sábado, 21 de março de 2020


A Covid-19 e sua relação com a Educação Física escolar

O falecido poeta gaúcho Jaime Caetano Braun há muito já dizia: “O vento é analfabeto, mas fala em todos os idiomas”. Assim como as massas de ar se deslocam sem respeitar as fronteiras criadas pelo ser humano, o atual surto infectocontagioso é globalizado e ridiculariza as vontades políticas de plantão. A crise desencadeada pela disseminação do novo vírus corona revelou a necessidade de uma grande cooperação mundial para conter a pandemia de covid-19.
O historiador israelense Yuval Noah Harari, na revista americana Time do último dia 15, faz uma retrospectiva de grandes epidemias que a humanidade já sofreu globalmente em outras épocas. Mesmo em tempos que não existiam aviões, trens ou navios de cruzeiros, os vírus se alastravam rapidamente pelo mundo. Tentar se fechar dentro de suas fronteiras, não vai salvar um país da contaminação de um novo vírus ou de eventuais mudanças climáticas. Ele exorta as lideranças mundiais a promover a educação, a pesquisa científica, a solidariedade e a cooperação entre os povos para que a humanidade se livre de problemas globais.
A atual conjuntura global de superpopulação, um oceano de notícias falsas na internet, as mudanças climáticas, escassez de recursos naturais e agora esse surto infectocontagioso, determina uma mudança de sentido na educação. Não mais podemos nos dar ao luxo de imaginar que estamos numa luta contra outros povos por território de subsistência. Devemos começar a ensinar que estamos todos no mesmo time, não existem adversários, temos que cooperar uns com os outros. Na verdade, não tem “outro”, somos somente uma família humana lutando pela sobrevivência num planeta cada vez menor e com menos recursos. Somos todos responsáveis pelo saneamento básico daquela vilinha angolana para que aquele menino negro e pobre não morra de alguma doença estranha. Temos que cuidar daquela senhora idosa e hindu no interior da Kashmira, pois a nossa saúde também depende da dela. Até agora, parecia que não tínhamos nada a ver com eles, mas estávamos errados, estamos todos interconectados numa aldeia global. Não devemos lutar contra os outros, estamos todos no mesmo barco, se morrermos, morreremos abraçados, quer queiramos ou não. Se um país não cooperar em diminuir as emissões de gases do efeito estufa ou isolar seus cidadãos doentes, todos os outros sofrerão as consequências.
Mesmo países que inicialmente relutaram em aceitar os ditames da Organização Mundial da Saúde (OMS), como Brasil, Estados Unidos e Reino Unido, com governantes que desdenhavam da situação, logo tiveram que se render acuados pela pressão social de muitas mortes, principalmente entre idosos. A população assustada surpreendeu-se com uma série de orientações sanitárias, regras até então desconhecidas tiveram que ser rapidamente aprendidas e obedecidas para evitar um desastre ainda maior. Mesmo as diversas mídias insistindo diariamente nas recomendações das autoridades competentes, flagraram também muita gente achando que fosse férias e indo a praia ou aos shoppings como se nada estivesse acontecendo.  Não é de se espantar, o povo não foi ensinado a cooperar, daí o estranhamento. O episódio revela uma lacuna monstruosa na nossa educação formal. As escolas dedicam muito tempo ensinando a competir, mas falham pateticamente ao ensinar a cooperar. Cooperação é um jogo que não se joga na escola e, ao mesmo tempo, grandes ginásios esportivos são construídos e não falta material didático para os professores de Educação Física ensinarem a competir.
A novíssima Base Nacional Comum Currícular (BNCC), parece querer corrigir essa falha quando discute as competências gerais que um aluno tem que ter ao sair da escola. Em nenhum momento se fala que as crianças e os adolescentes têm que saber competir, ao contrário. Se fala muito em ética, solidariedade e cooperação. No entanto, quando se olha especificamente o componente curricular da Educação Física se encontrará eixos temáticos de lutas e esportes onde se fala muito em competições, adversários e oponentes e simplesmente se omite da cooperação. No mínimo é paradoxal, a intenção é ensinar a guerra e o conflito para se obter a paz e a solidariedade? Uma das justificativas da permanência dos esportes na escola é que ensinam a obedecer regras e autoridades. É curioso, com esse surto virótico não estamos agora exatamente cooperando globalmente com muitas regras e obedecendo autoridades competentes para se chegar ao bem comum? Será que uma grande horta comunitária não faria o mesmo papel? Acredito que a legitimidade da ideologia vigente que ainda orienta os educadores a privilegiar a competição na escola se mantém por inércia de tempos onde o mundo era maior e os recursos eram abundantes. Lembrando do filósofo francês Edgar Morin e suas lições fico me perguntando, qual o conhecimento pertinente a ensinar nas escolas: competição ou cooperação? Ele responde sem meias palavras, a cooperação.
Não consigo deixar de pensar em artistas que anteviram situações que vivemos hoje há muito tempo. Raul Seixas previu o dia em que a terra parou, mas se achava maluco por pensar isso. John Lennon imaginou as pessoas vivendo para o hoje, sem fronteiras entre os países. O argelino Albert Camus, no seu livro a peste, descreve as mazelas sociais que afloram concomitante a um surto infectocontagioso numa pequena cidade africana. O português José Saramago faz o mesmo exercício no seu Ensaio Sobre a Cegueira. E, claro, Jaime Caetano Braun e seu poema Alma Pampa.

Alma Pampa


Quem te batizou milonga, decerto foi algum monge
Que escutou de muito longe o teu murmúrio de sanga
Ou quem sabe alguma changa, dormideira nos arreios
Dessas que fazem ponteios com unhas de japecanga
Ou quem sabe algum sorsal, de topete colorado
Num prelúdio abarbarado das canas do taquaral
Talvez quem sabe um bagual corcoveando num repecho
Floreando as cordas do queixo nas pontas do pastiçal
Brasileira, castelhana, milonga ronco de mate
Tu nasceste do embate da velha saga pampeana
Espanhola, lusitana, entre patriadas e domas
Sem divisas, sem diplomas, cursando o mesmo dialeto
Porque o vento analfabeto fala em todos idiomas
Quem sabe talvez a lança, riscando a primeira linha
Quando a adaga se embainha, cadenciava uma romanza
Ou talvez a vaca mansa, dentro da várzea perdida
Na ternura enrouquecida, feito instinto e lamento
Anunciando o nascimento da cria recém lambida
Por isso em qualquer fronteira, no esboço da lonjura
És a mais linda mistura da nobre estirpe campeira
Fidalga e aventureira, com geografia na cara
Passaporte tapejara, no caminho dos andejos
Reculutando solfejos que uma linha não separa

Alma de pampa e semente que nasceu nos dois costados
Herança dos mal domados que formaram nossa gente
O passado e o presente e o futuro dimensionas
Nas primas e nas bordonas do garrão do continente.