sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Reflexões Hospitalares
Apaguei a luz e me ajeitei no leito para dormir. Olhei para noite urbana iluminada da Ipiranga lá embaixo, um carro passa espiando as esquinas. A chuva cai com toda calma do mundo e respinga os vidros pacientemente. Ouço a porta abrir devagar e vejo Miguelina:
- Oi, Miguelina.
Ela me vê com os olhos estatelados para ela, apesar de ser uma da madruga.
- Ah, eu só passei para ver se estava tudo bem contigo.
- Tô bem, obrigado!
Ela fecha novamente a porta e fico só no escuro com meus pensamentos. O quarto é enorme, de três leitos, mas está quase vazio: Um paciente teve alta e outro foi fazer um "procedimento". Só ficou eu a admirar o teto e os cantos das cortinas na penunbra. Depois da agitação do dia, de vários exames, duas noites seguidas na UTI com as luzes ligadas e os gemidos de dor, agulhadas por todos os lados, oxigênio e aparelhos monitorando minhas funções vitais, fico finalmente em paz, livre para devaneios. Que sorte tive que minha irmã Verônica e meu cunhado Flávio estavam perto com seu carro e ouviram meu pedido de socorro. Que azar que tive de sofrer uma complicação pós-operatória tardia, mais de vinte dias depois da cirurgia. Que sorte tive de estar em Porto Alegre, próximo a bons hospitais e com parentes de férias. Que azar que tive de não perceber que aquelas dorzinhas na sexta iam se amplificar em tal magnitude. Uma pessoa religiosa se deliciaria tentando encontrar mensagens cifradas: É deus! Não era hora!
Os pensamentos começam a fluir lentos, mas em grande volume. A notícia da morte do líder da banda de punkrock Cascavelettes, minha preferida na adolescência, me tocou. Ele tinha a minha idade e frequentava uma escola próxima a minha no segundo grau. Chegou a hora de nossa geração passar o bastão às seguintes? Faço a contabilidade das mortes recentes: Primeiro foi o Eduardo Schaan, de câncer, aos 37 anos. Depois Felipão, do coração, aos 40. A única prevista e esperada com resignação foi da Bebel, aos 74, de alzheimer. A mais recente ainda estava doendo, Tio Luiz, aos 63, também do coração. Dois ateus e dois cristãos. Todos meus grandes amigos já morreram. Eu sobrevivi a todos e agora a isso! Mas até quando? Todo mundo morre, não é de se espantar, é só mais um momento da vida. A morte do indivíduo, a parte, faz bem para a sobrevivência da espécie, o todo.
Não tenho sono, talvez sejam os medicamentos que antes me faziam dormir, agora me deixam alerta. Abro mais a torneira do fluxo de pensamentos que agora jorram madrugada a dentro! Me passa na frente dos olhos vários rostos, momentos, objetos, conceitos, sonhos, lugares. Não sei porque emergem poética, estética, dialética, ética. O que é ética? A resposta atual seria algo como: a ciência que estuda o que é moralmente virtuoso. Mas, quando foi inventada, a palavra tinha outro significado. Na Grécia antiga, ética era uma vida bem vivida, em alinhamento com a perfeição e harmonia cósmica. Curioso, não é? Até o significado das palavras mudam ao longo do tempo. Faço uma escrupulosa avaliação mental da minha vida até aqui para responder a pergunta filosófica grega fundamental: Minha vida valeu a pena? Será que minha existência foi ética no sentido original? Por muito pouco não morri, mas se tivesse morrido sábado? Já tinha construído minha trajetória como um exemplo de estética ou poética? Vivi de forma virtuosa? No senso comum, para se ter uma vida bem vivida basta escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore. Sim, eu tive um filho para perpetuar os meus genes, mas não o criei. Plantei várias árvores, para perpetuar o meio ambiente, mas também não as cuidei ou as vi crescer. Escrevi já vários textos, se juntá-los por assuntos já teria vários livros escritos, mas nunca os publiquei para perpetuar a cultura ou tentar modificá-la.
Uma moto barulhenta passa lá embaixo na avenida vazia, Renato Russo me vem a mente com sua música urbana: não há mentiras nem verdades aqui. O mundo, indiferente aos meus esforços mentais, segue girando igual. A equação: Mundo +/- eu = mundo, é implacável. A Miguelina trabalha, alguns fazem procedimentos cirurgícos, muitos dormem, outros morrem. Assisto um filme filosófico no vazio silencioso e fracamente iluminado pela cidade no teto do quarto. Já viajei para muitos países, já aprendi muitas línguas, já convivi com muitas religiões, já trabalhei em muitos ofícios, já habitei em diferentes culturas. Já tive algumas paixões, muitos amores, fiz muito sexo, dei muitas alegrias, fiz algumas mulheres chorarem. O que falta fazer ainda? Falta algo? Já estou pronto para sumir, me transformar em coco de bactéria, destino comum a todos os seres orgânicos do planeta? Ou estou pronto para oferecer a humanidade uma grande obra, como poucos conseguiram? Tenho ainda alguma ambição ou já chega?
Sei que além da Miguelina, tem uma multidão trabalhando àquelas horas no Ernesto. Lembrei do tempo que trabalhei em Esteio, virando turno de madrugada, regulando injetoras de plástico que faziam potinhos para pessoas que eu nunca veria. Nossa, cada coisa que já vivi! Começo a lembrar de mulheres que tive. Como fui feliz com algumas. Penso naquelas que não tive e como as desejei.
Até aqui estava tranquilo, com os olhos abertos mas mirando o nada dos cantos. Mas com as gurias, me emocionei. Da neblina da memória aparece um papelzinho amarelado, escrito à mão, que minha irmã Betânia mantinha num painel de cortiça, ao lado de fotos, no seu quarto. Era um trecho de um livro de Caio Fernando de Abreu:
"Seria sem sentido chorar, então chorei, enquanto a chuva caia lá fora, porque estava tão sozinho que o melhor a fazer era qualquer coisa sem sentido."
Vivo só, fico bem só, nunca me sinto solitário. Ermitão, nunca escuto música nem tenho "muletas metafísicas" como um deus ou esperança no paraíso. Não busco o sentido da vida, até porque não tem sentido nenhum mesmo, nem luto por uma sociedade sem classes. Ser um cidadão solteiro não me incomoda, mas talvez seja exatamente isso que ainda falta. Acho que talvez minha vida valha mais a pena se eu conseguir alguém para amar. Uma parceria para dividir idéias, sonhos, planos, para envelhecer junto. Já que sobrevivi, talvez possa usar o tempo que me resta de ser vivo para formar um par. Minha vida valeu a pena, mas, agora que tive esse prolongamento, porque não ampliar minha ética? Acho que vou mirar nisso agora!
Fecho os olhos e durmo, feliz com as reflexões e reanimado. Pouco antes das seis horas, o dia clariando, Miguelina entra no quarto e alegremente exclama:
- Bom dia! Nós temos que fazer duas injeções de anti-coagulante!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Mundo redondo
Assim que me formei Técnico em Mecânica no Parobezão, dei a largada para uma viagem que sonhava desde piá: Eu iria conhecer o mundo sem dia para voltar. Falei com meu pai se ele me ajuaria na empreitada, mas não, ele discordava do momento, achava que eu deveria terminar a faculdade de Engenharia Mecânica primeiro. Bueno, eu tinha vinte anos e ainda faltava uns quatro para terminar o curso, aquilo para mim era uma eternidade. Mesmo argumentando que eu só iria trancar por dois anos a matrícula, não colou, então tive que partir para a produção do dinheiro eu mesmo. Como agora eu tinha um diploma, saí a cata de emprego e logo consegui, ganhava 3 salários mínimos. Naquela época, um salário mínimo eram o equivalente a 35 dólares, hoje isso equivaleria a algo como 140 reais. Parece absurdo, mas era assim mesmo, a pobreza grassava no país. Um senador do PT, Paulo Paim, tinha uma luta que varou décadas: que o salário mínimo fosse pelo menos 100 dólares, algo como 400 reais atualmente. Era taxado de maluco! Bueno, com meu diplominha de técnico, eu pulei vários degraus na competição do mercado e era remunerado igual a alguns mecânicos velhos nas fábricas, com muita experência, apesar de eu não conhecer nada de manutenção. Fiquei uns tempos ganhando 3 salários e trabalhando longe de casa, tinha que levantar às 3:15 da madrugada para chegar em esteio às 6:00. Felizmente,consegui outro emprego em poucos meses, bem mais perto de casa e ganhando o dobro, quase seis salários, foi a glória. Eu levantava às 7:00 e andava de bicicleta 1,5km para pegar as 8:00 da manhã, era ótimo. Quase todo meu salário eu guardava integralmente, ainda morava com meus pais e não tinha plano nenhum de comprar carro ou moto, queria viajar. Meus companheiros de trabalho eram muito ignorantes em termos acadêmicos, mas muito sábios em termos mecânicos. Apesar de rirem muito da minha ignorânica até para como bater o ponto, aceitavam sem reclamar que meu salário era até maior que o deles. Reconheciam meu diploma como algo especial, era raro alguém ter qualquer formação naqueles tempos. A maioria da peonada das fábricas que trabalhei, tinha um histórico escolar até o meio do primeiro grau e começaram a trabalhar com 12, 13 ou 14 anos. Eu, que só precisei começar a trabalhar depois dos 18 e terminei todo o segudo grau, era considerado um almofadinha. Nos momentos de ócio depois do almoço, ficávamos numa roda a sombra das árvores conversando, eles tinham muita curiosidade sobre minha vida e admiravam meus conhecimentos. Eles não sabiam, mas eu admirava o conhecimento deles. Ficava bem quieto fazendo o meu trabalho, da melhor forma que podia, mas para mim, tudo na prática era novidade, até mesmo coisa simples, como o tamanho das chaves de boca. Eu havia aprendido na salas de aulas tudo em milímetros, mas no chão de fábrica, era tudo em polegadas. Me pediam uma allen 3/16, eu ficava olhando todas as chaves allen até achar a que tivesse escrito 3/16 no cabo. Nas duas fábricas que trabalhei, as máquinas eram extrusoras ou injetoras de plástico, nenhuma das duas eu havia estudado no colégio. Para mim, acostumado com cães, aquelas máquinas eram ornitoríncos, eu não sabia nem ligar. O único que percebia minha ignorância, era minha dupla de trabalho, um rapaz da minha idade, mas que já era até pai. Como todos, teve uma vida sofrida, um olho furado e se considerava bem sucedido já que tinha aquele bom emprego. Esse guri era paciente comigo, me ensinava tudo que sabia do trabalho com alegria e, ao decidir quem ia fazer o que quando chegávamos na máquina a ser revisada, deixava eu escolher primeiro dizendo: 
-Qualquer prazer me diverte!
