns contra os outros para competir até descobrir quem é o único vencedor? A sociedade deve mimetizar um pódio, com degraus hierárquicos de virtude moral, onde uns poucos incluídos se posicionam num nível acima da massa excluída? Acredito ser um equívoco tremendo, mas os políticos decidiram diferente. Lutas é um assunto que só admito trabalhar teoricamente com meus alunos, não quero que ninguém tente derrubar ou esganar o colega numa aula prática de luta. Me sinto obrigado a investigar porque se exige o estudo das lutas nas escolas. O que levou os educadores a aceitar que se ensine algo que faz as crianças aprenderem a decidir conflitos medindo forças corporalmente? Ah, o rizoma é profundo e precisamos ser radicais na investigação! A raíz disso tudo começa onde? 

Pouca gente sabe, mas desde a antiguidade, quando passou a existir algo parecido com a instituição que agora conhecemos como escola, uma educação sistematizada exercida por um profissional que não era um dos progenitores, o aprendizado do bom controle e cuidado com o corpo tem papel central. Na Grécia, nos arredores de Atenas, o filósofo Platão organizou uma escola ao ar livre, numa colina chamada Akadémia. Era um local com bosques e muito ar puro, frequentado somente por homens. Na trilha para lá havia um pórtico em que se lia: “Aqui só entra quem sabe geometria”. Lá os cidadãos atenienses, homens livres e com posses, filosofavam, ou seja: conversavam sobre política, justiça, amor, biologia, direito e muita matemática enquanto faziam exercícios de ginástica. A própria palavra “ginástica" vem do grego “gymnos” que significa… nu. Sim, você já adivinhou, era um local em que se fazia atividades físicas sem roupas enquanto divagavam sobre assuntos diversos. Se acreditava que assim, peladão como veio ao mundo, contemplando a natureza virgem e a “pólis” de longe, “sarado” devido ao treinamento, surgiriam pensamentos belos, puros e saudáveis também. Claro que os caras que faziam isso eram ricos e tinham muitos escravos, filhinhos de papais almofadinhas que podiam ficar malhando as tardes inteiras, debatendo sobre a dicotomia entre corpo e alma, sem trabalhar. O próprio Platão era o garoto propaganda perfeito para sua escola de pensamento: seu nome verdadeiro era Arístocles, mas, por ele ter costas largas e ombros fortes devido ao treinamento que pregava e praticava, o apelidaram de Platão, algo como “paletão” em grego. Seu apelido era também um elogio às suas ideias que teriam a envergadura de um atleta da razão.  

O Império Romano era os Estados Unidos da época, beligerante, logo invadiu a Grécia e seus líderes entenderam a coisa toda. Em latim, essas ideias gregas de filosofar pelado, foram traduzidas como “mens sana in corpore sano”, ou seja, mente sã em corpo são. A mente tem que ser treinada tanto quanto o corpo. A matemática ou a política só se revelariam em corpos fortes e simétricos. Portugal era um subúrbio romano, uma província distante, mas aquela cultura logo se espalhou para lá também, assim como o idioma latino. Durante quase toda sua existência, o Império Romano foi laico e interferiu o mínimo possível na cultura dos locais invadidos, porém, próximo ao seu final, quando já se fragmentava devido ao seu gigantismo, o Imperador Constantino se converteu ao cristianismo, religião recém sistematizada pelo cidadão romano Paulo de Tarso, e exigiu que todo império também adotasse essa religião como oficial, tornando Roma a sede da seita nascida na Palestina. Perceba como os rizomas se enredam, se contradizem, se anulam e aos poucos se reforçam num confuso emaranhado: uma das coisas que os beligerantes romanos proibiram ao dominar a Grécia e adotar o cristianismo foi a religião grega e o festival religioso em honra a Zeus, os Jogos Olímpicos. Com o fim do Império Romano, Portugal se tornou ele mesmo uma potência em navegação e conquistas. Invadia as terras de nações indígenas no recém descoberto novo mundo, matava, estuprava e escravizava os nativos à vontade, rezava missas em Latim impondo sua cultura. E assim chegamos à atualidade brasileira. Até hoje, mesmo passado quase 2300 anos da morte de Platão e estando a mais de 10.000 km de distância da capital grega, tanto universidades como os locais para fazer ginástica são conhecidos como academias em referência àquela escola criada por Platão na colina próxima a Atenas. E é no início da vida acadêmica, na escola básica, que se preserva as ideias grego-romanas de que o conhecimento acumulado da humanidade deve ser transmitido para os mais jovens sem descuidar da educação do físico. Há sempre um momento em que se leva as crianças à um “gymnasium” para que façam alguma atividade física. Sim, você já adivinhou de novo, ginásio era o local próprio para se fazer atividade física nu. A diferença para a escola de Platão é que, aqui no Brasil, devido a religião cristã adotada como oficial pelos invasores romanos, em que o corpo é o templo do Espírito Santo e a mente deve controlar os desejos da carne em respeito à pureza dos pensamentos, os alunos são impedidos de ficar nus, mas os shortinhos e a camiseta física estão permitidos, aliás, por décadas foi o uniforme escolar oficial obrigatório para as aulas de Educação Física. Perceba, caro leitor, o cipoal de culturas, religiões e idiomas que vão se enredando. 

