segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

     Paçoca, democracia e o sistema de proteção do molde

 

Algumas semanas antes da promulgação da constituição de 1988, consegui meu primeiro emprego com carteira assinada. Eu era um orgulhoso Técnico em Mecânica recém formado. O trabalho era ridiculamente sacrificado: trabalhávamos 48 horas semanais “virando turno”, seis dias por semana, sendo que na primeira semana o horário era das 6h às 14h, na segunda das 14h às 22h e, finalmente, fechando o ciclo, varávamos a madrugada das 22h às 6h da manhã. O intervalo para refeição era somente de 15 minutos, não dava nem tempo de escovar os dentes. Eu tinha um cargo dos melhores na fábrica de utensílios plásticos, ganhava três mínimos (o salário mínimo era de $35 dólares na conversão daquele tempo), considerado excelente para alguém de 19 anos. Era visto como um almofadinha privilegiado por outros operários com muito mais idade e experiência do que eu, mas sem a qualificação formal que me garantia o dobro do que a maioria dos homens ganhava e três vezes mais que qualquer mulher da fábrica. Todos nos esforçavamos para fazer o trabalho o mais rápido possível, pois sempre nos era lembrado que as máquinas ligadas deveriam estar sempre produzindo, se não, seríamos nós os responsáveis pelo prejuízo da empresa. Tínhamos uma certa raiva de nossos supervisores, pois, além de nos infernizar com ordens, cobranças e ameaças, ganhavam muito mais que nós, seis salários, e podiam até sestear na hora do almoço. Eles usufruiam do conforto de ter o horário normal, das 8hs às 12h e das 13h às 17h. O turno da noite era tido como o mais tranquilo para trabalhar, pois estávamos livres da vigilância da chefia. Porém, alguns tinham tarefas que podiam ser quantificadas pela manhã, para esses era indiferente a presença ou não do chefe, o trabalho tinha que ser feito rapidamente da mesma forma. 

Numa daquelas madrugadas quentes do começo do verão de 1989, eu e um colega mecânico regulávamos a prensa hidráulica de uma injetora. A máquina era moderna, gigantesca, tinha uma pressão de fechamento de 650 toneladas, mas não fechava se tivesse qualquer coisa entre as duas metades do molde, ainda que fosse somente uma folha de papel. Havia um dispositivo eletrônico que controlava o enorme poder do mecanismo. O “sistema de proteção do molde’ servia para proteger o molde e a própria máquina de qualquer avaria, mas, como efeito colateral, protegia também o operador de possíveis acidentes. Enquanto meu colega me ensinava a regular precisamente a máquina, a boca pequena íamos conversando, sempre com medo de alguma delação, sobre quando os direitos da nova constituição chegariam ao chão de fábrica. Alguém havia nos dito que com aquelas novas leis promulgadas agora os turnos poderiam ser somente de seis horas! Que sonho: semanas de 36 horas de trabalho! Estávamos esperançosos da diminuição da jornada, mas, ao mesmo tempo, temerosos de um proporcional achatamento do salário. Meu colega argumentava que se fosse assim, preferia que tudo ficasse como estava. Havia rumores de uma greve geral no país, mas ali na caverna que trabalhávamos, aquela era uma possibilidade que acreditávamos uma verdadeira loucura, O supervisor passou a semana ameaçando de demissão aqueles que viessem a faltar no dia marcado pelos grevistas. Era impossível aderir ao movimento sem represálias dramáticas. Fomos todos criados em meio a ditadura militar, os tempos eram bem mais sombrios naquele regime totalitário e tínhamos muito medo, até mesmo os supervisores. 