Era uma piadinha engraçada, porque nenhuma tarefa era prazerosa. Geralmente, nossa tarefa era de manutenção preventiva, troca de óleo e filtros. Tínhamos que entrar dentro da máquina, tão grande que era, filtrar todo óleo (de quinhentos a mil litros de óleo quente), limpar o tanque por dentro, engraxar rolamentos, trocar os filtros e alguma outra peça que o fabricante determinava que era hora. Ficávamos imundos e ensebados ao final do dia, com óleo e graxa até nos cabelos. Isso tudo no meio de outras máquinas funcionando a todo vapor, então o barulho era sempre ensurdecedor. Nenhuma tarefa era prazerosa! Quando terminássemos, podiámos voltar para o setor de manutenção para guardar as ferramentas, mas geralmente dava para fazer uma máquina pela manhã e outra a tarde. Para evitar que o chefe nos desse outra tarefa, ficávamos embromando na máquina até a hora do almoço ou da saída. Infelizmente, não lembro do nome desse rapaz que trabalhava comigo, o chamávamos por seu apelido de "Caolho". Ele aproveitava esse tempo de embrometion para me perguntar coisas de conhecimentos gerais, tinha uma sede por saber que não pode satisfazer na infância. 
-Mas, quando falam esse negócio de estado... o que é estado? Canoas é do nosso estado? Eu já fui a Canoas! Tá, mas daí o coração bate e funciona como uma bomba de óleo então? E o filtro do corpo, tem filtro o corpo?
O rapaz me olhava embevecido quando percebia que eu sabia as respostas para suas dúvidas simples, eu funcionava para ele como um google. Eu, escutava silenciosa e respeitosamente a pergunta e respondia da melhor forma que podia seus questionamentos e nunca debochei de nenhuma, ainda se me parecesse muito tola. Percebendo isso, ele confiava muito em mim. Tinhámos essa cumplicidade, um não debochava da ignorância do outro e nem revelava para os colegas nos momentos de grupo. Aos poucos, todos do setor de manutenção começaram a me usar como oráculo, meu colega me oferecia como enciclopédia ambulante e grátis. Quando algum ficava meio receoso de ter sua ignorância ridicularizada, perguntava primeiro para meu colega caolho. Ele conduzia o peão até mim e dizia: 
-Pode perguntar, não fica com vergonha. 
Sério, não estou inventando isso ou brincando, acontecia assim mesmo. Eu, com vinte anos, era o doutor sabe tudo na fábrica da Termolar. Numa ocasião, embaixo das árvores depois do almoço, nosso grupo conversava e ria de tudo. Surgiu o assunto, não me pergunte como, de como seria a Terra. Deixei rolar as teorias, surgiram umas quatro ou cinco, então fazia algumas perguntas para reflexão. Cada um apresentou sua proposta de forma da Terra:
-Acho que é meio boleada, daí uma hora acaba! 
-Tá, mas daí, quando acaba, cai para onde? 
-Cai para o inferno!!
-Mas assim o mar ia cair todo lá!
O papo era sério, ninguém mais ria das propostas a reflexão era desafiante. Brotavam outras idéias:
-Não, cara, não é boleada nada, é chata.
-Tá, mas daí, acaba onde?
-Não acaba, tu vai, vai, vai e... vai!!!
Não houve acordo ainda. A infinitude não foi aceita. Pena que eu não anotei na hora, não vou lembrar de todas as teorias que surgiram.
-Não, uma hora acaba, mas não sei onde. Mas acho que não cai para o inferno nada!
-Cai onde, então? Cai no espaço? Onde estão as estrelas?
-Não, as estrelas estão em cima, ninguém cai para cima. 
Esse falou isso já desconfiando de minha sabedoria. Eu perguntei:
-Vai até onde o mundo então? Vai até o Rio de Janeiro? Até Brasília? Qual cidade está na beira do mundo?
Eu tentando manter a fleuma, mas minha serenidade e questionamentos difíceis começaram a soar arrogantes, eles queriam respostas e não perguntas.
-Ah, não sei, mas uma hora acaba. Acho que o cara não cai, acho que dá para fazer a volta e voltar.
Quando se esgotaram as idéias e alguns já se impacientavam comigo, resolvi oferecer minha solução:
-A Terra é redonda, como uma bola, se tu começares a caminhar aqui agora e fores sempre em linha reta para frente, tu dás a volta no planeta e uma hora tu chegas aqui de novo. Tu nunca cais, fica sempre grudado na bola, atraído pela gravidade!
A minha fala causou gostosas gargalhadas e foi imediatamente eleita como a mais idiota de todas!! Não convenci ninguém. Várias piadas, comentários e mais uma saraivada de perguntas fizeram sobre isso:
-A terra é uma bola!!! Deus vai fazer balãozinho com nós!!!
-Ah, tá, daí tu caminha lá embaixo da bola e não cai?
-A bola está em cima do que?
-Se fosse redonda não dava nem para construir uma casa reta!
Até meu fiel companheiro caolho se sentiu autorizado a rir:
-Ah, Tiago, desculpe, mas eu não vou sair daqui caminhando agora e amanhã vou estar te coxando por trás!!!
Esse momento aconteceu há uns 27 anos atrás. Por sorte e por muito trabalho de muita gente, acredito que hoje a escolaridade e o conhecimento estão bem mais democráticos no Brasil e mesmo peões de fábrica teriam como explicar coisas assim. 
Felizmente o mundo é redondo e dá voltas! No fim, consegui viajar, não dei a volta no mundo, nem posso dizer que o conheço, mas eu posso dizer que tentei chegar a beirada para ver se cai.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Dizem, tanto as más quanto as boas línguas, que a mãe do Freud era bonita, jovem, rica, inteligente, com bastante estudo e gostosa. Era uma dondoca da alta sociedade vienense que vivia em festas. Como ela deu antes de casar, a família, conservadora, apavorada com a gravidez da tchanga, a atirou, com 17 anos, mais um saco de dinheiro, para um viúvo do interior, um véio guasca e pobre, duas vezes viúvo, que já tinha muitos outros filhos, chamado Jacob Freud. (Parênteses nada há ver com nada: sabias que Jacob em alemão é Tiago?) O Jacob era véio mas taradão, ele adorou o casamento arranjado, dizem que ele já estava tendo filho com as filhas. Parece que nem seis meses depois de casada ela pariu o Freud que a gente conhece. O Freudinho foi registrado pelo pai três meses depois, para não pegar mal, com o nome de Schlomo Sigismund Freud. Quando cresceu e voltou para Viena, Freud mudou seu nome para Sigmund Freud, acho que envergonhado: Além de ser filho da puta, seu pai era um aproveitador incestuoso e seu tio era um notório falsário! Ah, estas famílias... Toda obra do Freud é influenciada pela sua louca família, os biógrafos são unânimes em afirmar que ele é o maior exemplo, até caricato, de todas suas teorias.