No começo do que conhecemos hoje em dia como Brasil, os genocidas escravocratas portugueses que aqui chegavam não viam necessidade de ensinar qualquer coisa aos indígenas nativos ou africanos que sequestravam e traziam para cá acorrentados para escravizar. No entanto, a natureza logo obrigou os tomadores de decisão descendentes de europeus que aqui viviam a repensar esse posicionamento político. Com a epidemia de gripe espanhola no começo do século vinte, se percebeu a necessidade de ensinar higiene corporal para toda a população: lavar as mãos antes das refeições, tomar banho, trocar de roupas diariamente e fazer atividades físicas ao ar livre eram as orientações da época para todo mundo, não só brancos. O vírus era democrático e republicano, não se importava com a cor do indivíduo ou sua classe social. A Educação Física entrou com essa função nas escolas criadas, foi a fase higienista da disciplina no país. É incrível pensar que uma das maiores motivações dos legisladores para universalizar o ensino público foi a necessidade de salvar a própria pele. Claro que, além de higiene pessoal, podiam controlar facilmente o que seria ensinado às crianças dos despossuídos, da língua portuguesa à religião cristã, além da doutrina de submissão e obediência para formar operários de fábricas que pudessem ler e fazer contas. A universalização da escola pública foi o último prego no caixão da popularidade do idioma tupi e das religiões de matrizes africanas e indígenas. Curiosamente, na mesma época na Europa, alguns educadores franceses recriavam os Jogos Olímpicos, mas com algumas adaptações cristãs: os atletas não mais competiam nus, as lutas não eram mais até a morte e os jogos não eram mais em honra a Zeus. O mundo dá muitas voltas e, de liame em liame, o novelo só vai engrossando.

Depois do período higienista, quando o Brasil passou a se envolver em guerras mundiais, a política mudou o foco da necessidade de escolas públicas e da Educação Física em particular. Agora o objetivo era formar soldados aptos para as batalhas, foi a fase militarista. Muito treinamento de força e longas corridas para fortalecer músculos e aumentar a resistência cardiovascular dos corpos dos futuros pracinhas. A Educação Física tinha grande importância no currículo e muito da carga horária dos estudantes era dedicada às práticas de ginástica e lutas, principalmente a esgrima. Os professores eram militares e os alunos eram ensinados a matar. De novo, é difícil de acreditar que a disciplina já teve essa função. Hoje em dia, nem se admite pensar em crianças sendo preparadas para matar na guerra, mas durante duas décadas, foi assim. 

Com o fim dos conflitos na Europa em 1945, os tomadores de decisão das políticas educacionais brasileiras resolveram que agora já se poderia deixar o assunto da educação pública para os educadores profissionais. Dessa forma, a formação das crianças deveria ser integral, como pensava Platão na Grécia antiga. De novo, a Educação Física era o centro do processo pedagógico. Se acreditava que a música, a dança, as brincadeiras de roda, os esportes, os jogos e a ginástica seriam promotoras de saúde física e mental para que as crianças se desenvolvessem otimamente. A socialização harmônica, divertida, acolhedora e afetuosa era o objetivo principal da disciplina. Essa fase, conhecida como pedagogicista, era uma reação à fase militarista que excluía a ludicidade da infância. Infelizmente, essa fase sucumbiu à ignorância dos políticos com o golpe militar de 1964. 

Durante o regime militar, a Educação Física tomou um novo rumo no Brasil. Deixou de ter papel central na vida escolar para ser só mais um instrumento de doutrinação ideológica. A carga horária diminuiu para somente três horas semanais e a ênfase foi dada aos esportes.  As crianças precisavam aprender a seguir regras, nunca propor mudanças nelas e, principalmente, obedecer às autoridades e isso é exatamente o que os esportes ensinam. Além disso, os esportes ainda ensinam a cooperar com o próprio time para lutar contra um “inimiguinho” de faz de conta que obstaculiza o grupo para chegar à virtude, à vitória. Essa fase da Educação Física brasileira ficou conhecida como competitivista e deixou marcas profundas nas políticas nacionais de educação. Grandes ginásios poliesportivos foram construídos em muitas escolas em todas as cidades do país. Os militares queriam dividir a população, fracionar infinitesimalmente a união e solidariedade entre grupos colocando uns contra os outros ao valorizar ao máximo os esportes. Para piorar, bem nessa época estava começando a popularização dos aparelhos de rádio e televisão no país que ajudaram muito a difundir entre a população esses valores competitivistas.  

Com a redemocratização da nação em 1985, vários teóricos da Educação Física se propuseram a repensar a disciplina, mas o estrago já estava feito. O capitalismo encontrou nos esportes, potencializados por aparelhos de radiodifusão e televisionamento, terreno fértil para a propagação de um mercado ideal. A ideologia capitalista, em que só alguns poucos vencem na vida e a maioria perde e isso seria normal e justo, contaminou o imaginário popular de uma forma totalitária. É esse o fio ideológico privilegiado atualmente, o capitalista. Qualquer discurso contrário é respondido de forma imediata e violenta em coro ou jogral. Grandes lobbies milionários passaram a envolver os legisladores que elaboraram a constituição de 1988 com discursos inflamados sobre altruísmo, saúde e cidadania para justificar a permanência e o incentivo dos esportes e lutas nas escolas, agora obrigatórios por lei. A droga viciante da ideologia esportiva facilitou tudo, pois as crianças viciam com facilidade no prazer momentâneo que proporciona. Mesmo pessoas adultas e sensatas não percebem que os esportes são a maior, melhor e mais central engrenagem da máquina capitalista que alavanca a exclusão, azeita a segregação, potencializa o machismo, o racismo, a homofobia, a gordofobia, a xenofobia, o etarismo e o capacitismo. 

