domingo, 12 de março de 2017


Sol de Si 2 – A missão
Numa dessas últimas feiras do livro de Porto Alegre, estava eu a fuçar naqueles balaios de ofertas de cinco reais, despreocupadamente, nunca tem nada bom naquelas caixas. Mas igual, como todo mundo, examinava as lombadas deixando o fluxo de pensamentos aleatórios me guiar. Lá pelas tantas acho um Alain de Botton novinho, examino e está inteiro, o copyrights é de três anos atrás. Confiro com o vendedor e, sim, está certo o preço, cincão. O título acho que explica o encalhe do livro - Religião para ateus. Ser ateu é uma raridade e religiosos encontram esse título como a lesma encontra o sal, melhor evitar. Mas, como sou ateu de carteirinha e gosto muito do que já conheço do Alain, paguei e fui embora meio rápido para o livreiro não ter tempo de dizer: ah, não, péra!
Ateus são pessoas diferentes de agnósticos. O agnóstico não vê relevância em responder se existe ou não uma força superior, uma divindade criadora e cuidadora, portanto não se faz a pergunta. Ou acredita que é uma pergunta impossível de ser respondida, além da razão humana, por isso não é pertinente, nem precisa ser feita. O ateu, ao contrário, se perguntou e se convenceu que não existe nada no além, estamos sós no universo, por nossa conta mesmo. Na verdade, um ateu, como eu, acha a crença em deus uma tolice total, uma muleta metafísica, uma criancice: Não existe nenhum amiguinho imaginário, nenhum papai do céu vai te ajudar nunca, te vira! Teus familiares morreram mesmo, estão sendo comidos por bactérias no caixão e tu nunca mais vais vê-los, aceite o fato. Ateus adultos abdicam de consolos bobos como ursinhos de pelúcia para dormir. Não tem céu, nem inferno tampouco. Um ateu assume resignado suas cagadas e acidentes, não é um deus te dando uma lição! Só mais um substantivo masculino, deus não tem letra maiúscula. De formas que as religiões são um verdadeiro mistério para um ateu. Como alguém sadio da cabeça perderia algum tempo ou energia se dedicando a algum culto ao sobrenatural? Alain de Botton nos dá a resposta no seu livro. As religiões são produtos culturais, cada cultura tem a sua. Dentro do seu contexto, faz todo sentido, mas, aos olhos dos outros que vivem distante daquela sociedade, é no mínimo bizarra. No entanto, todas as religiões tem pontos em comum que são muito acolhedores para qualquer ser humano. Todas organizam encontros diários ou semanais. Todas costumam entoar canções quando juntos. Todas incentivam a ajudar seus próximos. Todas tem um calendário de comemorações que relembram seus valores. Essas iniciativas contribuem decisivamente para que a comunidade fortaleça seus laços sociais e conserve sua unidade. Alain de Botton, ateu militante, ensina que temos muito o que aprender com as religiões e deveríamos seguir seus bons exemplos.
Quando estava na faculdade, achava tudo uma festa. Nos víamos diariamente e celebrávamos a vida com alegria. Organizavámos festas quase toda semana e sempre tocávamos e cantávamos juntos. Nós nos ajudávamos no que podíamos, desde o dinheiro para a passagem do ônibus, lanches, trabalhos de alguma cadeira, estudos para as provas ou arrumar uma namorada. Eu achava aquela comunidade uma maravilha sem males e os de fora não sabiam o que estavam perdendo! A ESEF da UFRGS era minha religião e eu botava muita fé nela. Completamente laica, nunca ouvi falar em outra fé por lá, no entanto sei que quase todos tinham alguma crença do lado de fora da universidade. E eram as mais diversas! Eu me esforçava para atrair e reunir todo grupo para nossas celebrações e não foram poucas as vezes que organizei festas embaixo do flamboyant florido na frente da garagem dos meus pais. Aquilo me deixava sempre muito feliz. Nesse sentido, eu seguia as orientações de Alain de Botton antes mesmo dele ter escrito seu livro. Mas, depois de sair da faculdade, fui perdendo o contato com os colegas e os laços sociais desapareceram. Minha “religião” acabou.