Li um livro, uma vez, indicado e emprestado para mim pela professora de Psicologia das Relações Familiares da minha segunda especialização, que era uma releitura dos escritos de Freud, mas com o olhar feminino. Na sociedade Vienense as mulheres eram mobília ou, no máximo, motivo de desonra. Então, para o filho da puta do Freud, a sexualidade feminina se resumia ao "penis neid": a inveja do pênis. O livro tenta, então, fazer o que ele não fez: examinar a sexualidade feminina. O que mais ficou para mim de tudo que li lá, é a insatisfação feminina com a aparência. Segundo a autora, uma psiquiatra francesa, as crianças ao nascer e ao longo da infância são, geralmente, cuidadas por mulheres. Assim, os meninos têm sua pulsão sexual plenamente satisfeita: uma fêmea massageia toda sua genitália de macho mais de uma vez por dia para limpá-la. Já as meninas, ficam sempre sentindo falta de algo, elas não têm sua pulsão sexual satisfeita: além de ser outra fêmea quem limpa, não limpa toda a genitália, mal passa um paninho por fora. Elas vão crescendo, então, insatisfeitas e, para piorar, elas percebem que o macho presente, que poderia satisfazê-las, o pai, vai para cama com outra, a mãe. As guriezinhas concluem que há algo errado no corpo delas, porque ninguém parece disposto a satisfazê-las. Elas, então, lutam para logo se independizar para buscar a satisfação almejada por suas próprias pernas. As mulheres falam antes, caminham antes, crescem antes e chegam a puberdade e maturidade sexual antes que os homens. Mas estão para sempre desconfiadas que deveriam ser diferentes. Daí aquelas maluquices das mulheres: as peitudas tiram, as despeitadas põem, as de cabelo crespo alisam, as de cabelo liso fazem permanentes, as baixinhas colocam plataformas enormes, as altas usam solas monomoleculares, as morenas pintam de loiro, as loiras fazem mexas escuras, as coxudas fazem lipo e as saracuras põem calças largas, etc.etc.etc. e etc. Insatisfação sim, mas penis neid não! By the way, o livro se chama "Os filhos de Jocasta, a marca da mãe" e o nome da autora é Christiane Olivier.
Fui sempre um caçador de mim, como naquela música do Milton. Sempre senti uma angustia de fundo, sou o único homem dos quatro filhos dos meus pais. Talvez, uma grande responsabilidade pese sobre mim, não sei, maior que a minha capacidade. Fugi para a Europa. Hoje me dou conta, aquilo foi uma fuga. Lá, afastado da opressão, comecei a me dar conta de algumas coisas. Encontrei um pouco de mim. Mas claro, não bastou. Fiz cinco anos de terapia e encontrei outro pouco. Mas claro, não bastou. Li muito e estudei, fiz conjecturas mis, achei um pouquinho mais. Mas claro, isto tudo, não bastou. Quando vim aqui para Floripa foi um alívio, a família estava lá longe. Quando voltava para Porto Alegre, muitas coisas, claro, voltavam também. Padrões de interação e estratégias que trouxeram todo mundo vivo e rico até aqui, ou seja, a família obteve sucesso. O pobretão da família sou eu. Eu falava algumas coisas que percebia agora e era imediatamente repreendido, taxado de louco ou ignorado. Os agentes da minha família pareciam hipnotizados a agir sempre da mesma maneira conforme a situação se apresentava e era exatamente o que eles faziam independente da argumentação utilizada. Eles estão ricos, eu pobre. Neste sistema adaptativo complexo da minha família, estar adaptado ao sistema paga bem, subverter o sistema não paga nada. Ou eu me adaptava ao sistema como ele é, ou eu me candidatava a sair do sistema. Era assim que eu via a família antes de fazer a cadeira de Organizações como sistemas adaptativos complexos.
Passou o tempo e senti necessidade de ler algumas coisas de novo daquele livro da Jocasta. Como tinha lido emprestado da minha professora eu ficava só no desejo. Minha tia Lucia é doutora em psicologia. Pensei que talvez ela tivesse o tal do livro, liguei para ela e realmente, ela o tinha. Combinei de ir buscar no gabinete dela, lá na PUC de Porto Alegre. No novíssimo suntuoso prédio da psicologia, encontrei minha tia, peguei o livro e fui tirar xerox. Na mesma tarde, voltei lá com o xerox para devolver o livro e agradecer. Puxei conversa sobre o livro, apesar de ela parecer atarefada, e comentei como as mulheres parecem hipnotizadas na sua busca por uma aparência diferente, ainda que já sejam bastante atraentes para os homens. Ela disse, desinteressada, sem me olhar: -"É..." Eu prossegui, lembrei que lá em casa também, meus familiares agiam como se estivessem hipnotizados por mais que argumentos contrários àquelas estratégias fossem colocados. Ela, então, me olhou e decretou para fim de conversa: -"É inconsciente." Sai com o rabo entre as pernas. Ah, tá, agora está claro, é inconsciente. Sendo inconsciente tu moras e trabalhas em prédios suntuosos e é reconhecido e chamado de doutor. Sendo consciente tu és um pé rapado, ribeirinho ao sistema!
Dia destes fui à Livraria Catarinense, ali da Felipe Schimdt, gosto de estar atento a novos lançamentos. Não que eu vá comprar qualquer coisa, mas sempre dou uma folheada para pescar alguma coisa legal. Desta vez achei um livro do Feynman, o título é: "O senhor está brincando, Sr. Feynman?". Como eu já tinha lido um livro dele (Seis lições fáceis), e achado bem bom, acessível e engraçado, abri e li alguns trechos. Parece que o nome dele é Richard Feynman, não tenho certeza, mas ele é um famoso físico teórico. Talvez tu já saibas quem é, dizem até que ele é mais importante que o Einstein, ou tão importante quanto, isto eu também não sei. Mas para mim ele é famoso porque descreve questões teóricas difíceis da física de uma maneira compreensível para o leigo, ou seja, eu. Para mim, quem faz isto é uma pessoa inteligente. Bueno, tava eu lá na Catarinense, então, sentado num pufi, roubando umas lidinhas grátis do livro do Feynman. Lá pelas tantas, ele conta um causo de uma vez que se deixou hipnotizar numa demonstração que houve na universidade que trabalhava. Ele diz que todo tempo pensava que podia não obedecer às ordens do hipnotizador, mas que obedecia só para não estragar a brincadeira. Fecha os olhos, levanta a mão esquerda, abana para o público, etc. No fim, o hipnotizador manda o Feynman voltar ao seu lugar, mas não diretamente e sim dando a volta por todo auditório. Ele pensou: "Ah, vai tomar banho, vou para o meu lugar direto, já enchi desta brincadeira". Começou a se sentir muito mal e deu a volta em todo auditório! Então ele conclui que dizer que se pode fazer tal coisa mas só não se faz por tal outra é a mesma coisa que dizer que não se pode fazer. Li isto, fechei o livro assustado, o guardei e fugi da loja.
Estou fazendo outro curso técnico no CEFET. Sim, à noite, grátis, aqui ao lado de casa, sabe como é. É um curso que acho me ajudará nesta empreitada do mestrado. Sistemas da informação. Ensina tudo sobre computadores, sistemas operacionais, programas, redes, internet e até ensina como fazer programas! Neste curso me dei conta que inconsciente é um computador, quando tu programas de um jeito não tem a menor possibilidade de ele agir de outra forma! E tu sabias que os computadores foram desenhados para imitar o design humano? Sim, é verdade. Deve ser o tal do design inteligente dos conservadores americanos! Tu já percebeste que nos locais mais ricos do mundo existe um grande computador no meio, gerenciando tudo? Bancos, receita federal, governo e até universidades. O negócio é perpetuar o sistema, quanto menos erros, melhor. Quanto mais inconsciente, melhor. Para mim é tudo uma sujeirada.
No Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra, o MST, tem uma escola, uma cartilha, que é para ensinar novos membros do movimento o arcabouço teórico que o sustenta. Lá eles pregam que existem três tipos de consciência: a alienada, que é ignorante do problema, a consciente, que sabe do problema mas não vê motivo para se mexer, e a mobilizadora, que não só sabe do problema mas luta para resolvê-lo. Então eles reprogramam as pessoas pela cartilha do MST. As pessoas têm que passar a agir de uma maneira completamente diferente do que sempre ouviram que era certo. Os críticos chamam isto de lavagem cerebral. Eu acho que é bom, fica tudo bem limpinho. A respeito da minha família eu, por muito tempo ignorava o problema, achava que a vida era assim mesmo, ruim. Depois da viagem a Europa eu passei a perceber que existia um problema, mas achava que o problema era eu e não tinha como mudar. E, finalmente, depois dessa cadeira das Organizações como sistemas complexos, acho que me tornei um agente mobilizador, capaz de modificar o sistema aplicando uma estratégia inovadora e modificando os padrões de interação. Essa cadeira fez uma lavagem cerebral em mim, ficou tudo limpinho.
Hipnotizado, programado ou inconsciente é tudo a mesma coisa, um artifício da evolução para aumentar as chances de se perpetuar a vida. Acho que a evolução fez o cérebro hipnotizável, programável mesmo, para o bem da espécie, não do indivíduo. O indivíduo deve ser um autômato que obedece aos genes e memes do Dawkins. Os genes e os memes têm uma programação rígida que passam de geração para geração com pouquíssimos erros. O indivíduo deve passar despercebido pela existência, não contestar nada. A espécie é que deve se perpetuar. Podes ver que a grande maioria dos indivíduos humanos passa pela existência completamente despercebidos. Os que são lembrados são os contestadores, uma minoria que obviamente tem um problema na cabeça. É um freak, um marginal do MST. Como qualquer ser humano eu fui hipnotizado ao longo da vida para fazer a volta em torno de todo auditório. E faço isto sempre, sem nem perceber, ainda que ao observador externo isto pareça uma bobagem desnecessária. Quando ouso agir de maneira contrária ao modo como fui inconscientemente programado, me sinto muito mal. Como o Feynman que, mesmo sendo tão brilhante, se rendeu a um hipnotizador de auditório. Como qualquer mortal. Como o Freud, que não vê as mulheres e até muda de nome para se adaptar ao sistema. Como todas as mulheres, que mesmo sendo atraentes não estão satisfeitas com sua aparência.