Não estamos mais envolvidos em nenhuma guerra mundial em que precisamos nos preparar para batalhas. Não estamos mais em nenhum regime militar, podemos questionar regras e até modificá-las. Não temos mais professores militares, não precisamos ensinar a matar. Qual a justificativa atual para se ensinar as lutas e esportes na escola? Não há. O que há é uma grande dificuldade de se desenredar de um passado urdido em sociedades aristocráticas e belicosas como a grega ou romana ou do presente da trama fechada do império do capital. O cipoal da tradição se mistura com os lobbies da sociedade de mercado para que se perpetue uma sociedade excludente em que só alguns devem vencer na vida. Querem nos fazer acreditar que a vida só pode ser assim. Assim como nos obrigam a falar o português e tentam apagar o Tupi ou alguma língua africana da nossa cultura, assim como nos obrigam a encontrar Jesus como a verdade e a vida e desdenham de nossas religiões indígenas, assim como nos fazem aceitar pacificamente uma sociedade com diferenças sociais brutais e jamais propor uma revolução, nos ensinam que os esportes e as lutas devam ser vistos como uma verdadeira panacéia social. Segundo o mercado, o esporte faz bem para a saúde, afasta das drogas, promove a inclusão e tantas outras falácias que a ciência prova exatamente o contrário. Exatamente o contrário, eu repito!!! É tudo mentira que colou! A maior razão para continuar ensinando lutas e esportes na escola pública é para perpetuar a diferença social. Os aristocratas que nunca limparam sua própria privada ou lavaram sua própria louça querem que alguém o faça, exatamente como Platão na Grécia antiga. Tudo bem que a capoeira tenha encorajado os escravizados a lutar por sua liberdade, mas daí à não serem serviçais de ricos já é demais! 

Os legisladores atuais não querem que deixe de existir pobres, afinal, alguém tem que fazer o trabalho sujo e pesado. A própria BNCC é um cipoal de interesses confusos, reflexos das ideologias em conflito no país. Ao mesmo tempo que tricota um belo quadro em suas competências gerais, objetivo final do sistema escolar brasileiro a ser alcançado por todos os jovens formados no Brasil, em que as crianças devem aprender a cooperar, a se solidarizar com o próximo, a colaborar para construir uma sociedade fraterna, a exercitar a empatia, exige que os professores de Educação Física ensinem a derrubar os outros, a derrotar o próximo. Esse mau hábito deveria ser relegado a instituições especializadas, não a escolas regulares. Alguém que ache importante que seu filho aprenda a imobilizar alguém deveria procurar uma academia de judô ou algo assim. Os pais que querem agir como “coaches” de futuros empresários, pessoas para quem valores monetários são mais importantes que valores morais, poderiam matricular seus filhos numa escolinha de futebol ou basquete. 

Sim, temos essa herança greco-romana e vivemos numa sociedade capitalista, mas precisamos avançar. Diante desse limão ácido que me é imposto, decidi fazer uma doce limonada. Sou a resistência na linha de frente da guerra às ideologias capitalistas excludentes. Nas minhas aulas me escoro na legislação vigente e aproveito para explorar os porquês das lutas e esportes surgirem no Brasil como conteúdo escolar. Já que essas leis também obrigam a trabalhar as culturas africanas e indígenas, vamos estudar o lado dos oprimidos: porque aprender a lutar em algum momento foi necessário para manter a vida dos excluídos como na capoeira? Oba, vamos estudar o fenômeno antropológico das lutas brasileiras então, as ordens vieram de cima, eu só obedeço. 

Agora, caro leitor, você já pode estar imaginando que esse professor que vos escreve não consegue dissociar nenhum conteúdo de seu contexto histórico. Sim, é verdade! As coisas não surgem do nada e sem razões palpáveis, os motivos do ensino de lutas e esportes são materiais e históricos. Para estudar qualquer assunto relacionado ao movimento humano, mesmo tentando isolar os assuntos, forçosamente, com as dúvidas que os alunos vão apresentando, me vejo obrigado a fazer conexões das mais diversas. Meus críticos falam que a Educação Física não deve se envolver com os assuntos de outras disciplinas. Principalmente, não deveria me meter em questões políticas, são os defensores da “escola sem partido”. Ora, a escola sem partido é justamente uma escola com partido, o partido conservador, do tempo da ditadura militar, em que as crianças não deveriam pensar e questionar, somente obedecer às autoridades e seguir regras para manter a ordem social como está. Discordo, acredito que o modo como as coisas estão na sociedade não é justo, há muita desigualdade, não quero que permaneça assim. Quero que as crianças percebam isso, quero que pensem em fugir da opressão, que fujam para as colinas, que fujam para as academias para pensar, que busquem pensamentos puros. Quero que sejam capoeiras, que fujam para o mato, conscientes de seu valor. Que não admitam o jugo nas costas. Quero uma escola com partido, que se posicione contra as desigualdades, que lute para grandes mudanças sociais em direção a uma maior sofisticação moral da coletividade em que vivemos.

Assim como a capoeira, todos os outros assuntos da disciplina da Educação Física na escola tem todo um contexto histórico que, se não for estudado, o conteúdo fica esvaziado e desprovido de sentido. Mero entretenimento para as crianças, recreação. Veja o exemplo do futebol, as crianças adorariam que eu largasse uma bola e os deixasse usufruir acriticamente do esporte como se fosse um refrigerante Fanta. Mas garanto, caro leitor, o cipoal do futebol é complexo como o da capoeira e a história que o envolve é tão vil quanto. 