Durante aquela conversa subversiva, vimos uma correria no meio do eterno rugir das bombas hidráulicas das injetoras. Fomos nós também verificar o que havia acontecido, era um colega que havia esmagado o dedo da mão direita numa prensa que fazia cabos para baldes com um arame grosso. Ficamos sem saber o que fazer, pois naquela hora não tinha ninguém para socorrer. Procuramos um kit de primeiros socorros e o encontramos todo empoeirado num canto. Enfaixamos a mão do sujeito da melhor forma que conseguimos. A gaze ficou logo vermelha de sangue, assim como o chão em volta da máquina. O peão gemendo de dor, seu dedo obviamente teria que ser amputado, e ainda assim começamos a culpá-lo pelo ocorrido. A prensa era antiga, mecânica, com o mecanismo perigosamente todo exposto, não tinha o sistema eletrônico de proteção do molde, era totalmente analógica, porém, tinha um sistema primitivo de segurança para evitar acidentes, que nosso colega tentou burlar. Havia dois botões de acionamento, um de cada lado da máquina, para garantir que o operário estaria com as duas mãos longe do molde quando baixasse prensando o arame na forma final. Para acelerar a produção dos cabos de balde e dar conta do tanto que tinha a obrigação de fazer na madrugada, o cara enfiou um palito de fósforo em um dos botões para ficar sempre acionado. Assim agindo, ele conseguia abastecer a máquina com a mão direita e acionar o outro botão com a esquerda, acelerando muito o processo, mas aumentando o risco de acidentes. O que aconteceu foi o caricato exemplo de uma das leis formuladas pelo engenheiro americano Edward Murphy: Se algo pode dar errado, vai dar. 

A reflexão sobre a lei de Murphy é levada muito a sério pela indústria depois de muitos dedos esmagados e braços decepados. Na mesma fábrica em que comecei minha curta carreira de Técnico em Mecânica e em outras que trabalhei depois, percebi que os projetistas de máquinas sempre imaginam um operador preocupado com a produção, como nosso colega, ou jovem, inexperiente, distraído, ignorante, tolo, burro ou mesmo bêbado ou drogado, assim como qualquer pessoa inadvertida que esteja passando por perto da máquina . Na indústria, depois que os legisladores inventaram as indenizações trabalhistas, sob pressão da união dos trabalhadores em greves e mais greves, as máquinas só funcionam depois que portas de segurança isolam o operador da possibilidade de algum acidente e se, porventura, alguém às abre durante o funcionamento, as máquinas param imediatamente. A preocupação dos projetistas não é tanto com o operário, mas sim com a máquina, os lucros cessantes e custos que um acidente de trabalho acarreta. O capitalismo se preocupa em se perpetuar, mas do ponto de vista do capital, os seres humanos são insumos para a produção, consumíveis, como óleo ou eletricidade.

Passados trinta e cinco anos que testemunhei aquele acidente na madrugada, muita coisa mudou. A democracia, trazida pela constituição de 1988 como cláusula pétrea, trouxe grandes avanços trabalhistas e sociais. Os operários de fábricas, como eu, podem agora ser bem representados no congresso nacional. Um metalúrgico, Paulo Paim, foi eleito deputado federal pelos trabalhadores da cidade de Canoas e passou a defender que o salário mínimo atingisse pelo menos o valor equivalente a $100 dólares. O direito à greve foi assegurado na constituição, assim como a semana de 36 horas para quem virava turno como nós. As mulheres passaram a ter direito a salários iguais aos homens se exercerem funções iguais. O intervalo ainda é de 15 minutos, mas para jornadas de seis horas. Quem tem jornada diária de oito horas o intervalo para refeições é de no mínimo uma hora. Mesmo municípios pequenos agora tem ambulâncias 24 hs. para socorrer acidentados. Todo mundo tem o direito de divergir em opinião do governo e expressar em voz alta sem temer represálias. O acesso a um curso técnico foi grandemente facilitado com várias escolas federais espalhadas pelo país. O sucesso da democracia na melhoria das condições de vida das pessoas foi tal que se verificou que o salário mínimo cresceu cerca de dez vezes em dólar, chegando a mais de $350 dólares em julho de 2012, somente 24 anos após a promulgação da constituição de 1988. Enfim, digamos que muitos dedos foram salvos desde a redemocratização do país. A educação, a saúde, os direitos trabalhistas, o poder aquisitivo dos trabalhadores, tudo melhorou enormemente com a democracia. A democracia é um sistema em que cada cidadão, independente de sua origem ou formação, tem o mesmo peso na hora das decisões de quem vai mandar nos rumos do país. Até mesmo um humilde operário, Luis Inácio Lula da Silva, foi eleito presidente da república após a promulgação da nova constituição, ele que, coincidentemente, teve um dedo decepado virando turno na madrugada de uma indústria metalúrgica. 