Minha irmã mais velha sempre gostou de viver em grupo. Sempre participou de corais, grupos de igreja, grupos de poesia ou simplesmente amigos de bar. Se esforça para manter vínculos afetivos importantes durante décadas e não mede esforços para isso. Um dos grupo que ela está engajada atualmente é de canto. O que as une, quase todas são mulheres maduras, é o prazer em cantar. Parece pouco, mas é o suficiente para uní-las de uma forma consistente. Se reúnem semanalmente para ensaiar, verdadeiras papa-hóstias do grupo e, obviamente, pela alegria dos encontros, todas acreditam que fazem parte de um todo maior. O grupo Sol de Si é vibrante e espiritualmente pleno. Sempre me sinto bem observando a fé das ditosas beatas ao grupo, irradiam alegria! Essa semana, organizaram uma festa na garagem da casa dos meus pais em Porto Alegre, como eu e minhas irmãs costumávamos fazer há 20 ou 30 anos. Me convidaram para celebração. Cheguei antes, faceiro com o convite e ajudei um pouco na organização do espaço. Alguém me mostra uma foto da gente arrumando a garagem para a festa e vejo aquele senhor de cabelos brancos, apertado numa camiseta polo, com um tronco massudo, não de músculos, mas de graxas, suando, perfeitamente integrado aos outros veteranos personagens da cena. Não me assusto nem me choco, só me resigno serenamente, aquele senhor estranho do retrato sou eu.
A festa foi marcada para às 19:30 e, em ponto, essa foi a hora que os convidados religiosamente começaram a aparecer. Bem diferente das festas da juventude que começavam a meia noite, agora ninguém precisa provar mais nada para ninguém, mas precisamos todos dormir bem e cedo. As músicas vão se sucedendo noite adentro. Desde Latino, Sidney Magal e trilhas sonoras de velhas novelas como Estúpido Cúpido e Saramandaia, até Raul Seixas, Blitz e Rita Lee, passando por Gloria Gaynor, Beatles e Bee Gees. Acho todas boas, parece que estou ouvindo minha vida toda de novo. Me encaixo perfeitamente na festa e meu corpo se embala junto com o resto do povo. Logo estou viajando no tempo, fora as luzinhas coloridas girando no teto e os corpos experientes, tudo é igual. Vi êxtase eufórico, gozo, júbilo e regozijo. Vi beijo na boca e olhares apaixonados. Vi homens de braços cruzados nos cantos, eu inclusive, mulheres dançando animadas em círculo. Vi hustle e todo mundo cantando e dançando junto. Estava todo mundo celebrando a simples existência. De novo o grupo Sol de Si me surpreende e me ensina a ter fé e um amor religioso pela vida.
Observando a festa do grupo Sol de Si, aquele monte de mulher coroa rebolando ao ritmo do Abba, começam a surgir pensamentos machistas na minha cabeça. Aquela eu comia, aquela também, aquela não. Mulher cinquentona é tudo de bom. Todas já passaram por diversos relacionamentos, já não tem expectativas de encontrar principes encantados. Todas já passaram por diversas dietas e cirurgias, seus corpos já não lutam pela ilusória beleza e nem procuram algum Adonis perfeito. Até eu e meu tronco massudo posso estar no páreo! Todas já não tem preocupações de gravidez indesejada. Todas já pagam suas contas com relativa facilidade sozinhas. São atraentes, charmosas, cheirosas, gostosas, bonitas e inteligentes e tem muitas histórias para contar. Todas já estão no “mode” tô viva, me comando e foda-se. Ou seja, põe os homens em pânico.
Estou ali na festa olhando as bundas que passam e deixando o fluxo de pensamentos aleatórios me guiar, exatamente como quem examina as lombadas de livros procurando uma boa oferta acessível. Como um jacaré que pacientemente espera imóvel a presa passar perto o suficiente, estou pronto para o bote machista. Eu quero, estou excitado, desejante. Mas, em pânico. Os pensamentos atrapalham minha caçada, maldita consciência. Toca Help, dos Beatles. I'm not so self assured. Now I find I've changed my mind and opened up the doors. Se fizer isso para saciar meus apetites de homem, vou possivelmente me queimar no grupo todo. Já estou quase cinquentão e a mulher vai estar com uns 50 anos de bagagem emocional também. A negociação vai ser densa e tensa. Posso sair machucado ou pior, machucar alguém. Agora me considero um feminista. Estrategicamente, recuo a tropa, saio de fininho da festa e resolvo escrever para elas, me declarar. Não posso dizer na cara: olha, vamos trocar carícias íntimas e melecas corporais de forma lúdica e sem fins reprodutivos? Tenho que começar de mansinho, falar do gato que subiu no telhado. Acho que já sei como começar a conversa: Tu és agnóstica? Li um livro, muito interessante, do Alain de Botton...