A fase atual da Educação Física escolar brasileira é conhecida como popular, teve início com a redemocratização em 1985 e ganhou força com a constituição cidadã de 1988 e a BNCC de 2017. A própria lei agora coloca a Educação Física na área das linguagens, ou seja, um produto da cultura. Os alunos têm que sair das escolas aptos a avaliar criticamente, questionar, argumentar, propor mudanças. No meu entendimento, a lei me exorta a apresentar sempre o cipoal todo. Você à essa altura já percebeu o tamanho do rolo que é ensinar numa escola básica. Não dá para escolher um único fio da história e achar que dá para isolá-lo do novelo da humanidade, a não ser, claro, que se queira enganar alguém, mostrando só um pedacinho, como trazer um berimbau e ensinar o gingado. Alguma coisa em algum momento vai “enozar”, as crianças não são parvas como os adultos, elas fazem questionamentos se forem ensinadas a pensar e não só a aceitar, não admitem “verdades” absolutas. 

Uma última reflexão para encerrar esse já longo texto. É preciso lembrar que os famosos filósofos gregos, todos, sempre iam estudar na África em algum momento da vida. O continente negro era o centro do conhecimento da época, lugar onde a humanidade nasceu e viveu a maior parte de sua existência como espécie. Todas as universidades e maiores bibliotecas estavam lá. Os maiores matemáticos e astrônomos do mundo lá estudavam e ensinavam o que sabiam. Veja que começamos a fechar o liame com os africanos escravizados da capoeira brasileira, as conexões são ancestrais. A Europa 300 a.C. (veja que até mesmo a contagem do tempo no ocidente é cristã, a.C significa antes de Cristo), época do “milagre” grego, era uma arrabalde ignorante do mundo, lugar onde os matutos viviam. O problema vem daí, ignorantes armados são extremamente perigosos. Hoje em dia se tenta apagar esse fato, mas basta desfiar um pouquinho do novelo da história para que apareça os fios de cores que os dominantes de agora querem que o mundo esqueça. Os gregos que tinham condições mandavam seus filhos para lá estudar. Nosso Platão, por exemplo, estudou na África. Platão foi tutor de um sujeito chamado Aristóteles. Aristóteles teve um aluno chamado Alexandre. Alexandre se tornou imperador grego e expandiu o império para dominar… o Egito, à força, claro. Alexandre fundou uma cidade na foz do Nilo, um grande porto, que deu seu próprio nome, Alexandria. Mandou reunir numa biblioteca enorme, todos os textos conhecidos e construiu um farol na ilha de Pharos, bem na frente da cidade, para guiar, dia e noite os barcos para o saber. Aliás, a própria palavra farol deriva do nome da ilha em que foi construído. Os romanos invadiram a Grécia e tocaram fogo em Alexandria, inclusive naquela valiosa biblioteca africana. A tentativa de apagamento da cultura grega e africana pelos beligerantes romanos foi semelhante à tentativa dos portugueses de apagar e vilipendiar o tupi e as culturas indígenas e africanas aqui no país como fizeram, por exemplo, com a capoeira.  


P.S.: Enquanto escrevo esse texto, um sujeito que se diz cristão e frequenta academias de musculação, resolveu uma briga de trânsito com um caminhão de recolhimento de lixo, matando com um tiro um gari que tentava proteger a motorista do caminhão, uma mulher desarmada fazendo seu trabalho. Esse episódio fala muito sobre os mitos que envolvem o esporte. Mais uma falácia grega que pode ser problematizada: aparecem pensamentos puros nas pessoas que treinam o corpo? Ele matou para ir treinar seu corpo simétrico. Se você não sabe como os brancos europeus dominaram e escravizaram povos africanos e indígenas, foi exatamente por isso, por ter armas de fogo na mão. Dou um pirulito para quem adivinhar a cor do saradão bombadão que atirou e do gari que morreu.



terça-feira, 27 de maio de 2025

 É PRECISO AGIR


Bertold Brecht (1898-1956) 


Primeiro levaram os negros 

Mas não me importei com isso 

Eu não era negro 

Em seguida levaram alguns operários 

Mas não me importei com isso 

Eu também não era operário 

Depois prenderam os miseráveis 

Mas não me importei com isso 

Porque eu não sou miserável 

Depois agarraram uns desempregados 

Mas como tenho meu emprego 

Também não me importei 

Agora estão me levando 

Mas já é tarde. 

Como eu não me importei com ninguém 

Ninguém se importa comigo


Humilhações


O então presidente Jair Bolsonaro, em 2020, aproveitou a pandemia para congelar o salário dos funcionários públicos. Nem reposição inflacionária estava permitida. Seu decreto também congelava os avanços vegetativos do funcionalismo. Como sou professor em escola pública, a decisão me afetou. Fomos compreensivos na época, apesar de discordar da medida, porque a situação era nova e realmente excepcional. Nós, professores, e também os alunos, tivemos que comprar tablets, laptops ou celulares bons para poder participar das aulas online daquele período, além de pagar acesso à internet do próprio bolso, já que o poder público não achou que fosse necessário gastar com esses detalhes. Ou seja, além da diminuição salarial, fomos obrigados a aumentar nossos gastos para pagar pelos meios para executar nosso trabalho que agora era a distância. 