 O presidente Lula tornou-se mundialmente conhecido por liderar o país em direção a uma democratização radical. A universalidade dos direitos passou a ser a regra. A riqueza produzida pela nação passou a ser melhor distribuída a todos os cidadãos possibilitando primeiro a erradicação da fome, sua prioridade primeira, mas também possibilitando o acesso a bens e serviços antes restritos a uma pequena elite. Casa própria, luz elétrica, fogão a gás e geladeira ou até mesmo carro e viagens internacionais de avião se popularizaram entre os menos favorecidos. No momento que escrevo esse texto, trinta e cinco anos após a consolidação da democracia, Lula se reelegeu para um terceiro mandato e, ainda antes de tomar posse, passou a ser recebido como um estadista heróico nas reuniões internacionais para decidir o futuro mundial.

No entanto, obviamente, temos muito ainda o que fazer. Engana-se quem acredita que a democracia é um caminho suave e direto rumo à virtude, numa progressão moral sem volta para uma sociedade eticamente mais sofisticada. A democracia é como uma prensa analógica dos meus tempos de operário: uma máquina maravilhosa criada pelo engenho humano que tanto pode produzir maravilhas, excelentes utensílios plásticos para o consumo, como pode esmagar alguém se não houver um sistema de proteção do molde ou for mal utilizada. Poderia elencar uma série de exemplos, mas gosto de lembrar a questão do próprio tamanho da humanidade. Em 1988, quando foi promulgada a atual constituição brasileira, a população mundial contava com pouco mais de 5 bilhões de habitantes. Agora, somente 35 anos depois, graças também à democracia em muitas nações, já somos 8 bilhões. A mesma democracia que pode levar a humanidade ao seu melhor momento, ao paraíso terrestre, tornando universal o direito à comida farta, programas de saúde, moradia e educação para todos os seres humanos, fazendo com que a longevidade da população aumente enormemente e gerações de bebês convivam com seus trisavós, pode fazer com que nossa espécie se torne um flagelo, um inferno terrestre, para todas as outras espécies do planeta. O aumento da população humana faz com que a biodiversidade diminua vertiginosamente ameaçando toda a biosfera e, até mesmo, a própria humanidade. Nosso sucesso absoluto pode levar a nossa extinção! A democracia pode ser extremamente perigosa.

Nos debates públicos, as questões políticas se deparam com um cipoal de valores morais, ambientais, religiosos, econômicos, sociais ou de qualquer natureza que muitas vezes são conflitantes e de difícil solução. A vontade da maioria pode ameaçar a própria existência humana. Se todos tiverem seus desejos de consumo e bem estar justamente atendidos, o planeta não nos sustentará. É justo que todos tenham potinhos e baldes plásticos produzidos nas injetoras que eu regulava na madrugada para pôr comida na geladeira e fazer a faxina em casa. Porém, os resíduos desses produtos podem contaminar de forma permanente e irreversível os mananciais de água e os oceanos. Com certeza, os baldes que ajudei a produzir em 88 ainda não se decompuseram, mas já devem ter se quebrado e virado aterro em algum lixão. É justo que todos tenham o direito de ter um carro e viajar de avião, mas os gases emitidos por essas atividades podem levar o clima a um colapso global. Ingênuos creem que a humanidade encontrará soluções em tempo hábil para qualquer problema ambiental, porém, a experiência prática prova que não é assim tão fácil. Carros elétricos, alardeados como a grande solução para a emissão de gases de efeito estufa, ainda antes de ser vendidos, somente no processo de fabricação, já contaminaram o solo, exauriram as reservas minerais, poluiram os mananciais e emitiram mais gases de efeito estufa do que farão em toda sua vida útil. Não é à toa que a primeira cúpula internacional que o presidente eleito se preocupou em visitar foi a que trata das mudanças no meio ambiente devido, no fim das contas, o sucesso humano como espécie. Há muito o que se refletir, pois os conflitos morais vão ao infinito. Na melhor das intenções, o presidente Lula quer democratizar o acesso ao churrasco, ele fala em picanha! Isso seria ótimo! Os pobres atualmente não têm direito ao acesso à carne. Porém, a democratização do churrasco é péssimo para o meio ambiente, é um verdadeiro tiro no pé. Está provado que a pecuária é pior para a devastação ambiental e emissão de gases de efeito estufa até mesmo que os próprios carros!!! Uma democracia radical seria insustentável globalmente.