terça-feira, 7 de março de 2017

Mexendo na Regra
Promovendo a Inclusão nos eventos esportivos da cidade de Osório



Tiago de Moraes Alfonsin
Professor de Educação Física
E.M.E.F José Paulo da Silva



Osório, 7 de março de 2017



 “Não existe imparcialidade, todos são orientados por uma base ideológica. A questão é: sua base ideológica é inclusiva ou excludente?” Paulo Freire.

Introdução

Uma regra não escrita, mas muito rígida mesmo assim, permeia os eventos esportivos ao redor do mundo e não é diferente naqueles promovidos pela Prefeitura de Osório para os alunos das escolas municipais: A exclusão. Completamente na contramão das tendências mundiais dos direitos humanos e imoral na essência, a regra da exclusão é inconscientemente perpetuada pelos organizadores e professores envolvidos. Este projeto tem por objetivo rever essa regra e transformá-la no seu inverso: A inclusão. Todos os alunos devem estar presentes nos eventos esportivos e participando plenamente, não somente marginais espectadores das atividades.



“É nas certezas doutrinárias, dogmáticas e intolerantes que se encontram as piores ilusões.” Edgar Morin.
Justificativa
Nos dois anos que participo como professor da rede municipal de ensino, observei que por mais disposto que eu esteja em incluir todos os alunos nos eventos esportivos, não me é possível. Somente uma pequena seleção de cada escola para cada modalidade é convidada. Cerca de 20% dos alunos é incluído e, assim mesmo, por um pequeno momento. As provas vão ocorrendo nas diferentes modalidades ao longo dos dias do evento e as crianças devem sentar e esperar atentas pelo momento de sua competição. Ficam passivas assistindo às provas, durante horas e, somente durante os breves instantes que competem, são convidadas a participar. Curiosamente, eventos assim são comuns no Brasil e no mundo. Todo professor de Educação Física ou qualquer outra disciplina, tem que estar em constante questionamento de sua prática para melhor adaptá-la a um mundo em permanente transformação. O docente tem que estar preocupado com o que os estudantes estão aprendendo, sua criticidade e que valores está ensinando a seus alunos. Diante da exclusão evidenciada nos jogos esportivos, que a própria palavra “seleção” já denuncia, o educador começa a se perguntar por que acontecem e por que se dá tanta importância a eles.
Dois mega-eventos esportivos para adultos, separados por duas semanas, recém ocorreram no Brasil: as Olímpiadas e as Paraolímpiadas. O sucesso de ambos foi reconhecido mundialmente. Curioso é que os atletas de um evento não se encontraram com os do outro em nenhum momento, apesar de os dois eventos ocorrem na mesma cidade, no mesmo parque olímpico. Não se cruzaram nos corredores da vila olímpica, não fizeram refeições juntos, nem apareceram numa mesma foto e muito menos competiram juntos. É evidente o esforço dos organizadores para que o encontro não ocorra. Apesar de utilizarem os mesmos espaços de competição, concorrerem muitas vezes nos mesmos esportes, uma muralha no tempo os separa. Qual o motivo de existirem dois eventos separados? A resposta é evidente, a compleição física dos atletas: uns são deficientes e outros não. Não há nem um mínimo de constrangimento nessa segregação.
A segregação dos deficientes já é considerado um avanço, pois antes de 1960, nos jogos de Roma, a regra era a simples exclusão. As parolimpíadas só foram criadas para devolver a autoestima dos jovens soldados americanos mutilados na Guerra do Vietnam. Somente nos jogos de Barcelona, em 1992, que o Comitê Olímpico Internacional aceitou planejar em conjunto com o Comitê Paralímpico Internacional que havia sido recém criado, em 1989. Observe que o avanço foi bastante limitado. Os dois mega eventos esportivos seguem buscando incluir somente os mais aptos no desempenho de uma prática esportiva, tanto deficientes quanto não deficientes. O resultado é que são premiadas as aberrações genéticas. Usando como exemplo um atleta da atualidade, Michael Phelps, cultuado como herói por ser o maior vencedor de todos os tempos, segundo a wikipedia: “A proporção da altura de uma pessoa para a medida do comprimento da cabeça até o umbigo é, normalmente, 1,618 (a razão áurea). Michael Phelps apresenta-a superior a 1,7 - tronco longo, linha de cintura baixa e pernas curtas. Ele tem braços excepcionalmente compridos, com envergadura de 2,01 m, desproporcionais para sua altura de 1,93m. Seus pés têm 29,8 cm aproximadamente, equivalente a calçados número 43. Além disso, Phelps é portador de hipermobilidade — sua flexibilidade de braços e pernas é comparável à de um bailarino clássico.” Já nosso herói Arthur Zanetti é um adulto tampinha de 1,52m, com cintura escapular acima da média, facilitando sua mobilidade e controle nos aparelhos ginásticos. Os vencedores, tanto entre os atletas deficientes como entre os não deficientes, não são pessoas comuns, são as exceções. As pessoas comuns não conseguem desempenhos próximos às aberrações, por mais que treinem. Isso sem nem lembrar de idosos e crianças. A esmagadora maioria é “naturalmente” excluída. São as regras não escritas dos jogos, mas sua ideologia é tacita e culturalmente aceita como justa, virtuosa e altruísta. De onde vem nossa cultura de premiar as aberrações genéticas? Bom, resumidamente, bebemos de duas fontes principais: dos mananciais grego/aristotélico e romano/cristão.