Mas isto está mudando (acho). Não me rendo! Mas não é assim de um dia para o outro que eu vou parar de me boicotar. Não é um processo muito simples. A cadeira lavou tudo, eu sei, mas ainda estou secando. Estou tentando ser um freak, mas não está fácil. Tenho certeza que todo integrante do MST se pergunta a todo o momento, será? Pelo menos agora já me percebo um agente capaz de mudar a estratégia, de agir de maneira diferente, de criar padrões de interação. Eu já estou na fase mobilizadora da consciência e isto para mim já é um grande avanço.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Quando eu andava de bicicleta e tinha a oficina muita gente me perguntava sobre o assunto. Eram perguntas que demandavam respostas enormes e a maioria não queria demora. Queriam o fast food do conhecimento, respostas curtas. As mais comuns eram qual bicicleta deveriam comprar ou quanto tempo demorariam para ir pedalando de A para B. Algumas eram muito estúpidas e eu conseguia responder rapidamente:
Qual a melhor bicicleta do mundo?
É aquela que tu andas!!!
Para alguns poucos interlocutores que tinham capacidade para entender eu me esmerava nas respostas:
Quanta quilometragem o cara consegue fazer normalmente com uma bicicleta? Quanto tempo eu demoraria de Pelotas a Rio Grande?
Se tu precisas de respostas rápidas, elas são: não sei. Se tiveres paciência para ler as respostas completas, te mando um email.
Daí eu respondia com algo assim:
Tua pergunta é difícil. Devido à complexidade da resposta e para não te induzir ao erro, prefiro escrever. Claro, também é um assunto que me faz lembrar muita coisa legal, então vou me dar o direito de enrolar um pouquinho para responder bem.
Atualmente, quase ninguém sabe que eu já viajei de bicicleta em priscas eras. Faz muito tempo a última vez que alguém me perguntou algo sobre viagens de bicicleta. Se não é tu falar, eu já ia esquecer também! Foi legal tu me fazeres lembrar sobre aqueles tempos.
Nunca fiz a viagem Rio Grande-Pelotas, nem Pelotas-Rio Grande. Fiz duas vezes trajeto parecido, as duas naquela vez que dei uma volta pelo Rio Grande do Sul e passei no Cassino. Uma vez sai de Pinheiro Machado, na estrada que vai para Bagé, e fui até o Cassino. Esta viagem demorou umas oito horas, se não me falha a memória. Na outra vez, sai do Cassino e fui até o Cristal. Esta demorou mais, umas doze horas. Não sei quanto tempo deu do trevo até Pelotas, nem numa nem noutra viagem, trecho que seria uma referência melhor. Mas mesmo se lembrasse, não acho que seria de grande ajuda para ti este número.
Nesta viagem até o Cristal, do Cassino até embaixo da ponte do Rio Camaquã onde acampei, meu hodômetro parcial marcou 177km. Este foi o maior tirambaço que eu fiz em um dia, lembro bem porque no outro dia eu fiz exatamente mais 177km até a casa da mãe, lá na Tristeza, em mais doze horas. Este foi o máximo que meu corpo, treinado e com 22 anos de idade fez: 354km em dois dias. Lá na Europa, passei um mês inteiro viajando todos os dias. Eu já olhava o mapa calculando o próximo camping numa distância que desse para fazer num dia de pedalada. O meu "normal", viajando todos os dias, era uns 120km por dia numas oito horas, a média era esta. Teve dias que fiz 70km e outros 150km.
Podem-se fazer algumas conjecturas a partir destes números. Se eu fiz, duas vezes seguidas, 177km em doze horas, alguém pode achar que viajar de bici significa andar a quase 15km por hora. Assim, se Pelotas tem uns 65 km de Rio Grande, a viagem de bici entre as duas cidades daria em torno de 4 horas e 20 minutos. Pode até dar, mas seria muita coincidência.
O leigo sempre anseia por uma informação precisa ou, pelo menos, alguma idéia guia. A pergunta que eu mais ouvi quando trabalhava na oficina foi: qual a melhor bicicleta que existe? Depende... Para quem é a bici? Para que ela vai ser usada? A melhor bicicleta do mundo é aquela que é usada. Esta resposta era frustrante para eles. Talvez também te frustres agora com as minhas respostas. Viajar de bicicleta não é como viajar de carro. O tempo de viagem depende de uma série de fatores, não é só a variável distância que o determina. São fatores relacionados ao relevo, temperatura, umidade do ar, direção e intensidade do vento, pressão atmosférica, condições da bicicleta e dos pneus, carga transportada, se quem viaja está sozinho ou acompanhado, experiência do ciclista e, claro, principalmente, o estado do corpo/mente do ciclista.
Antônio Damásio, no seu livro o Erro de Descartes, fala uma coisa que qualquer ciclista ou maratonista já intuiu em algum momento da vida. O corpo é a mente e a mente é o corpo. É uma coisa só, indissociável. Tudo que se pensa é produto do estado do corpo em relação ao meio ambiente em que se encontra e relacionando cada e todo instante com TODA sua vida pregressa. No contexto desta carta que te escrevo hoje, isto significa que não se pode dizer quanto um cara consegue fazer normalmente com uma bicicleta. Varia muito, de cinco a sessenta quilômetros por hora. Um mililitro a menos de água no corpo, algum rangido na bicicleta ou uma brisa de frente e o teu cérebro pode te mandar uma mensagem de desânimo, tristeza, desesperança, muitas memórias ruins, nenhum lugar vai te parecer bonito, tu vais lutar para manter a bicicleta andando. Todos os teus pensamentos vão ser sobre como acabar com aquele sofrimento, tu vais te perguntar repetida e insistentemente: quem é que teve esta idéia estúpida de andar de bicicleta hoje? Por outro lado, um milímetro de mercúrio a menos na pressão atmosférica ou a mais nos pneus, uma raspa de banana sobrando no fígado, a sombra de uma árvore a beira do caminho e o teu cérebro pode te premiar com muito ânimo, alegria, esperança, planos para o futuro. Tu te sentes tão bem que pedalas mais forte e a paisagem te parece maravilhosa, ainda que seja um lugar que tu já viste dezenas de vezes antes.
Durante uma viagem de bicicleta tu vais passear da entusiasmada euforia à depressão profunda no mesmo dia, às vezes na mesma hora. Se a viagem tiver mais de um dia tu terás dias bons e dias ruins. E se durar semanas, terás semanas boas e semanas ruins. Andar de bicicleta ou ficar na posição de lótus, correr, nadar, caminhar, enfim, fazer atividade física SOZINHO por um longo tempo, obriga o teu cérebro a meditar. A respiração, a circulação, a digestão, todo teu corpo se adapta a nova exigência. O corpo passa a gerir com muito cuidado os recursos energéticos disponíveis. Nada pode ser desperdiçado e o supérfluo tem de ser descartado. O que ocorre é que passas a pensar coisas que de outra forma (inativo num meio ambiente com recursos energéticos abundantes) não pensarias. O mundo passa a ser visto com outros olhos.
Naquele tempo que eu viajava de bici, finalmente respondendo objetivamente as tuas perguntas, acho que eu levaria umas duas horas de Pelotas a Rio Grande, mesmo carregado. Hoje umas três, descarregado, com uma bici boa e vento a favor, claro. É que eu já sou mais velho, bem mais pesado, e bem menos treinado, apesar de ser bem mais experiente. Naquele tempo eu fazia ("normalmente") uns 27km por hora, hoje uns 20, um atleta olímpico faz uns 40 e uma velinha idosa uns 10. Aqui que acho que vais te frustrar com minhas respostas: não interessa o tempo, um tempo bom é aquele que é realmente feito! O gostoso é o processo e não o fim.
Se vais andar de bicicleta, esquece o tempo! Vai e anda. Leva bastante água (gatorade é bom) e frutas e para de hora em hora ou quando tiveres um pensamento ruim.
Em Florianópolis, trabalhei dez anos na Educação Infantil. Era assim que cumprimentava as crianças na creche: E aí amigo/a fulano/a!
Me vi obrigado a desenvolver este método de cumprimento porque às vezes me dava um branco do nome de alguma criança, principalmente se encontrasse com elas na rua, então, para não ficar chato com a mãe da criaturinha, dizia somente: E aí amigo! Assim elas não estranhavam, nem as mães, nem as crianças que depois contavam orgulhosas se exibindo para as outras: - Vi o Tiago na Rua. Aquilo era um status!
Quando chegava numa sala da creche sempre cumprimentava dizendo: Oi pessoal! Os menores me respondiam: Oipessoal! Como se fosse uma palavra só, apesar de eu ser só um a chegar à sala. Na rua, no pátio da creche ou nos corredores, é engraçado, elas me viam e diziam: Oipessoal!
Uma ocasião fui viajar com meu amigo Felipão, que legal foi aquele nosso passeio em Caraguatatuba. Fomos convidados a ajudar a consertar um veleiro enorme, em troca ganharíamos uma velejada no mar. Mas nada deu certo no tal do barco e, quando nós vimos que não iríamos velejar porra nenhuma, nossa vontade de serrar parafusos e lavar o convés zerou instantaneamente! Na primeira tarde de desapontamento, não sabíamos o que fazer, brincamos um pouquinho com um bote inflável que tinha por ali, redemunhamos na sombra das árvores outro pouco, tiramos algumas fotos, finalmente deitamos no teto da cabine do veleiro como lagartos ao sol do final da tarde esperando o tédio passar. Naquele momento mágico de ócio, passou um senhor negro, vagarosamente, em pé numa canoa de um pau só levada pela correnteza daquele córrego em que estávamos presos. Ele ia só cutucando o fundo, lá de vez em quando, com uma longa taquara para dirigir a embarcação. O cara não tinha a menor intenção de acelerar aquela descida ao mar. Depois que a canoa contornou a curva do riacho e sumiu da nossa vista, meu amigo Felipão, sem levantar a cabeça acomodada ao pé do mastro, me perguntou:
- Viu a canoa?
Depois de algum tempo, eu respondi:
- Vi... ... ... Legal né?
Ele esperou um pouquinho para dizer também:
- É...
Nosso papo era ao ritmo da canoa: Intenso! Vertiginoso! Passado mais alguns momentos, ele enunciou a frase que se tornaria célebre, talvez só comparável à teoria da relatividade geral de 1905 para o engrandecimento do conhecimento da humanidade:
- Tiago, se a gente ficar muito tempo aqui nesta vida ribeirinha, nós vamos acabar virando um ribeirinho!
Minha vida, depois daquele momento, asseguro, nunca mais foi a mesma. Futuramente vou aparecer nos livros de filosofia assim como Gláucon ou Aristófanes, aqueles caras que Platão e Sócrates conversavam nos seus diálogos, eles só, ou não entendiam e pediam mais explicações, ou concordavam. Eles pareciam o Robin, do Batman:
- Santa obviedade, como não tinha me dado conta disto ainda!
Minhas falas nos "Diálogos com Felipão" serão sempre algo como:
- Por Zeus, é verdade!
Eu então, se ficar muito tempo trabalhando só com mulheres nas creches e escolas nas quais trabalho, vou acabar virando uma mulher! Em parte é bom, elas tem qualidades maravilhosas. Não, não tô falando só de peito e bunda. Se fosse mulher eu seria lésbica, eu acho, e ia passar o dia mexendo nas minhas tetas. Tô falando de outras qualidades que admiro, que eu não tenho. Atenção a muitos estímulos ao mesmo tempo, por exemplo. Minha irmã Verônica fica sentada no sofá tricotando, falando ao telefone segurado pelo ombro, assistindo televisão, e ainda me dando ordens com os olhos. Ela não errava nem um ponto, não perdia uma cena da novela, entendia todas as fofocas ao telefone e ainda me convencia a obedecer a ordem ocular. Eu só consigo falar ao telefone. Se alguém entrar na sala que estou falando ao telefone, já não me concentro na conversa, fico lento. Acho que meu barramento é pequeno demais na minha placa mãe: o processador não consegue trocar muita coisa com a memória RAM. E, se esta pessoa que entrou na sala, me perguntar alguma coisa, aí sim que tranca meu "brain windows". Eu começo a repetir ããã... ããã... ããã... e não respondo mais nem a pessoa, nem ao telefone. Para destrancar, tenho que fechar um dos aplicativos em uso: ou a pessoa desiste e sai da sala ou eu desisto e desligo o telefone. É por isto que só tem mulher em creche e homem em obra. Os homens são maiores e mais fortes que as mulheres, não é machismo, é fato biológico, é genético. Ninguém contrata mulher para obra porque elas iriam produzir um quarto do que um homem produziria no mesmo tempo. Mas, se elas insistirem em trabalhar em obra, o esforço as vai treinando e aos poucos deixando elas mais fortes, até acontece de se equipararem a um homem (pequeno e novato na profissão de obreiro, claro). A diferença é biológica, não tem como negar! E é por isto também que só tem mulher em creche, as mulheres conseguem fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo. Vou te dar um exemplo para te visualizar. Dia destes uma auxiliar de sala faltou e a professora da sala foi à secretaria ver quem iria ficar com as crianças até os pais chegarem. Eu, então, fiquei encarregado de colocar um DVD para as crianças assistirem, já que era cinco da tarde e tanto eu como a professora de sala iríamos embora. Enquanto tentava encaixar os fios certos nos buracos certos atrás da TV e do aparelho de DVD, eu tinha que cuidar para que as vinte crianças não brigassem, não subissem nas minhas costas quando me agachasse, não fugissem pelas quatro janelas ou pelas duas portas da sala, não abrissem as torneiras do banheiro, não levassem embora a capa do DVD corredor afora, não metessem os dedos na tomada, não tirassem novamente os brinquedos da prateleira, não apalpassem o meu saco, não escrevessem a canetinha nas paredes ou nos braços, não recortassem as cortinas ou os cabelos do colega, não esparramassem os legos pelo chão, não enfiassem massinha na fechadura ou na orelha ou ouvido do outro, não pintassem as cadeiras e suas mochilas com tempera e não imitassem seus pais fazendo sexo no chão. E eu tinha que fazer tudo isto sempre coordenando falas didáticas e apertando os botões certos nos aparelhos para encontrar o começo do Vidas de Inseto em português. Se tu gravares trinta segundos e transcreveres só as minhas falas depois, sairia mais ou menos assim:
- Só um pouquinho, Vitor, assim o Tiago não consegue por o vídeo.
- Não Matheus, deixa que o Tiago põe na tomada, ó quei? Tu podes levar um choque.
- Ó, agora todo mundo senta porque vai começar!
- Wallace! Não enfia o dedo no olho da Duda porque dói nela, depois ela vai chorar... Ó, viu? Pede desculpa agora.
- Jéssica, se tu vais comer esta bolacha que tu trouxeste vais ter que dar uma para todo mundo, viu?
- Laurinha, não pega no meu pênis por que o Tiago não quer, tá?
- Vitória Soares, agora não é para sair para o parque, tá bom, tua vovó já deve estar chegando.
- Quer fazer xixi de novo, Gabi, então vai logo no banheiro, se não, depois, tu fazes xixi nas calças e não tem mais roupas limpas para trocar, tu já sujaste no barro hoje a única que trouxeste.
- Põe os carrinhos na prateleira, tá Kauê, agora a gente já guardou os brinquedos.
- Ó, o pai da Emelyn, chegou! Vai pegar tua mochila, Emelyn, não esquece de pegar tua agenda na cesta.
- Olha, as formigas estão com medo!
- Jéssica! Eu já falei para ti: Vamos guardar os lápis agora, nós já acabamos esta atividade, tá bem?
E assim ia, todos os dias. Este esforço incrível que faço, este stress fantástico, tem aumentado minha habilidade de falar e atender a mais de um estímulo tremendamente, mas ainda é um quarto de qualquer mulher de creche. É biológico, não adianta. Mas eu me sinto mais capaz, muito melhor que era, para este tipo de meio ambiente, claro. Tenho que me concentrar muito, mas consigo.
Creche é o melhor lugar para ver o que é biológico, inato, e o que é cultural, aprendido no meio. As crianças muito pequenas ainda não tiveram tempo de acesso ao meio, à cultura. Não se pode alegar que o Pedro, de sete meses, se interessa mais por carrinho porque ele viu mais homens andando de carro, então seria cultural. Além de ele morar sozinho com a mãe, passa a maior parte do tempo dormindo quando vai para casa. Não dá para se dizer que a Maria Eduarda, de cinco anos, é lésbica porque só brincou com meninos na infância. Na sala dela só tem dois meninos e ela insiste, desde pequena, em brincar de lutinha, carrinhos e subir em árvores com só os dois, nem dá bola para as outras 17 meninas da sala e suas conversinhas. Cheguei a conclusão, observando, registrando e pesquisando, que é tudo biológico. TUDO!
Eu estou bem mais tagarela do que era, graças ao convívio com elas, meu treinamento. Mas eu já era bastante tagarela, só estou mais treinado. Um musculoso da falação.
Sabe aquelas mulheres que reclamam do marido porque ele mete o nariz na TV e não ouve mais nada. Elas falam coisas para eles, contam histórias, comentam as compras do super e as roupas da vizinha, fofocam da professora de Inglês, finalmente perguntam algo:
- Tu achas que a gente paga o aparelho nos dentes da Manoela este mês ou espera o décimo?
Diante do silêncio, ou de uma resposta simples como:
- Tá.
Elas percebem que ele não ouviu nada, se desesperam... "Ele não me dá bola, nem me ouve!" Minha namorada me reclamava exatamente isto. Eu explicava: desespero inútil. Eu não posso ser diferente, sou homem, é inato. Nasci assim, não consigo mesmo me esforçando muito, é biológico, é genético. Até o Orangotango come a banana sozinho, longe do grupo, com olhar distante. Prestar atenção àquela algazarra de fêmeas e filhotes exige um esforço que ele não consegue fazer toda hora. E nem deve, se fizesse ameaçaria a vida da prole.
Meu amigo Felipão uma vez passou três meses surfando em Imbé. Quando voltou, liguei para ele e:
"-Calma, Tiago, fala devagar porque neste tempo que fiquei lá meu cérebro virou uma craca!"
O sistema nervoso tem condições de ser uma craca, um ribeirinho, ou um programador na Suíça. Ele vem programado para se adaptar ao meio em que se encontra, mas também para procurar coisinha melhor para aumentar as chances de perpetuar a vida. O que achas disso?
Morar em Porto Alegre tinha um lado bom, admito!! Textículo de 2000:
Fui no Guion Sol, a uns três meses atrás, assistir “Guerra nas Estrelas”. Na entrada, preenchi uma coisa que me mandaram preencher, nem entendi bem para que. Soquei na urna só para me livrar da tarefa que o bilheteiro me atucanou a cumprir. Passou uns tempos, recebo uma carta, escrita a mão. Havia ganho um prêmio nos cinemas Guion na promoção “Fidelidade”, um mês de entradas grátis. Todo mês de outubro. Já vi doze filmes e ainda falta uns dias para acabar o passe livre. Levo sempre uma amiga diferente, para aproveitar o prêmio junto com alguém e para o tiroteio da bicharada do Olaria não ser tão escandaloso. Teve uma vez que voltei ao Guion Sol para ver o “13º andar”. Imitação barata do Matrix, mas ok anyway. Liguei para umas gurias que ainda não tinham ido, nenhuma podia ir. Uma tinha plantão no hospital, a outra dava aula de manhã cedo... Fui sozinho mesmo. Daí a coisa mais bizarra aconteceu. O filme estava estreando, mas ninguém apareceu para assistir, só eu. E sem pagar, ainda por cima. Sentei bem no meinho daquele belo cinema, o lanterninha fechou as cortinas e me desejou um bom filme. A sessão foi ótima, muita qualidade em tudo. Solitária, é verdade, mas ótima. No fim, todas as luzes se ascenderam e o cara me disse: “-Obrigado por ter vindo e volte sempre”. Não é para o cara ficar fiel mesmo?
Em outra ocasião, fui a pré estréia do “Alice e Martin”. Bom. Mas, ao mesmo tempo, ruim que dói. Aliás, como a maioria dos filmes do Guion. São bons, mas muito intelectualizados, todo mundo sai meio deprê do negócio. Os Americanos tem isso de bom, sempre fazem com que no final tu saias bem contentinho do cinema. Eu prefiro, embora admita a necessidade de as vezes ter que ver um dramalhão Francês só para cair na realidade de novo.
Ontem fui assistir ao que acredito será meu último filme de graça na promoção do Guion. O “Fight Club”, com o Brad Pitt, é bem violento, como o nome sugere. Sai me sentindo mal e desesperançado em relação a humanidade, aqueles filmes de arrasar. O filme era bom, mas horrível ao mesmo tempo, como sempre. Só depois, refletindo melhor em casa, percebi o sentido do filme. Sim, porque entre socos e pontapés ficava um pouco difícil de se prestar a atenção na mensagem subliminar. É uma crítica ao consumismo, ao capitalismo. O cara tem tudo, não tem mais nada que precise. Se dá conta que se não consumir mais, o dinheiro que ganha não tem sentido. Assim seu trabalho perde o sentido também, sua vida perde o sentido. Ele então percebe que na verdade não possuía nada, as coisas é que lhe possuíam. Ele trabalhava para comprar as coisas, trabalhava para elas. O cara começa a enlouquecer, se flagra que todos os indivíduos do mundo capitalista tem a mesma profissão: consumidor. Trabalhamos para comprar coisas que, no fundo (muitas vezes até no raso), não precisamos. Me lembrou a velha história dos automóveis que eu tanto martelo.
Arqueologia textícular bombando!
Quando estava morando na França, na pequena cidade de Arpajon, perto de Paris, trabalhei num albergue onde também trabalhavam vários Franceses. Dois deles eram corredores e treinavam todos os dias no verão. Mesmo assim, eles só tomavam dois banhos por semana. Eu gozava da cara deles, sempre os chamava de cochon. Eles riam e diziam que se o cara chegasse e logo secasse o suor não ficava cheiro nenhum. Eles eram legais, sempre me ajudavam com o que podiam, até comida me davam. Um me deu um par de botas de trekking usadas, outro me deu uma barraca velha. Ainda hoje, quando preciso destes equipamentos, eu tenho as botas do Régis e a barraca do Laurent (se lê Rêgisss e Lôrron) que são muito bons e ainda duram, apesar de eles terem me dado porque achavam velhas e ruins as duas coisas. O Régis eu nunca mais vi depois que parti, mas o Laurent parou dez dias aqui em casa há uns anos atrás. Ele ia correndo (literalmente) de Buenos Aires até Brasília, onde tinha casado com uma Brasileira. Levava uma mochilinha bem pequena, com apenas três quilos de roupas, e fazia setenta quilômetros por dia. Depois eu fui lá, de ônibus, que é mais rápido, para visitar a família que já estava se formando na barriga da mulher dele. Lá ele tinha um quarto da casa (casa que ele mesmo tinha construído!) só para os troféus recebidos aqui no Brasil de corridas que ele tinha participado, foi lá que eu dormi. Quase tive um ataque na São Silvestre deste ano, porque até o quilômetro cinco ele estava no meio do pelotão da frente e aparecia a toda hora. Eu gritava: –VAI LORRÃ! Mas não adiantou, ele não ficou entre os cinco melhores.

Ainda frutos da arqueologia textícular, esse de 1999:
Hoje fui andar de bici com uma gurizada nova que orbita aqui pela rua. Eram três, entre dezoito e dezenove anos. Um deles era o Dani, meu ex funcionário da oficina, ele está servindo a marinha lá em Rio Grande, saiu de folga no feriadão. Fomos até o morro São Pedro, atrás da Restinga. Lá tem a subida mais íngreme da cidade. Antes de começar a subir, paramos numa banca de frutas na beira da estrada, 50 centavos o copo de um suco de laranja puro e bem gelado, baratíssimo. Delícia refrigerante para nossos corpos ardentes. Tomamos dois cada um. A estradinha é asfaltada, tem um asfalto todo roto, feito a mão. Acho que se não tivesse o tal do asfaltinho vagabundo nenhum veículo seria capaz de subir. Sobe todo o morro em linha reta, coisa de português, decerto, mas que neste caso a estupidez no passado faz a alegria dos ciclistas de montanha no presente. O morrão tem uns 250 metros de altura. O subidão é tão íngreme que a bicicleta empina a cada pedalada e, apesar de não ser muito longo, parece não terminar mais. É de matar o velho. A gurizada, cheia de saúde e com bicicletas boas, em pleno gozo do pico de suas capacidades físicas, começou a subir feito louca. Eu, que a muito já troquei o fôlego pela experiência, fui bem lento, sentado e girando na marchinha mais leve. Via eles de longe, já indo lá em cima. Aos poucos fui me aproximando, no mesmo ritmo constante e paciente. Lá pelo meio da subida passei o primeiro, ele parecia estar com o pulmão queimando e as pernas ardendo. Era o marinheiro Dani, que treina corrida todo dia, mas junto do resto da tropa o nível é muito baixo. Depois passei o segundo, e, bem antes do fim, o terceiro, que já estava empurrando a bicicleta e ventilando duzentas vezes por minuto. Na hora pensei: O bom e velho Tiagão strikes again! O equilíbrio entre experiência e capacidade física, num esporte como o ciclismo, chega aos 30 anos. Foi uma gostosa vitórinha pessoal. Paramos de novo lá em cima, para admirar a paisagem, respirar, beber e comer umas bananas que levei. Dava para ver tudo lá de cima, da Barra do Ribeiro a ponta do gasômetro, o Rio Guaíba dourado. Filosofei um pouquinho com os guris, como sempre faço, aproveitando aquele sentimento de vida a flor da pele das bicicletiadas longas. Diante daquela cena, com aquele monte de endorfinas circulando na nossa cabeça, é fácil virar filósofo. Depois do infinito, do tempo e do espaço, do ser e do nada, falei do único motivo que leva, três jovens e um ancião como eu, a se esforçar tanto para subir uma rampa daquelas, num dia tão quente: o prazer. That’s all! If I have to explain, you wouldn’t understand. Os guris ficam meio quietos, as vezes sai algum comentário estapafúrdio, seguido de um “tá ligado” meio nervoso. Não sei se eles gostam ou me acham um psicopata e ficam sem jeito para falar. A seguir começamos a descer, 6 km de trilhas pelo meio do mato. Foi aí que o bom e velho Tiagão tomou um laço violento. Com a idade vem a experiência, mas vai toda a coragem. Os três desciam rodando com facilidade trechos onde eu, cagalhão, descia e carregava a bicicleta com medo de cair. Mesmo assim, cai, várias vezes, e fiquei todo arranhado por espinhos.