Outro perigo da democracia é exatamente o de colocar todo o poder de decisão dos rumos do país na mão daqueles que são eleitos para liderá-lo. Se as pessoas escolhidas não forem capacitadas, os caminhos escolhidos podem ser trágicos. Exemplos não faltam. Adolf Hitler, o líder nazista alemão, foi democraticamente eleito mais de uma vez. Ele identificava nos judeus, gays, ciganos e negros (alemães que não eram arianos “puros”), a fonte de todos os males que havia na Alemanha. Com um discurso contundente que falava de Deus, da família, da pátria, de ódio aos opositores e plantando o medo, induziu a população daquele país a votar numa solução genocida: a eliminação daqueles cidadãos vistos como o problema, além de todos que se opunham àquele pensamento. Não poderia haver divergências de pensamento, a adesão ao pensamento nazista tinha que ser total, o pensamento da população tinha que ser totalmente igual para que, no entender nazista, a sociedade alemã prosperasse. Repetidas vezes os alemães votaram democraticamente em lideranças assim, totalitárias. Quem não fosse um alemão patriota, que aderisse ao pensamento de pureza ariana, tinha que ser marcado com uma estrela e ser segregado em guetos do resto da população para não contaminar os patriotas puros.

Em 2017, os Estados Unidos elegeram democraticamente Donald Trump como presidente. Ele via os estrangeiros residentes no país como culpados do desemprego da população e da ruína da economia. Tinha um discurso patriótico contundente (“Let’s make America great again") pregando que para o país voltar a ser uma grande potência, era necessário combater os estrangeiros como uma praga. Propôs construir um grande muro entre o México e os Estados Unidos. Caçou e colocou em jaulas coletivas iluminadas dia e noite todos os imigrantes ilegais e separou as crianças de suas famílias. Além disso, estimulou o uso de combustíveis fósseis para o aquecimento das casas ou para o deslocamento de veículos, aumentando os problemas de mudanças climáticas. Sua gestão fez o país voltar a problematizar questões morais resolvidas há décadas, hostilizar parceiros comerciais tornando o país um problema diplomático mundial. Apesar de haver, obviamente, uma oposição àquela liderança nefasta, a vontade da maioria naquela eleição prevaleceu por quatro anos, tempo de seu mandato, que por pouco não foi estendido democraticamente. 

Não precisamos ir tão longe no tempo, como no caso de Hitler, ou do espaço, como em Trump. Aqui mesmo no Brasil, recentemente, escolhemos um senhor completamente despreparado para presidir a nação, Jair Bolsonaro, que admitia ainda na campanha eleitoral que não entendia de economia, nem de educação ou saúde. Dizia que sua especialidade era matar e pregava que toda a população se armasse. Apontou como inimigo o Partido dos Trabalhadores, seus membros e simpatizantes, como causa de qualquer mal que assombra o país e os acusou de planejar tornar o país uma sociedade comunista. Comunismo é um conceito abstrato que quase nenhum eleitor sabe elaborar uma definição ou dizer seus efeitos práticos reais, porém assusta adultos como o homem do saco aterroriza crianças. Bolsonaro fez um governo realmente eficiente em sua especialidade, matar. Durante a pandemia de Covid-19, propagandeou medicamentos ineficazes, impediu o quanto pôde a compra de vacinas, atrapalhou decisivamente as pesquisas para encontrar uma cura para a doença retirando verbas das universidades e negligenciou a distribuição de insumos para os hospitais tratarem os doentes. O resultado de sua inépcia ao lidar com a saúde da população foi em torno de setecentos mil mortos só daquela doença. A mesma eficiência assassina o ex-presidente mostrou ao lidar com indígenas. Ignorou alertas de invasões em terras indígenas, ao contrário, as estimulou praticamente convidando grileiros e garimpeiros ilegais a entrarem, desmatarem, assorearem e contaminarem os rios das reservas além, claro, de matar indígenas. Seu objetivo abjeto foi alcançado com extremo sucesso: após sua passagem no poder, indígenas tinham morrido, emagrecido e adoecido aos milhares, assim como nos campos de concentração do genocida Hitler. Aliás, Bolsonaro se inspirou em muitos dos eficazes slogans nazistas para se eleger, provocando forte engajamento na população com palavras caras para o cidadão comum como Deus, pátria, família, liberdade, etc. 