Na Grécia antiga, lugar onde nasceram os Jogos Olímpicos, o pensamento hegemônico era de que uma ordem cósmica, perfeita e indiscutível, fez cada um diferente do outro para cumprir uma função. Como diversas tarefas são necessárias numa sociedade, desde limpar banheiros até governar, os gregos tinham essa cultura aristocrática de acreditar que já se nascia apto para a função a ser exercída. Ao longo da vida, alguém deveria somente descobrir qual era sua função e desenvonvê-la para melhor cumprí-la. Cada indivíduo era como uma engrenagem de uma máquina perfeita e maravihosa, o cosmos. Portanto, a vida virtuosa deveria ser aquela que busca se encaixar da melhor maneira possível. Assim, os escravos já nasciam aptos para trabalhar, as mulheres para procriar, e aqueles que tivessem a sorte de nascer filhos de cidadãos, privilegiados 10% da população, já nasciam aptos para pensar, estudar e aprender. A situação era curiosa, descobrir os mais aptos em cada tarefa era a preocupação grega mais importante.
As mulheres, era óbvio, já nasciam prontas para procriar, vinham equipadas para tal, impossível de argumentar contra tamanha evidência. O cosmos as fez homens do avesso, com vaginas para dentro no lugar de pênis para fora, com úteros para abrigar e seios para alimentar a prole. Não havia debate de gênero na Grecia antiga porque não havia gêneros. Como a crença era que já se nascia com a forma certa para a função, as mulheres eram vistas somente como homens que o cosmos fez nascer “invertidos”, desprovidos de virtudes, amorais por natureza. Servem só de terra onde os que nasceram “direito” depositavam gentilemente suas sementes. As mulheres só entraram nos jogos olímpicos, marginalmente, depois de 2500 anos, já na era moderna. Assim mesmo, havia um evento paralelo, semelhante ao que ocorre hoje em dia com os deficientes e as paraolimpíadas. Barão de Coubertain, o aristocrata que resgatou os jogos da Grécia antiga, saiu da presidência do Comitê Olímpico Internacional em 1928 porque seus seguidores, nas palavras dele: “trairam o ideal olímpico permitindo a participação de mulheres.”
Já os escravos, na cultura aristocrática grega, já nasciam filhos de escravos, como laranjas nascem de laranjeiras, eram naturalmente menos virtuosos. Isso era considerado normal, bom e justo, porque o cosmos os fez peças de máquina capazes de melhor e mais rapidamente desenvolverem suas capacidades de obediência aos seus amos ou de manejar enxadas e foices. A moral de alguém já estava determinada ao nascer!
Aqueles privilegiados dez por cento de cidadãos, homens livres, que já nasciam moralmente mais virtuosos, eram os mais complicados de descobrir a função, porque não era óbvio, tinham que experimentar várias coisas antes de aprofundar-se em alguma. Mas, descoberta a função da pessoa, todos os esforços da sociedade deveriam ser na direção de favorecer o pleno desenvolvimento daquela habilidade. Um bom flautista deveria ganhar a melhor flauta, além de tempo para a prática e tempo para estudos, para melhor desenvolver sua função de tocador de flauta. Era como lubrificar a máquina cósmica. Na direção contrária, um matemático ruim, nem deveria ser ensinado a calcular, seria como sabotar a máquina cósmica colocando peças em lugares errados, não funcionaria. Gastar dinheiro educando mulheres e escravos, por consequência, era um desperdício que nenhum governante deveria cogitar, pois já nasceram sem a capacidade de aprender. No pensamento grego, berço da cultura ocidental, era evidente e cristalino que temos que privilegiar os já privilegiados para não atrapalhar a harmonia cósmica. Era importante descobrir quem eram os mais aptos, as aberrações genéticas, premiá-los, pois eram merecedores visto serem moralmente mais virtuosos.
O cristianismo é a outra fonte cultural da qual bebemos. A regra aristocrática de que a moral é inata começou a ser questionada a partir das idéias subversivas de Jesus de Nazaré. Não foi a toa que foi crucificado numa tentativa de abafar sua revolução, completamente distoante da cultura hegemônica da época, a grega. Por sorte, seguidores de sua ideologia seguiram difundindo sua filosofia. Jesus sugeriu que somos todos iguais, filhos de um único deus criador. A virtude não é inata, como acreditavam os gregos, mas sim deve ser cultivada ao longo da vida. O indivíduo deve se esforçar e, a partir das habilidades gentilmente presenteadas pelo criador, desenvolver as qualidades desejadas. Os mais virtuosos são aqueles que mais se esforçam para desenvolver suas habilidades. Assim, o esforço é que deve ser premiado, qualquer um pode ser virtuoso, até mesmo mulheres e escravos.