No município em que trabalho, Osório, no litoral norte gaúcho, ainda durante a pandemia, elegemos um prefeito bolsonarista, Roger Caputi. Ele também resolveu economizar conosco, os barnabés. Alegou que a economia da cidade estava debilitada devido aos transtornos causados pela emergência sanitária e, por isso, não poderia repor toda a inflação do período pandêmico porque estaria ultrapassando o limite prudencial da lei de responsabilidade fiscal. Nosso sindicato calculou em 23% o achatamento salarial, quase um quarto do salário e, mesmo respeitando o limite orçamentário legal, pelo menos 10% poderiam ser repostos. O chefe do executivo municipal resolveu nos dar somente 7% porque, segundo ele, seria o possível naquele momento, do contrário o serviço público seria precarizado. Ficamos injuriados, mas ficamos calados. Na pacata cidadezinha do interior em que vivemos, os valores morais são estranhos, se acredita que protestar contra injustiças é uma coisa condenável, elegemos conservadores. Eu e minha companheira, que também é professora, fizemos as contas e constatamos que economizaríamos se saíssemos da nossa casa própria e alugássemos uma casa mais próxima a escola em que trabalho. Por incrível que pareça, seria mais barato do que pagar a gasolina da moto para ir trabalhar todo dia, tal o valor que estava atingindo o combustível durante aqueles tempos de pandemia com Bolsonaro descarrilhando o país. 

Abandonei meu silencioso sítio com pomar e linda vista para o vale na serra do mar e fui morar na ruidosa vizinhança ao lado da escola com vista para o ginásio poliesportivo. Para ajudar nas despesas de locação, também aluguei para um estranho minha quentinha casa própria com lareira na sala e estoque infinito de lenha no pátio, bem no começo do inverno. No ano de 2022, em abril, do nada, o tal Caputi resolveu dar uma atenção especial aos professores e espremê-los um pouco mais: acabou com nosso “desdobramento”. Somos concursados para vinte horas mas trabalhamos quarenta, assim, temos 100% a mais do salário, pois trabalhamos o dobro. De uma hora para outra, no meio do ano, me vi com só metade do salário, aquele mesmo salário que já estava diminuído! Fiquei fulo da vida e falei com meio mundo sobre a situação absurda que estava vivendo. A secretaria de educação me disse que estava tudo certo, afinal eu só precisaria trabalhar vinte horas semanais a partir de agora! Como eu continuava birrento por só ganhar metade do salário que normalmente eu recebia, me ofereceram então uma “ótima oportunidade”, segundo eles: Pegar um contrato temporário para as vinte horas que haviam me tirado. Claro, o salário seria bem mais acanhado para essas vinte horas, igual a de um professor em início de carreira, cerca de metade do que eu ganhava no desdobramento. No desespero, aceitei. De uma hora para outra fiquei com 75% daquele salário que já era 75% do de 2019. Na ponta do lápis, meu poder de compra virou algo como 50% do que era. Passei a ganhar como um monitor de escola ou um servente, pessoas que eu convivia no cotidiano trabalhando sorridentes, e nem percebia as privações pelas quais passavam. Passei a entender como vivem os excluídos. Troquei minha moto grande e segura por uma bem pequeninha, com peças bem baratas e sem sistemas eletrônicos de segurança, não estava mais conseguindo pagar a manutenção daquela que confiava. Passamos frio naquele inverno sem a lareira do sítio e à sombra do ginásio. 

De novo, eu e minha companheira fizemos as contas e percebemos que, apesar de todos os sacrifícios que estávamos fazendo, mesmo assim teríamos que fazer bicos. Ela passou a trabalhar numa pousada à noite e eu virei Papai Noel no Natal, vestindo vermelho e balançando uma sineta, engrossando a voz para falar ho, ho, ho. As humilhações começaram a se empilhar uma atrás da outra. Rapidamente, o requeijão virou margarina, a carne virou ovo e quando o gás acabava procurava algum lugar que aceitasse pré-datado, pois não tinha na conta os cem reais para trocar o bujão. Um dente quebrado vai ficar quebrado, pois o SUS só faz reparos menores e o orçamento num dentista particular é proibitivo. Se o postinho de saúde não oferece determinado medicamento, a coisa fica dramática. Fui ao banco pedir que aumentem o limite do cartão de crédito porque o enteado cresceu e seu tênis estava apertando. Mendiguei ajuda aos meus familiares e até meu velho pai aposentado de 85 anos se prontificou a vir em nosso socorro. Comprar livros ou ir ao cinema viraram luxos inacessíveis como uma vez já foi viajar ao exterior. O professor não pode mais comer ou morar bem, muito menos se atualizar. Isso sim é precarização. 

Os anos passaram e a inflação foi comendo nosso salário velozmente, ano passado Caputi resolveu dar 0,5% da inflação que tinha sido 5%. Fizemos campanha intensa para eleger um novo prefeito, alguém que valorize o servidor. Também nos empenhamos na luta por uma câmara de vereadores mais favorável. Vibramos quando elegemos um ex-prefeito que tinha sido generoso com os servidores no passado, Romildo Bolzan, e duas companheiras da categoria, uma servente e outra professora aposentada, Rosi e Isabel, para a câmara de vereadores. Para nossa desagradável surpresa, o eleito nos traiu e perpetuou as políticas anteriores. Bolzan fez uma audiência pública para dizer que não ia dar nem a reposição inflacionária do ano passado, 4,5%. Além disso, resolveu extinguir cargos importantes para as escolas, como secretário ou cozinheiro, para terceirizá-los. Anunciou também que nosso plano de saúde do IPE vai subir, praticamente dobrar de valor mensal. O desespero nos abateu, percebemos que teríamos que parar de pagar o plano de saúde porque agora, obviamente, não cabe no orçamento. Mas não podemos nos entregar pros home, levantamos a cabeça para lutar e promovemos as primeiras manifestações contra o executivo municipal desde que entrei na prefeitura. A consciência de classe finalmente chegou aos meus colegas de trabalho, aos coices, mas parece que agora entenderam. Marcamos uma passeata de protesto contra a precarização do serviço público, a superlotação das turmas, o sucateamento das escolas, o desmonte do atendimento em saúde, a desvalorização do servidor. 