Mesmo passado os quatro anos de seu governo desastroso em todas as áreas e até hoje estarem sendo revelados todo tipo de negligência, imperícia e imprudência, tudo embebido em altas doses de corrupção, além da óbvia perversão moral, ainda assim Bolsonaro retém um grande capital político, indicando que muitos eleitores não hesitariam em novamente o eleger para qualquer cargo que se candidate. O mesmo acontece com Trump ou Hitler. Os cidadãos perversos, vis, boçais e corruptos - e são muitos - sempre encontram representantes elegíveis. A história prova que isso é verdade. Aqui no Brasil, Collor de Mello foi o primeiro presidente eleito democraticamente, após longo período de ditadura militar. Pode-se alegar que os eleitores brasileiros estavam mal preparados para votar por falta de prática. Collor seduziu os eleitores com um discurso contra os “marajás” e a corrupção do governo, mas, após um ano e meio foi retirado do cargo exatamente por ter se provado que ele mesmo é um marajá corrupto. Após os oito anos de inelegibilidade decorrentes do processo de impeachment que sofreu, os alagoanos o escolheram como senador, o mais alto cargo do poder legislativo, mais de uma vez. Ou seja, o eleitor médio não se importa com corrupção, perversões morais, ignorância. É realmente difícil de entender com o que o eleitor médio se importa. Por ser professor de escola básica pública - convivo com as camadas menos favorecidas da população, por força do ofício, e com a elite intelectual do país que frequenta os centros de divulgação do conhecimento da humanidade, as universidades, por desejo de formação pessoal - acredito que o eleitor médio não compreende o processo democrático das eleições por mais esforços que nós professores façamos para que entendam. O eleitor médio não sabe, não quer saber e tem raiva de quem sabe sobre política! Não entende, não quer entender e tem raiva de quem entende, se orgulha de não gostar de política. Porém, lhe é exigido que vote de dois em dois anos. Por estar absolutamente alheio ao que aquele processo significa, o cidadão comum escolhe como representantes pessoas que ele simpatiza: apresentadores de televisão, jogadores de futebol, radialistas, artistas, etc. Acredito que o exemplo mais emblemático, mas infelizmente, não o único, é do Palhaço Tiririca. Tiririca, um conhecido comediante da televisão, se elegeu como deputado federal mais votado do país debochando do sistema político eleitoral do país usando o slogan rimado: “Vote no Tiririca, pior que tá, não fica!” O artista, que mal era alfabetizado (exigência legal para ser deputado) admitia em campanha, as gargalhadas, que não sabia o que fazia um deputado, mas que assim que descobrisse contaria. Esse senhor se elegeu por quatro mandatos seguidos e, curiosamente, depois de sua primeira eleição em 2010, o país entrou numa incrível espiral de piora econômica e social. Sua trajetória demonstra claramente como o eleitor médio percebe e valoriza o processo eleitoral. 

Logo abandonei a carreira de mecânico na indústria, era muito perigoso e sacrificado. Só o fiz, claro, por realmente ser um almofadinha privilegiado, como suspeitavam meus colegas de trabalho. Muitos deles estão lá até hoje, alguns com dedos a menos ou já aposentados por invalidez permanente. Consegui terminar uma faculdade de licenciatura e me tornei professor graças à acolhida de minha família suficientemente abastada. Fui morar no litoral, não viro turno, varo as madrugadas dormindo, estou totalmente alheio aos perigos do chão das fábricas, posso até sestear no horário do almoço e passeio com os cachorros na praia antes e depois do trabalho. Tenho uma vida bastante invejável, até excedentes para me dar ao luxo de adotar pets. Adotei três cachorros de rua, aos poucos, cada um ao seu tempo, mas com histórias semelhantes. O último foi uma jovem cadelinha no cio, acredito que com menos de um ano, eu a protegi do assédio de sete outros cães de rua a colocando no meu pátio. Conseguimos a sua castração pela prefeitura e passamos a cuidá-la e alimentá-la até que arrumasse um lar definitivo que acabou sendo nós mesmos. A chamamos de Paçoca, uma vira-latas caramelo clássica, alegre, estabanada e disposta. Costumava sair com os três cachorros sem guia ou mesmo coleira no pescoço para não ficarem neuróticos no pátio cercado. Sua alegria é contagiante nesses momentos de liberdade. Saio cedo da manhã, enquanto as ruas estão às moscas no bairro ermo em que vivo para evitar qualquer acidente. 

Na véspera da eleição em primeiro turno para presidente desse ano, numa dessas excursões à praia, quando estávamos a duas quadras do mar, Paçoca correu à frente usufruindo despudoradamente de sua juventude entusiasmada, ávida por cavar as dunas ou rolar nalgum peixe morto. Porém, que tristeza, um carro cruzou seu caminho a toda velocidade, com algum jovem animal na direção, também ávido para usufruir todos os pulsões de sua vida, ou talvez algum idoso já desatento ao caminho, não sei. Não sei quem era o motorista, pois seguiu seu caminho, na mesma pressa indiferente ao destino da cadelinha vira-lata. O fato é que Paçoca morreu ali mesmo. 

Talvez, caro leitor, tu não vejas relação entre a morte da Paçoca e o sistema de proteção do molde das prensas hidráulicas com a democracia, mas asseguro que estão intimamente relacionados. A relação entre os temas é estreita e não desviei do caminho argumentativo nem por um instante. Esclareço: Paçoca é exatamente igual a um eleitor médio, completamente inconsciente das decisões que toma e prioriza suas alegrias de curto prazo, imediatas. Ri do voto de protesto ou deboche que depositou nas urnas indiferente às consequências de longo prazo que ignora completamente. E a democracia é uma máquina que produz maravilhas, mas não tem sistemas de proteção de molde. Apesar das urnas eletrônicas, que nos informam quase que instantaneamente o resultado do escrutínio, o processo decisório ainda é tão analógico quanto o da Grécia antiga. Se mal utilizado pode destruir o país! Ainda não foram criados mecanismos eletrônicos para proteger a máquina de avarias. Ainda acusamos uns aos outros pelos acidentes apesar de a culpa não ser dos usuários da máquina, mas sim intrínseco a máquina democrática ela mesma. A lei de murphy é implacável, se algo pode dar errado, vai dar. Tiriricas, Hitlers, Trumps, Collors e Bolsonaros vão se eleger e legislar ou administrar. Eles ameaçam a própria existência da humanidade. A democracia, analógica como está, pode ser perigosa. 

O ato de votar da democracia, aquele inventado na Grécia antiga, já está obsoleto e não é um dogma religioso que precisamos ter como sagrado. A democracia em si, aquela que atribui a todos os cidadãos o mesmo valor e procura distribuir igualmente os direitos e deveres e a riqueza produzida gerando bem estar social para todos, essa sim tem que ser preservada. O Brasil tem procurado exercer um estado democrático de direito há 35 anos e ainda convive com extrema pobreza e diferença social, ou seja: os direitos ainda não são assim tão democráticos. Os Estados Unidos têm ainda mais tempo de democracia, cerca de 200 anos, e também tem má distribuição de riquezas e desigualdades brutais em acesso à saúde, educação e moradia. Já a China não é nada democrática em termos eleitorais, no entanto sua economia caminha a passos largos para ser a maior do planeta e proporciona aos cidadãos chineses uma maior democracia no acesso a bens e serviços públicos. Cuba também não tem democracia para a eleição de lideranças para governar ou legislar há mais de 60 anos, mas nem por isso deixou de construir o melhor sistema de saúde das américas e o segundo melhor sistema de ensino do mundo. Sozinha, a democracia não é uma panaceia social. 

Assim como as constituições e as prensas, a democracia também deve se modernizar. Existem sistemas de inteligência artificial que podem proteger a máquina e, como efeito colateral, os usuários de problemas de funcionamento. Sim, eles já existem. Tanto existem que já são utilizados por aqueles atores sociais que são contra a democracia e tentam derrubá-la. Essa tecnologia já é utilizada largamente nas redes sociais cibernéticas. O Facebook, Twitter, TikTok ou YouTube são exemplos de aplicativos para celulares que já detectam comportamentos desviantes do que seria ético naqueles espaços públicos e automaticamente os excluem. Se você tentar publicar uma vídeo pornográfico ou algum texto racista, terás a conta bloqueada quase que instantaneamente. Os carros mais modernos, como os da marca americana Tesla, já tem sistemas autônomos para proteger o motorista, o patrimônio alheio e pedestres, além do próprio carro. Precisamos começar a programar um sistema de proteção do molde, algoritmos que protejam a democracia, os mecanismos de bem estar social e a própria humanidade de sua ingênua alegria de viver, tão ignorante como a da cadelinha paçoca.