Os gregos foram só mais um povo dominado pelo Império Romano e sua organizada máquina de guerra. As legiões romanas e sua logística refinada, uma espécie de Estados Unidos da época, atropelavam qualquer resistência e seu rastro era uma homogenização cultural. Desde leis, costumes, gastronomia, até a arquitetura, os romanos iam engolindo tudo e metabolizando num só corpo as diversas culturas que subjugavam. Assim, ofereciam aos dominados uma cultura muito rica e diversa, fazendo a opressão parecer até uma benção e os impostos serem pagos até com satisfação. Estradas, aquedutos, saneamento básico, agricultura, máquinas, legislação clara, os romanos traziam inovações importantes. Mas, uma das razões principais que fizeram com que os romanos conseguissem se expandir tão eficazmente por todo mundo conhecido, era que respeitavam as religiões dos povos dominados, permitindo que as praticassem livremente. Era um império laico. Porém, perto de seu colapso, numa tentativa de unificar um império que se fragmentava e enfraquecia, o imperador Constantino resolveu adotar uma religião oficial. Escolheu uma religião pequena e obscura, praticada por poucos cidadãos do império. Assim, a oposição seria menor, pois nenhuma grande religião seria privilegiada. Foi assim que a religião cristã se espalhou por todo Império Romano contaminando todo o mundo ocidental. Por decreto e a força, todas as outras religiões foram proibidas. Uma fusão das filosofias grega e cristã se fez necessária aí.
Assim, a crença de que a forma física inata, perfeita para a necessidade cósmica, herdada da cultura grega, combinada com o esforço ao longo da vida para aprimorar os dons presenteados por Deus, defendida pelos cristãos, fazem com que nossa cultura, a fusão dessas duas, valorize, como moralmente elevado, um atleta olímpico. Aquele indíviduo que nasce aberrante e treina ardentemente para cumprir com excelência a sua função cósmica/dom presenteado por deus. Esses são vistos como semi deuses, puros, altruístas, dignos. São premiados, exaltados, gratificados, publicizados. Desses perdoa-se erros, minimiza-se defeitos, dignifica-se qualidades, amplifica-se virtudes. A cultura de procurar esses indivíduos para pô-los num podium, elevado do solo e com degraus hierárquicos para que todos percebam quem está num nível superior se disseminou no mundo todo. Assim, a sociedade tolera perder muito tempo e dinheiro para descobrir que são os eleitos cósmicos e distinguí-los do resto da humanidade com medalhas.
Por incrível que possa parecer, precisamos dar um passo além dos filósofos gregos e cristãos. A Educação Física também precisa se encaixar no contexto atual da humanidade. A obesidade, segundo a FAO, é o maior problema de saúde da população mundial. O crescimento populacional atingiu níveis alarmantes que demonstram que o modelo de desenvolvimento está em colapso. No lugar de uma sociedade ganha-perde, baseada na competição, precisamos lutar por uma sociedade ganha-ganha baseada na cooperação. Os recursos naturais estão ficando escassos. O Ser Humano faz parte do meio ambiente e não é melhor ou pior que qualquer espécie. Além disso, já é tácito o conhecimento que a atividade física deve ser natural e diária para a promoção da saúde e não reservada somente para os momentos de competição. A menor célula de vida humana é o grupo e, para a sobrevivência da espécie, o grupo deve ser compreendido como toda a humanidade no planeta numa ideologia complexa, como nos ensina Edgar Morin e não só um time ou um país. Estudando o Código de Ética da Educação Física de 2003, percebemos que o profissional da área tem que estar em constante problematização de sua atuação profissional, deve buscar formação continuada e aperfeiçoamento moral, deve manter um grande respeito a vida, a dignidade, a integridade e os direitos dos indivíduos, não pode  ter preconceitos de qualquer natureza ou promover qualquer discriminação entre seus alunos, precisa buscar a sustentabilidade do seu meio ambiente e tentar prestar um melhor serviço a um número cada vez maior de pessoas. Com essas coisas todas em mente é que formulei esse projeto.
Muitas pessoas justificam a presença de competições nas escolas porque as crianças enfrentarão competições excludentes ao longo da vida, então seria uma forma de elas já irem se habituando à lei da selva da existência. Mas, um argumento contrário a isso e que considero mais pertinente é que elas também terão que trabalhar futuramente, nem por isso as convidamos à labuta na infância, ao contrário. Muitas leis agora existem para proteger as crianças do mourejar. Mas isso foi uma evolução, um aperfeiçoamento moral da sociedade, nem sempre foi assim. Já houve um tempo em que as crianças trabalhavam longas horas diárias. As crianças também enfrentarão várias doenças, mas evitamos, o tanto quanto possível, de expô-las ao risco de contrair qualquer uma. Tomamos as precauções necessárias para evitar os males, cuidamos da higiene, vacinamos, ministramos os medicamentos necessários, impedimos o bullying, reprimimos os abusos sexuais. A exclusão promovida pelo esporte também não deveria ser castrada? Acreditamos que sim.
Não estaremos impedindo que os excepcionais sigam podendo desenvolver seu potencial atlético, mas os alunos comuns também terão a chance de conhecer a Vila Olímpica, experimentar a pista de atletismo, assistir as competições, fazer atividade física divertida fora da escola, em local seguro e com seus colegas.