Na concentração para a passeata, em pé numa praça do centro da cidade, ouvi duas colegas professoras conversando. Uma delas ficou inadimplente e o banco já tomou os seus dois últimos salários por inteiro, a instituição a escravizou, está presa aos seus grilhões. Não conseguia mais pagar os empréstimos consignados. Ela lamentava que a fome se avizinhava de sua família. Estava temerosa de ser denunciada por estar comendo a merenda com as crianças nas escolas que trabalha. A outra professora oferece a solução que utilizou para si: abriu uma conta em um banco virtual e fez a portabilidade do salário, abandonado a conta insolvente. Que se exploda seu nome no mercado. As duas humilhadas, se viram obrigadas a se tornar marginais fora da lei, apesar de seguir fazendo seu trabalho docente da melhor forma que podiam. Me interessei pela conversa, então não sou só eu que deixei de ser cidadão de direitos? Me aproximei para pegar as dicas com as duas sobre as estratégias que encontraram para sobreviver ao empobrecimento vertiginoso. Elas revelaram que aprenderam o que fazer com os alunos, ouvindo falar como agem seus pais na favela. Passamos a conjecturar ir morar ao lado dos alunos, nos barracos da ocupação desesperada, lá o aluguel é metade do preço e também fica próximo a escola.

Conversa vai, conversa vem, e descobri que estamos todos sendo expulsos de uma classe para sermos incluídos em outra: a classe despossuída, a classe dos ribeirinhos, daqueles que vivem à margem da sociedade, a classe dos excluídos. As soluções encontradas para a salvação vão desde as mágicas como procurar Jesus ou apostar na bet do tigrinho, até as mais pé no chão como vender Avon, Boticário ou brigadeiros. Os sortudos fazem Uber, cortam grama nas casas de veranistas ou faxinam nos condomínios. Nem a solução mais comum entre professores, trabalhar sessenta horas semanais, está dando conta. Eu resolvi apostar na megasena, fazer Uber, móveis rústicos para fora e no Natal o ridículo Papai Noel. Minha mulher se arrebenta numa pousada e vende licores para fora. E assim mesmo nada mudou, nem para nós, nem para meus colegas. Nem Jesus, nem o Uber, nem o tigrinho ou a mega ajudaram ninguém. As conversas são uma competição de desgraças, uma pior que a outra. O mundo que conhecemos está ruindo. 

Percebi que a melhor solução é dentro da lei, via política ou judicial. O presidente Lula é uma esperança grande dos pobres. A isenção de imposto de renda até R$ 5000 já vai ajudar alguns colegas. Ganhamos na justiça que o município pague o piso salarial definido nacionalmente, mas o município recorreu, vai demorar. Ganhamos na justiça que a lei seja cumprida também a respeito dos 33% das horas do professor para o planejamento. Nisso o município recorreu só nos retroativos, não quer pagar os cinco anos devidos. Eu fui ao banco novamente mendigar, renegociar as dívidas: devo, não nego, mas pago quando puder. O atendente me disse que todos os dias professores estão ali na sua frente fazendo o mesmo pedido que eu. Primeiro tinham sido professores estaduais no governo Sartori. Agora estão chegando os municipais, antes arrogantes diante dos colegas do estado, na mesma vala dos humilhados. Revelou que os trabalhadores, todos ex-marajás, da antiga CEEE e da antiga CORSAN, ambas empresas públicas privatizadas, também estão chegando às pencas. O rapaz me confessou que mesmo eles bancários do Banrisul, banco público, com sindicato forte, estão chegando a mesma situação. Finalmente, o cara me aconselhou a procurar outra profissão. A que ponto chegamos? A sociedade está concluindo que ser professor é semelhante a não trabalhar, virar mendigo, depender da esmola alheia. 

Cinco anos de desgovernos em meio a uma pandemia nos arrebentou de forma avassaladora. Morávamos bem, vestíamos bem, comíamos bem, tínhamos seguro saúde, veículo quitado, íamos ao cinema e até ao restaurante de vez em quando. Tínhamos orgulho da profissão. As coisas mudaram muito, viramos excluídos e agora nos vemos obrigados a refletir sobre justiça social. Antes tarde do que nunca! Preciso lembrar alguns sábios do passado para ajudar nessa reflexão. Primeiro, aquele judeu palestino que falava de amor, igualdade, fraternidade e divisão da riqueza, com certeza o primeiro comunista da história, Jesus: Eu não vim para trazer a paz, eu vim para trazer a espada! Ele quis dizer que a justiça social não vem sem luta. Algumas pessoas tentam esquecer o que ele falou, mas ele disse que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Outro pensador importante que nos ajuda a repensar posições conservadoras é, coincidentemente, também de origem judaica, mas alemão, e falava as mesmas coisas que Jesus, Marx. Não dá para chamá-lo de cristão porque era ateu, mas Marx também falava em igualdade, fraternidade e divisão das riquezas, além de nos exortar a lutar juntos: Trabalhadores do mundo, unam-se! Vocês não têm nada a perder exceto seus grilhões. Finalmente outro alemão, mas esse um cristão luterano, Bertold Brecht, com o qual abri esse texto. Brecht nos alertava em bom alemão: Ó, te liga, porque se tu não te juntares à luta agora, tu serás jantado nas próximas refeições pelos tubarões do mercado!


sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

 Sobre o Natal




Talvez você nunca tenha lido ou mesmo ouvido falar, mas tem um livro muito antigo chamado Bíblia que é o que mais foi impresso em toda história. Bíblia não é exatamente um título, é o coletivo de “biblos” que significa livro. Em alguns desses livros, que essa grande coletânea de livros contém, eu li essa história que vou aqui resumir. 

Atualmente, dia 25 de dezembro, se comemora o natal (nascimento) de um menino. Não que ele realmente tenha nascido nesse dia, é que ninguém sabe exatamente o dia que ele nasceu, sua história é complicada. Ele era descendente de judeus que fugiram da África (negro) para não ser escravizados, foram caminhando no deserto até a Palestina acreditando que lá teriam uma vida mais fácil (refugiado). Seus pais batalhavam muito (pobre) numa vilinha do interior (Nazaré, como a nossa Vila Verde). Sua vida não era nada fácil, sofriam com os altos impostos cobrados pelos colonizadores romanos daquela região. Para piorar, os opressores mandaram matar o primeiro filho homem de cada família judia temendo um levante étnico, já que ouviram falar que estava para nascer uma liderança importante do povo judeu. Como estavam esperando seu primogênito, os pais dessa criança que nasceria correram de volta para o Egito para escapar dessa decisão política genocida (exilado político), no lombo de um burro, mesmo com a mulher estando no final da gravidez e no auge do inverno, pensaram que seria melhor ser escravo vivo do que pobre morto. Na África, além de escapar do governante tirano assassino de crianças, também teriam a vantagem de passar despercebidos na multidão devido à sua cor de pele. O guri nasceu durante aquela viagem angustiante, torcendo para não ser parado numa blitz da polícia rodoviária ou na alfândega. A mãe sentiu as dores do parto com aquele trote duro do burro quando passavam pela cidade de Belém. O casal procurou as pousadas da estrada ao entardecer para pelo menos a mulher ter onde deitar. Mas, vendo aquele casal pobre, negro e empoeirado, com cara de fugitivo da polícia, a mulher quase parindo, gritando de dor, todo mundo dizia que não tinha lugar. Mentira, claro que tinha! As pousadas estão sempre cheias no Natal, mas nem existia Natal ainda! Claro que as pousadas estavam vazias naquele frio. Um dos hospedeiros se apiedou e deixou que passassem a noite no estábulo, entre os bichos, no meio daquele fedorão, tentando não meter os pés nas bostas e no mijo. Estourou a bolsa da mulher e a cabeça da criança coroou na sua vagina perto da meia noite e o desesperado padrasto (sim, a criança não era dele, o menino era bastardo, era um pai adotivo), sofrendo com os gritos de dor da companheira em pé naquele merdeiro, sem saber o que fazer, segurou a criança do jeito que deu. Arrumou alguma palha seca na manjedoura (coxo) em que os animais comiam para acomodar a criança ensanguentada. A mulher, exausta, se atirou finalmente no chão coberto de excrementos. E ali amanheceram os três, provavelmente aquecendo-se nos corpos dos animais, sem nem uma bica d’água para lavar aquele melelê todo. Mesmo nascendo nessa situação de extremo sofrimento, desde piá, o gurizinho já lia e até questionava os líderes da religião dos seus pais, o judaísmo, porque o que estava escrito nos livros sagrados não era o que os rabinos faziam (intelectual judeu). Não se sabe muito da vida do guri depois disso, mas ele não teve uma vida muito longa. Começou a organizar o povo a resistir à opressão romana não com armas, mas com paz e amor. Ele mesmo não aguentava e às vezes fazia uns protestos violentos, entrava dando voadeira nas bancas dos vendedores em volta do templo porque achava um desrespeito com os que tinham aquela fé.  Era subversivo, ele dizia que todo mundo deveria se tratar como irmãos (fraternidade), amar uns aos outros e sugeria aos ricos que vendessem tudo que tinham para dar para os pobres, uma forma de dividir as riquezas, dividir o alimento, dividir o pão. Foi, obviamente, o primeiro comunista solidário e altruísta, o exato contrário de um individualista competitivo e egoísta. Ele defendia e ajudava ladrões, gays e prostitutas, dizia que era para perdoar sempre porque só poderia julgar quem não tivesse pecado. Ele queria que houvesse uma igualdade entre os seres humanos e que cada um pudesse ser o que quisesse na vida, todos deveriam ter liberdade. Quando ele começou a falar essas coisas, os poderosos ficaram incomodados, mandaram prender o guri (prisioneiro político). Ele foi condenado à morte por dois poderes: político (romanos) e religioso (judeus). Passou um tempo até que as fichas começaram a cair para quem tinha conversado com ele antes de sua páscoa (passagem). Hoje em dia, mais de dois mil anos após sua morte, suas palavras ainda reverberam. 

Algumas pessoas que leram essa coletânea de livros, que contam muitas histórias além dessa do nascimento do pobre negrinho, entenderam que a mais tradicional família cristã era a daquele menino negro de Nazaré na Palestina; de pai adotivo, pobre, refugiado, exilado político, subversivo, bastardo, que foi parido num coxo dum estábulo de beira de estrada, que dizem que nasceu dia 25 de dezembro; e entenderam também o que ele quis dizer. Algumas pessoas entenderam o que significa o Natal, outras preferem nem ler, muito menos entender. Ele nunca pretendeu criar uma religião, ao contrário, ele deixou o judaísmo e disse que bastava lembrar o que dizia em todas as refeições: tem que dividir o pão e amar uns aos outros. Mas teve gente que não entendeu e acha que ele disse para criar uma religião, construir templos e se reunir todos os finais de semana vestindo suas roupas mais caras para adorá-lo. Na política foi onde sua filosofia teve mais penetração, todas as repúblicas modernas têm suas orientações como guia: liberdade, igualdade, fraternidade e laicidade. Acho que li o suficiente daquele livrão antigo para entender algumas coisinhas. 

Procurei na internet uma imagem que representasse bem o presépio como foi, não como as pessoas que não leram acham que foi, ou se leram não entenderam o que está escrito. Quase encontrei, mas a imagem é de pessoas brancas… Achei também com negros, de igrejas cristãs na África, mas era aquela cena tradicional fofinha, não gostei. Acho pertinente fazer como o menino Jesus fez com os rabinos no templo, chamar a atenção de quem segue uma religião que geralmente o que está escrito não é o que as pessoas estão fazendo. Os meninos que nascem hoje em condições semelhantes a Jesus, e temos crianças assim na escola onde dou aulas, são induzidos a querer ser como o opressor romano, guerreiro, conquistador. Se a educação não for libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor, já dizia Paulo Freire. Lutam para ser Neymar ou Vini Jr.! Eles não leram ou se leram não entenderam o que está escrito naquele livro antigo. São individualistas, egoístas e competitivos. Felizmente, algumas pessoas leram e entenderam. 

O Natal deveria ser um momento de relembrar e refletir profundamente sobre o que aquele menino negro judeu, falou. Ele não queria a vida sofrida que teve para ninguém, sempre em luta, sempre à beira da morte, com fome e frio. Ao contrário, pregava que um outro mundo era possível, um mundo onde haveria vida, e vida em abundância. Quem entendeu o que ele dizia lutou para que as coisas caminhassem para um mundo de amor, partilha e igualdade, por isso temos democracia, cotas, escola pública, merenda escolar, políticas afirmativas, SUS,... Jesus vibraria com essas coisas. Entre os que leram e entenderam, uns poucos, existem aqueles que lutam por um mundo solidário, cooperativo, fraterno, igualitário, tolerante com o diferente e esses são até perseguidos políticos exatamente por isso, como Jesus foi. Fique atento a eles e os siga, ainda que só pelo instagram.





sábado, 30 de novembro de 2024

 O ato de amor de ser professor

"A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa."

Paulo Freire



Dezembro chegou, eu e qualquer outro professor começamos a avaliar o ano. O que se ensinou? Conseguimos ensinar algo? Ou melhor seria perguntar: o que os alunos aprenderam? Estava eu agora aqui em casa preparando os últimos atos pedagógicos antes das férias e das festas de fim de ano e lembrei dessa música do inglês John Lennon que sempre aparece nessa época (Happy Xmas (war is over)) e me faz pensar. A letra pergunta: o que fizemos? Alguns alunos estão saindo da escola, se formando no ensino fundamental. Será que realmente os ensinamos o fundamental? Será que lembrarão de nós depois de alguns anos? Lennon, quarenta anos após sua morte, pelo menos eu, sigo lembrando. Dois mil anos depois ainda lembramos também daquele militante do amor e da partilha, aquele judeu palestino, descendente de negros africanos fugidos da escravidão no Egito. Até mesmo o ateu Lennon lembrou e o homenageou com uma reflexão natalina em forma de canção. O cristão Lula terminou o ano emocionado, chorando de amor e compaixão pelos despossuídos, podendo dizer que terminou o ano fazendo alguma coisa para os próximos: lançou um programa para construção de banheiros e outro para urbanização de favelas como fez Olívio Dutra, há mais de 30 anos, em Porto Alegre. Eu, quando chega essa época, encontro alento pensando que dei aulas. O trabalho é de formiguinha, invisível, mal remunerado, mas às vezes a gente ganha uma homenagem também, não exatamente como fez Lennon ao lembrar Jesus, nem ganho uma plaquinha de metal numa caixinha de veludo ou mesmo um busto em bronze na praça, mas minúsculas homenagens em efêmeros papeis. Essa semana apliquei provas e mandei que escrevessem o que aprenderam na Educação Física durante o ano. Como Lula, me emociono, porque agradecem por escrito o que ensinei, coisas que não sabiam, coisas que a mídia omite, claro. Muitos citaram as aulas sobre a cultura africana de cooperação, amor e cuidado Ubuntu, muito mais cristã que a cultura da guerra e da eliminação que os esportes pregam. Outros lembraram a exclusão das mulheres ao longo da história dos Jogos Olímpicos, ou a ainda presente segregação dos deficientes nos eventos esportivos. Alguns se flagram do sexismo dos organizadores dos Jogos que exigem que as mulheres vistam maiôs ou biquínis para competir enquanto os homens cobrem nádegas e coxas com longas bermudas. Muitos perceberam que as drogas onipresentes em todas as competições olímpicas e mesmo nos jogos escolares de Osório são porque a sociedade adoece os indivíduos, os levando a acreditar que somente se derrotarem os outros serão alguém na vida. Essa música de Lennon é de 71, logo em seguida, em 79, o Pink Floyd, outros ateus ingleses (cidadãos do império opressor bretão), fizeram todo um disco refletindo sobre os professores e as escolas e também se perguntando: o que a gente fez? A escola está na base de tudo. O que devemos ensinar para as crianças? Paulo Freire disse certa feita que não há nada que seja mais revolucionário do que ensinar a pensar. Noutra ocasião ensinou como um professor chega a vida eterna: “O educador se eterniza em cada ser que educa”. Estou com a consciência tranquila, eu consigo responder a pergunta de Lennon e de Roger Waters. Ensino a pensar, ler o cotidiano de maneira crítica. Eu também estou construindo o reino que Deus quer, de amor, cuidado e solidariedade, assim como Jesus ensinou a fazer, Freire instigou a fazer e Lennon e Waters nos questionam se fizemos. Amar, não competir.