Tudo é tão barato no interior do município. Dia destes fui sozinho até a estrada São Caetano, lá no fim da Lomba do Pinheiro. Senti que o bonk estava se enrolando nas minhas pernas. Segundo o dicionário Webster de Inglês, to bonk quer dizer to hit one’s head against something. Na gíria da Inglaterra sei que é foder, trepar (ver “Quatro casamentos e um funeral”). E segundo a gíria ciclística, significa que o sujeito depletou as reservas de glicogênio muscular e está hipoglicêmico, ou seja, quase morreu de cansado. É quando o cara fica meio tonto (the head was hit) e a bici parece que está atolada em trinta centímetros de lama, com os pneus furados e os freios pegando nos aros, ou seja, não anda mais (o cara tá fudido). É preciso tocar para dentro alguma coisa bem fácil de ser digerida para levantar a glicêmia, e isto tem que ser rápido. É bem como encher o tanque de gasolina de um carro, na hora o cara volta a andar como se nada tivesse acontecido. Eu não tinha levado nada para comer e estava a uns trinta quilômetros de casa. Então parei e comprei dois cacetinhos numa padaria super ribeirinha, mas bem limpinha. Na hora de pagar, a surpresa, 10 centavos os dois.  Mais barato que somente um cacetinho aqui na esquina de casa, que custa 15. Depois segui e fui até a estrada dos Alpes. Nova parada, o bonk não morreu, tinha que comer mais para chegar em casa. Comprei duas massinhas, daquelas doces, feitas com leite, que tem uma gosma amarela em cima. Nova surpresa, a conta deu 25 centavos, menos que dois cacetinhos d’água numa zona mais urbanizada. E hoje, mais esta surpresa, o super suco a meio real. Incrível. Hidratante, isotônico e cheio de carboidratos, na temperatura ideal e quase na boca da trilha.
Mais um textículo (1998) retirado das catacumbas do bolo de cartas,,,
Ontem foi um dia legal. Acordei as oito da manhã sem despertador. Olhei pelas frestas da janela e o dia estava molhado e frio, pensei: Oba! Não tem dia melhor para andar de bicicleta. Tomei café, dei uma folhada na Zero, ajeitei a bici, peguei umas bananas e sai. Nos primeiros minutos eu tremia de frio, mas por dentro eu estava contente e assobiando, sabia o que aquilo significava ali adiante. Logo eu estava quente e suando, os pedais pareciam super soltos e giravam com uma leveza entusiasmante. O ar agora estava fresco e puro, uma garoa finíssima jogava um spray nos meus óculos. Uma gota se formou na ponta do meu capacete e ali ficou. As vezes eu ficava vesgo e olhava para ela, ela ia de um lado para outro seguindo o balanço do meu corpo, mas não caía. Subi o Morro do Osso e desci pelo lado da Cavalhada. Não tinha ninguém nas ruas, única coisa que eu ouvia era o som dos pneus brincando com o asfalto molhado e a minha respiração -Sssss, fuu, sssss, fuu, sssss- As vezes penso alto ou cantarolo sozinho, who’d care, anyway ? Resolvi seguir para a “Boa”. A Boa é uma estradinha de terra que sobe serpentiando um morro que parece ainda estar um pouco esquecido pela modernidade. Comecei a subir lenta e pacientemente o lombão. Lá as galinhas correm espantadas da bicicleta e as vacas ficam te olhando passar desconfiadas. Um velhinho de chinelo de dedo e chapéu de palha capinava com uma enxada. O cheiro do lugar era aquele que mistura grama, terra e bosta molhadas, me vem na cabeça uma sensação de alegria, lá da infância. A cerração lá estava tão densa que os sons ficavam abafados. Coloquei os óculos na ponta do nariz para que não embaçassem, a essa altura já estava suando em bicas, que bom que estava bem frio ontem. A Boa é boa porque se demora muito para subir, que prazer que dá! -O ciclismo é um esporte que se desenvolve “contra o vento e lomba acima”, quem gosta destas situações, gosta de ciclismo. É contra o vento e lomba acima que os adultos se diferenciam das crianças, os fortes dos fracos, os tenazes e persistentes dos débeis e desistentes. Quando eu cheguei lá em cima, que beleza, dava para ver sobre a serração o Morro da Ponta Grossa e o Guaíba. Barbaridade, como eu sou feliz quando os sentidos ficam assim a flor da pele! Será que alguém já viu e sentiu todas estas coisas? I wish someone was there, so I could share. You might say: “-Share what? ...Huffing and puffing up hill? No tanks.” No, not that, but just that nice feeling of being alive.
Conheci o Nélson através de sua filha, ela era minha colega na ESEF. Como eu ia sempre de bici para as aulas, ela um dia se convidou para conhecer minha oficina. Para evitar mal entendidos, foi logo avisando que levaria junto seu pai, que também era fanático por bicicletas, como eu. No dia marcado eles apareceram numa caríssima bicicleta americana de dois lugares, uma tandem. O Véio vinha atrás, saquei na hora. Fiquei felicíssimo, não só pela oportunidade de ver, tocar e andar em bicicleta tão especial, mas por conhecer o cara, que também é muito especial. Ele é coroa, tem 58 anos. Ficou cego aos 33, com uma doença degenerativa. Ainda trabalha, apesar de aposentado. Ele era funcionário concursado do “tribunal” (sei lá que tribunal!) quando ficou doente. Passou para a função de telefonista com o avanço da cegueira e ali se aposentou. Fez um curso de massoterapeuta na ESEF na década de 70, para melhorar o tato. Hoje ele é massagista. Além disto é presidente da Associação dos Cegos do Rio Grande do Sul (ACERGS) e um atleta de corrida! É um herói, te dás conta?!
Bueno, o cara e eu saímos algumas vezes para andar de bici juntos. Chegamos a ir até o Lami, até planejamos uma viagem a praia. Eu adorava “dirigir” aquele “caminhão” finíssimo enquanto ele gostava que meu alcance era muito maior que o das filhas dele. Para ele ir “vendo” também os lugares belíssimos por onde passávamos eu ia irradiando a paisagem. Quando voltávamos dos passeios, me impressionava muito a perfeição do relato que ele fazia para esposa, sem esquecer uma palavra do que eu tinha dito e ainda acrescentando detalhes de aromas e do estado dos pisos das estradas por onde nós havíamos passado. Quando a faculdade apertou eu não conseguia mais tempo nem para bicicletiar sozinho, quanto mais com o Seu Nélson. Ele arranjou outros olhos para guiá-lo, passou a correr a pé. O tempo passou e eu, sem querer, me afastei do amigo.
Dia destes ele me liga, era uma sexta à noite. Me convidou para acompanhá-lo numa corrida no sábado à tarde. Seu guia, que era o sujeito que deveria ver, não viu um hidrante e machucou o joelho. Isto aconteceu dois dias antes da rústica dos 90 anos do Grêmio. O Nélson tinha treinado um monte para esta competição. Tinha até prêmio em dinheiro para a categoria dos deficientes visuais. Ele queria muito correr, estava bem motivado e preparado. Não pelo dinheiro, claro que não, mas pelo símbolo que a premiação representava para a categoria. Eu, muito contente e realmente honrado pela lembrança, aceitei na hora o convite.
No outro dia estávamos lá. Era uma festa enorme, com muitas bandeirinhas e vendedores ambulantes. Tinha muita gente se acotovelando pelo pátio da entrada do estádio. Corriam para lá e para cá se aquecendo para a corrida. Além disso, tinha uma música muito alta e um cara animando os atletas num alto-falante. Logo que chegamos, fui encarregado de procurar o guichê dos deficientes visuais para fazermos nosso registro. No meio daquela multidão tremenda, daquela barulheira e entre tantas filas, de quinhentos guichês diferentes das várias categorias, não era uma tarefa muito fácil apontar o caminho. Mas não é que o véio cego me acha um amigo, também cego, mal a gente entrou no pátio, no meio daquele baita fuzuê! Não deu vinte segundos de animada conversa e encontram ainda outro amigo cego! Um minuto depois os três já tinham achado seu próprio guichê, sem a menor necessidade da ajuda de nossos olhos. Nós, os três patetas que acompanhavam, nos olhávamos atônitos, impotentes e inúteis. Com aquela balbúrdia toda, fiquei admiradíssimo com a capacidade do meu guiado: Além dele ter me orientado para o meu registro, ao invés de ser ao contrário, ainda tinham amigos dele gritando em volta de nós para que ele deixasse algum outro ganhar desta vez! Fiquei pensando que talvez eu não tivesse o preparo suficiente para acompanhá-lo.
Corremos. Eu servia só para ver o caminho, segurava uma cordinha numa ponta e ele na outra, a estratégia de corrida era toda dele. A largada foi uma loucura, com todas as categorias juntas. Ele mandou dar o máximo nos primeiros cem metros para se livrar da massa que só vinha para brincar. O véio era muito corajoso. Dava passadas largas e confiantes e ia abrindo espaço na multidão com os braços. Tu já tentaste correr de olhos fechados? Eu já, lá na ESEF, dá um medo enorme, uma baita insegurança. Isto que era numa pista plana, sem buracos ou ondulações e sem ninguém para atrapalhar. Imagina correr cegamente, numa rua de paralelepípedos e no meio de um estouro de manada! Ele corria forte mesmo, mas não tanto que eu não conseguisse acompanhar. Só na curva do Parcão, quando começamos a voltar para a Azenha, podemos avaliar nossa posição na corrida conforme íamos passando os outros cegos que vinham em sentido contrário. Percebi que estávamos na liderança, era só agüentar o ritmo. Foram 13 km, todo tempo ele me orientou sobre o que deveria fazer.
Ganhamos, para minha surpresa, primeirão, com direito a pódium, ovação, um enorme troféu e cheque! Isto que na nossa categoria tinha uns garotões na casa dos vinte, vindos até de outras cidades. Ele queria me dar metade do dinheiro, não aceitei. Negociei com ele uma massagem e uns dias de tandem emprestada. A massagem ele me fez no mesmo dia quando chegamos na sua casa. A super tandem eu peguei várias vezes, nos dias seguintes. Levei umas colegas da ESEF, umas do Pós, meus alunos grandes o suficiente para alcançar os pedais e até uma professora que era minha aluna de personal. Um cada dia. Todos adoraram a experiência, naturalmente!

Tu conheces alguma coisa mais altruísta que guiar um cego à vitória? Eu sou mesmo um amorzinho, não acham?

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Barulho de madeira
Trabalhei em vários lugares nos dois anos que vivi na Europa. A proposta era viajar e conhecer, então não esquentava cadeira e logo mudava para outra parte qualquer. Países pequenos, em poucos quilômetros eu podia trocar de língua, dinheiro e cultura a hora que estivesse satisfeito com o que já tinha aprendido do lugar. O veículo que escolhi para a minha jornada foi a bicicleta. Rápida, barata, culturalmente aceita e sem nenhuma burocracia, além da vantagem de poder cruzar as fronteiras onde quisesse sem levantar suspeitas. Em dois anos eu rodei uns 7000km de norte a sul da Europa, de Amsterdam, na Holanda, até Genova, na Itália, onde embarquei num navio que me trouxe de volta ao Brasil.
Passei o inverno em Paris e quando a primavera chegou decidi que era hora de partir. Muita gente me desaconselhou:
Está muito frio ainda, espera o verão.
Não, minha ansiosa juventude não me permitia esperar e eu tinha razão. Me armei com roupas de frio para ciclismo e fui. Saí de Paris em direção ao sul, o objetivo era Mirmande, um vilarejo medieval na região de Fontaine-de-Vaucluse que me juraram eu encontraria trabalho nas colheitas de cereja, pêssego ou uva. Eu não sabia, nunca havia estudado o relevo do interior da França, óbvio. No mapa parecia planinho... Mas atravessei o Massif Central francês, um lugar alto e montanhoso, mais ou menos como a nossa serra gaúcha. O problema nem era subir a montanha de bicicleta carregada, nessa época eu era magro e hipertreinado. O grande problema era o frio. Agora entendo meus conselheiros de Paris, seria prudente esperar junho. Mas, mesmo agora, acho que agi bem! Se não for quando jovem, quando você fará esse tipo de coisa? A noite eu vestia todas as roupas que tinha e colocava o casacão embaixo do saco de dormir, mas ainda assim, cagava de frio. Eu tinha um guia de camping e planejava a jornada diária para entorno de 120km. Achava o vilarejo no mapa e lá me ia feliz como um passarinho migratório. Nada se compara a felicidade da liberdade que sentia nesses momentos de deslocamento. Eu era poderoso, livre, dono do meu destino!! Levava comigo tudo que me era necessário a vida: casa, comida, roupas, livros, veículo, ferramentas, cozinha completa. Chegava ao destino, pagava uma noite do camping que era super baratinho, montava a barraca, cozinhava numa espiriteira a álcool, comia, tomava banho e dormia. Com o raiar do dia recolhia tudo e seguia viagem. Eram sempre campings muito simples em lugarejos de fama nenhuma, o banho era pago separado em todos, então eu matava muitos!
Lá pelas tantas cheguei a Saint-Jean-la-Bussière. Como de costume, cheguei exausto, no meio da tarde, depois de uma dura escalada por estradinhas francesas. A pequena cidade estava animada, mas absolutamente silenciosa, na capelinha havia um casamento, então, muitos carros se acotovelavam inertes pelos acostamentos de grama esperando seus donos testemunharem a cerimônia. Todas as casas e a igreja eram da mesma cor, a cor da pedra que eram construídas, um cinza chumbo. Parei na "épicerie" para as compras do dia e já me informei da localização do camping. Descendo a estradinha que me levava lá, escutei os sinos selando a união e vi as pessoas sairem arrumadas da capela, entrando nos seus carros e partindo. Seguramente, umas três vezes o número da população local foi embora. O camping estava cadeado e vazio. Subi desanimado a estradinha de volta a vila e, por sorte, um camponês me viu e me orientou de longe, apontando com um garfo daqueles de mexer no feno:
Ela mora ali!
Agradeci e voltei para o lugar indicado muito abaixo do camping na estrada. A casa era amarela, diferente das outras, ao lado de uma estrebaria grande, também amarela. Tinha o telhado grosso, de quatro águas ingrimes, feito com uma fibra qualquer, numa ponta da cumeeira, uma chaminé denunciava fogo. Encosto a bicicleta ao lado da porta e percebo que as paredes devem ter um metro de espessura e parecem feitas de barro. A porta era de madeira maciça, com uma estranha tramela de ferro. Bati e esperei. Me inspeciono rapidamente para ver se estava apresentável, reparei que saía fumacinha de vapor de meu corpo quente, através das roupas, para aquele ar frio da serra. A tramela rangiu e a porta se abriu. Na minha frente agora, sorridente, estava um ser de contos de fada, uma senhora de uns cem anos, mais ou menos, metade de minha altura. Ela, toda faceira, me convidou para entrar. Ao entrar percebi que estava entrando no coração da França, na história da França, no âmago de um país medieval. A casa era incrível! Toda feita de grossas madeiras por dentro, um enorme fogão a lenha bem no centro da casa a aquecia por completo. O ar era espesso mas o cheiro era bom. A senhorinha me fez sentar numa mesa larga e me ofereceu café. Se os ingleses gostam de chá, os franceses adoram café (os dois países, aliás, consumindo os produtos de suas distantes colônias). Ela me perguntou amenidades, me olhava fascinada e conta que é o primeiro brasileiro que conhece. Percebo que meu francês está bom, aquela altura do campeonato. Se eu entendo aquela velhinha, aquela cultura francesa inteira, naquele grotão francês, compactada e ambulante naquele pequeno e ancião ser fabuloso, é porque meu francês está bom! A velha feliz com minha visita, me oferece um pão cheiroso que aceito com alegria e apetite. Pão francês nem sempre é o que se imagina aqui no Brasil. Ela percebe que gostei e põe uma colherada de geléia em cima de outra fatia. Fala sem parar e comenta do tempo atmosférico e daquele que passa tão rápido, do casamento que vi na capela e da casa que elogiei:
É muito antiga! Era de meu avô!
Sempre faminto e alimentado a miojos com salame, aquilo é um banquete, me distraí com o momento prazeroso, mas, de repente, começo a sentir calor e lembrei do porque estava ali. Perguntei sobre o camping e só agora ela entendia o motivo da minha visita. Entusiasmada, me explicou que eu era o primeiro cliente no ano! Fiquei surpreso, afinal, era maio! Depois, refletindo, me lembrei: a temporada de verão para os europeus começa só em junho. Ela me explicou detalhadamente todos os direitos e deveres do campista, eu paguei o exigido e então ela chamou alguém sem levantar a voz:
Jean Pierre!
Só aí percebi que não estávamos sós. Do teto da sala, que deveria ter no máximo dois metros de altura, seu avô deveria ser baixinho como ela, ouço os passos de alguém sobre aquelas largas e espessas tábuas. Ela para de falar e, como eu, fica saboreando o som de cada passo no andar de cima. O som lento, compassado e grave, lá e cá algum rangido de madeira. Descendo a escada no fundo da sala escura, apareceu um rapaz alto e louro, com olhos muito azuis, ela deu instruções e o guri saiu comigo da casa, obviamente contrariado. Me despedi da velhinha e segui o guri empurrando lomba acima a bicicleta. Acho que ele escutou toda nossa conversa, tal a facilidade que escutamos seus passos na madeira. Acho também que ele já tinha visto alguns brasileiros, pois não tinha nem um décimo do entusiasmo de sua... sei lá: avó? Bisavó ou tataravó...
Uma vez contei animado essa história para uma namorada. Ela não gostou do relato, achou enfadonho e me reclamou:
É isso? Não tem nem alguma coisa engraçada no fim?
Acabou o namoro.
Vinte e cinco anos depois, construí minha própria casinha de madeira, claro, bem diferente daquela da velhinha de Saint-Jean-la-Bussière. Todas as tábuas da minha casinha foi eu mesmo que fiz quando trabalhei na serraria, assim como fez, imagino, o avô da velhinha. E claro, considere que as minhas tábuas tem um vinte ávos, mais ou menos, da espessura daquelas da casa francesa. Mas, adivinhe: cada vez que caminho pela casa, o som que faz as tábuas do chão me remetem àquele momento do Massif Central e a lembrança me alegra. Por favor, não vá me reclamar que faltou graça na história!!