 “As vezes falamos como se não houvesse alternativa para um mundo de luta e competição, e como se devêssemos preparar nossas crianças e jovens para esta realidade. Tal atitude se baseia num erro e gera um engano.
O que fazer? Não castiguemos nossas crianças por serem, ao corrigir suas ações. Não desvalorizemos nossas crianças em função daquilo que não sabem; valorizemos seu saber. Guiemos nossas crianças na direção de um fazer (saber) que tenha relação com seu mundo cotidiano. Convidemos nossas crianças a olhar o que fazem e, sobretudo, não as levemos a competir.” Humberto Maturana
A proposta
Convidar todas as crianças, de todas as escolas do município, para três semanas de diversão e movimento ao longo do ano. Uma concomitante ao Jogos Escolares do Rio Grande do Sul em abril, outra em agosto na volta as aulas depois do recesso de inverno e a terceira em outubro, concomitante com os Jogos da Primavera. Todos os alunos poderão brincar na pista, nas quadras, nos ginásios, nas salas de oficinas, nos gramados e no bosque do Centro Esportivo Davi José Fleck (Vila Olímpica). Várias atividades serão oferecidas. Quem quiser competir, compete. Quem quiser, brincar, brinca. Os professores e funcionários das escolas também serão convocados a estar lá, com elas, interagindo, trocando experiências, brincando também.
O transporte dos alunos será feito com os mesmos ônibus escolares e nos mesmos horários de sempre, mas se dirijirão à Vila Olímpica. A refeições serão feitas no refeitório do complexo, assim como distribuídos pelas outras dependências e até mesmo, em caso de tempo bom, sob as árvores do bosque, como um convescote, cabendo a cada escola planejar a alimentação.
Paralelo as competições desses eventos, poderiamos ter teatro, brincadeiras, música, artes plásticas, palestras da polícia, bombeiros e Brigada Militar, palestra do posto de saúde, exames com médicos e dentistas e atividades do Programa Jogando Limpo com Osório, cabendo a cada escola planejar alguma apresentação. Como é um evento que promove a atividade física poderiam ser feitas “estações”, espalhadas pelo terreno onde podem ser oferecidos: Skate, arvorismo, slackline, modelagem em argila, ping-pong, ginástica olímpica, dança, judô, bicicleta, desenho e pintura, pular corda, bambolê, instrumentos musicais, jogos diversos (caça ao rabo, gato e rato, queimada, corrida do saco, corrida da colher, estafetas, gol humano...), capoeira, pintura de rosto, cama elástica, piscina de bolinhas e até mesmo promover um revezamento de escolas que dormem lá: “noite do pijama” com um acampamento nos ginásios.



Palavras Finais
Nosso projeto foi no sentido de promover a inclusão entre todos os alunos da nossa comunidade, acreditamos que é um valor moral que não pode ser negligenciado nos eventos esportivos da cidade de Osório, compreendendo suas individualidades e permitindo o pleno desenvolvimento de suas habilidades. Promoverá uma socialização altruísta e engajada na luta por uma sociedade mais justa, fraterna e ecologicamente mais sustentável. Além disso, projetará a Educação Física no imaginário popular para um momento de alegria e confraternização ao invés de competição e exclusão. Assim agindo, estaremos construindo a sociedade mais virtuosa e sustentável que desejamos. Nos esforçamos mais na redação da justificativa para melhor convencer os professores de diferentes opiniões e ideologias da necessidade do projeto, mas deixamos mais aberto a parte logistica e pragmática da proposta para poder receber contribuições da diversidade de pensamentos dos educadores da cidade. Muito obrigado pela consideração e até nosso primeiro encontro do Mexendo na Regra.



Bibliografia:
Barros Filho, Clóvis de. A Filosofia Explica as Grandes Questões da Humanidade. Casa do Saber, São Paulo, 2014.
Freire, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra, São Paulo, 1996.
Freire, Paulo. Nogueira, Adriano. Que Fazer – Teoria e Prática em educação popular. Vozes, Petrópolis, 1991.
Maturana, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Editora UFMG, Belo Horizonte, 2002.
Morin, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. Cortez Editora, Brasilia, 2002.
Morin, Edgar. A Cabeça Bem Feita – Repensar a reforma, reformar o pensamento. Bertran Brasil, Rio de Janeiro, 2001.
Sites da WWW:
http://www.fao.org
http://wikipedia.com
http://www.confef.org.br

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm