quinta-feira, 20 de abril de 2023

 A Cultura da Guerra e a Pedagogia da Resignação 

A íntima relação da Educação Física escolar com os ataques à escolas


Há algumas semanas, na cidade de Blumenau, fundada por colonos alemães no interior de Santa Catarina, um rapaz de 25 anos pulou o muro de uma escola de Educação Infantil armado com uma machadinha e matou quatro crianças que brincavam no pátio com golpes na cabeça, além de ferir outras cinco. Logo em seguida, caminhou até um quartel da polícia militar na vizinhança e se entregou. O que motivou o massacre ainda está sendo investigado, mas, aparentemente, a carnificina teria servido como instrumento para alcançar uma fama que de outra forma seria inalcançável.   

A barbárie chocou a opinião pública tal a inesperada e desnecessária brutalidade contra cidadãos tão pequenos, frágeis e inocentes, incapazes de provocar mal a qualquer pessoa. Especialistas em educação, segurança pública, sociologia e psicologia se esforçaram em tentar explicar a ocorrência e deram dicas de prevenção de possíveis casos semelhantes no futuro. Políticos tentaram aproveitar a ocasião para provar teses que defendem. A imprensa responsável cobriu o fato com prudência, sem mostrar as cenas de extrema violência captadas por câmeras de segurança ou mostrando o rosto do criminoso para não lhe dar a notoriedade que almejava. 

A crueldade gratuita do vândalo gerou uma verdadeira avalanche de opiniões de senso comum em outras instituições de ensino, delegacias, praças, mercados ou qualquer lugar onde duas pessoas se encontram Brasil afora, soterrando o imaginário popular com entulho de ignorância. A doxa gerada com a revolta sugeria desde linchamento imediato ou pena de morte do agressor em processo breve, até professores armados e policiais nos pátios. Se acredita que com mais armas e violência se acabaria com as armas e violência. O leigo acredita que é um caso isolado e basta eliminá-los ou, no mínimo, impedi-los a bala, para que o problema acabe. Infelizmente, ataques a escolas não são incomuns, poucos dias antes desse ataque do interior catarinense, um adolescente havia esfaqueado uma professora de 71 anos, Elizabeth Tenreiro, na Vila Sônia, periferia da cidade de São Paulo, parece se tratar de um problema estrutural. 

O ineditismo de Blumenau que arvorou o debate foi a incompreensão de um ser humano que age diferente dos demais de forma tão grotesca. O assassino não havia sido aluno na instituição, não buscava uma vingança contra alguém que o oprimiu no passado, como é comum nesses casos, mas teve talvez somente o perverso prazer em matar ou a procura por uma notoriedade a qualquer preço. As massas querem explicação para ato tão assimétrico e exigem que se lime fora do corpo social aresta tão aberrante. 

No entanto, é interessante reparar que a escola é o alvo preferencial desses desajustados aqui no Brasil, assim como nos Estados Unidos. Em outros países se atacam templos religiosos, mercados públicos ou centros militares e policiais. Me sinto forçado a constatar que a escola se tornou o imo da nossa sociedade, o estado está ali resumido, em sua essência, cuidando e educando seus sócios mais jovens. Se o estado se ausenta em alguma área, na escola é que se deve reclamar seu justo quinhão. Os professores são geralmente o primeiro funcionário público que os cidadãos brasileiros percebem como alguém que pode os escutar e encaminhar suas demandas, desde alimentação, passando por orientações de saúde, até lugar para morar, ou seja, onde se busca e se encontra cidadania plena. Até mesmo o ato de votar se dá nas escolas, onde muitos dos mesários são professores. Outra constatação óbvia, é que os delinquentes são todos homens brancos e jovens. A partir daí, me atrevo a intuir muita coisa. 

Como sou homem branco, professor nomeado em escola pública, acredito que tenho lugar de fala. Apesar de já ser um velho, próximo a aposentadoria, tenho muita vivência de chão de escola e posso contribuir no debate do ponto de vista de dentro. No início da carreira, trabalhei como professor de Educação Física dez anos em escolas de Educação Infantil no estado de Santa Catarina, semelhantes àquela atacada em Blumenau. Desde então, passei para o Ensino Fundamental, exercendo a docência em escolas públicas como a da professora Elizabeth, esfaqueada em São Paulo. Me chamou a atenção, que tanto num caso como no outro, todos os especialistas entrevistados para opinar sobre ataques em instituições de ensino eram de fora da escola. Políticos, psicólogos, juristas, antropólogos, sociólogos, se ouviu de tudo. Curioso que professores ou estudantes só foram consultados se diretamente envolvidos, para descrever o fato em si: como fizeram para imobilizar o agressor, como as crianças choravam de desespero, com a sala ficou lambuzada de sangue por todos os lados, como o delinquente parecia transtornado, etc. Em semanas de cobertura jornalística, ninguém conversou com um professor ou um estudante para perguntar: E aí, porque tu achas que acontece esse tipo de coisa?

Nos dias que se seguiram ao sinistro da creche, impressionados, as crianças e adolescentes da escola onde trabalho faziam conjecturas sobre possíveis ataques. Me perguntaram diversas vezes para onde iriam correr se um maluco entrasse na instituição com uma arma. Eles mesmo constataram quais eram os locais onde não havia rotas de fuga. Me indagaram se eu tinha medo de morrer e fizeram um levantamento mental listando os desajustados da escola que seriam capazes de uma chacina. Comentavam, alvoroçados pelos corredores, boatos de grandes ataques sincrônicos no Brasil inteiro para causar o caos, aos moldes do 11/9 nos Estados Unidos, cada rede social aponta uma data diferente. 

De 2002 para cá tivemos 22 ocorrências desse tipo em escolas, 12 nos últimos 4 anos. Percebo que estamos nos aproximando da situação americana. Nos Estados Unidos esse tipo de ataque é epidêmico, grandemente facilitado pelo acesso livre às armas de fogo a qualquer cidadão. Aqui ainda usamos machadinhas e facas pelo simples fato que armas de fogo são caras para o poder aquisitivo do povo. Mas, isso não abranda em nada a dor das famílias de mortos e feridos e muito menos diminui a discrepância desse hediondo fenômeno social. Houve um grande esforço durante o governo de Jair Bolsonaro para popularizar a compra, o uso recreativo, a posse e até o porte de armas de fogo carregadas. Esse senhor fez um grande desserviço à nação banalizando o ódio e as mortes. Enquanto deputado, Bolsonaro homenageava torturadores da ditadura militar no plenário da câmara, dizia que o correto deveria ter sido “matar uns trinta mil” que questionavam a forma autoritária e antidemocrática do regime totalitário. Seu discurso de ódio contra as minorias foi crescendo e, pouco a pouco, foi sendo incorporado ao senso comum como coisa normal. Em campanha eleitoral prometia “metralhar a petralhada”, dizia que pessoas de outras religiões deveriam se curvar a maioria de cristãos, que negros quilombolas não faziam nada e os comparava a animais, falava abertamente que os homossexuais deveriam respeitar a maioria de heterossexuais e não demonstar em público sua afetividade, que as reservas indígenas não deveriam ter mais espaço. Bolsonaro tem verdadeiro amor pelas armas e queria armar todo mundo, inclusive crianças. Bateu continência a bandeira americana, onde armamento e munição são comprados em lojas até por adolescentes como se fossem chicletes. Durante sua gestão, permitiu que crianças a partir dos seis anos treinassem em escolas de tiro, pegava crianças de colo e as fazia imitar armas com as mãos, aliás, fazer o gesto de uma arma com as mãos se tornou sua marca de campanha. O discurso de ódio às minorias, obviamente fascista, ficou tão comum e banalizado que contaminou grande parte do povo, principalmente a população menos favorecida intelectualmente, aquela que não entende o porquê do devido processo legal, aquela que crê que o linchamento seria uma coisa razoável e legitima, aquela que não tem ideia do que significa o facismo. Felizmente, seu mandato odioso que semeava a morte acabou. Os especialistas em segurança pública são unânimes em afirmar que quanto menos armas circularem pela população, menos violência será gerada. Apesar do senso comum e do simplório e xucro (e exatamente por isso popular) ex-presidente crerem que mais armas assegurariam mais segurança, a ciência prova com extrema facilidade que é o contrário, mas Bolsonaro era um negacionista da ciência convicto e tem muitos seguidores. 

Atualmente, dentro da escola é o professor de Educação Física aquele encarregado de ensinar as crianças a lidar com o conflito. Esportes, jogos e lutas são guerras simuladas, conflitos com regras onde cada aluno deve se esforçar para atingir um objetivo que é diametralmente oposto ao de outros colegas. Uns se lançam num esforço físico intenso contra os outros e se obtiverem sucesso na sua empreitada, os outros certamente obterão o fracasso. Isso é a própria receita para geração do ódio. Estamos perpetuando uma cultura de guerra. Numa corrida entre 20 alunos, 19 sairão perdedores. As aulas de Educação Física são verdadeiras fábricas de derrotados, cheias de oportunidades para alguém ser excluído, ridicularizado, sofrer agressões e ofensas de toda sorte. O bullying encontra nas atividades competitivas da Educação Física momento autorizado para humilhações diversas. O discurso oficial do professor, que aprendeu como certo e passa para seus alunos, é que devemos aceitar a derrota e o fracasso como coisas normais, momentos de aprendizado para a vida futura que será uma grande batalha. O dogma que se passa é que a vida é uma competição e que portanto, temos que aprender a se comportar tanto na vitória, escassa, quanto na derrota, abundante. Chamo isso de Pedagogia da Resignação. 



Se um leigo entra numa escola para observar, nem uma semana será necessária para perceber que dificilmente se vê alunos brigando ou chorando nas aulas de matemática, ciências ou história. Porém, é na Educação Física que os professores têm acesso fácil às mazelas e dores sociais que afloram abundantemente durante as aulas. A cognição fica em segundo plano e questões de gênero, religião, raça, classe social ou mesmo força, porte físico e capital estético brotam do chão das quadras de esporte com muita fertilidade. A vulnerabilidade dos alunos fica exposta e visível a olho nu para qualquer observador. A raiva fica evidente na dividida de bola ou na força empregada no chute do futebol. As frustrações são descontadas na violência da cortada do vôlei. As imperfeições e erros são punidos imediatamente aos gritos e palavrões. Um interesse contrariado na cobrança de um lateral é tomado como ofensa pessoal. Na conjuntura em que vivemos, o professor de Educação Física tem que estar sempre ciente que tem muito material combustível pronto para explodir dentro de cada criança e na presença do comburente oxigênio oferecido pela respiração forçada faz com que a simples cobrança de um escanteio seja a fagulha que acende um pavio muito curto. O professor tem que estar constantemente atento para abafar focos de incêndio em esbarrões em quadra e até mesmo conter explosões violentas de fúria irracional por mal entendidos. 

 A Educação Física deveria usar o momento atual, em que esses ataques às escolas estão se tornando comuns, como um excelente gancho pedagógico para se refletir sobre a sociedade em que vivemos. Uma boa hora para propor mudanças e construir uma cultura de paz. Qual a sociedade que queremos? Uma sociedade do conflito, da guerra, de uns contra os outros? Não seria melhor uma sociedade de paz, sem competições e onde não haja perdedores? A disciplina de Educação Física deve usar a situação para se posicionar, o momento atual é um prato cheio, levantar o debate, refletir com seus alunos sobre a situação que nos metemos. O que podemos fazer para que a vida não seja infernal para as pessoas? Chamou a atenção, naquele caso da Vila Sônia em São Paulo, que quem conteve o agressor foi a professora de Educação Física, Cinthia Silva Barbosa. Não deveria ser para isso que um professor tem que estar preparado, conter arroubos violentos de desajustados, perdedores sociais. No entanto, infelizmente, professores de Educação Física estão se tornando especialistas em apartar brigas e segurar agressores furiosos. O diálogo e a busca de um consenso não apareceriam no Jornal Nacional, mas é para isso que Cinthia deveria ser formada, para debater com seus alunos como construir uma sociedade mais justa para todos. 

É importante perceber o quanto a Educação Física, particularmente o esporte, é muito valorizada socialmente. Acesse qualquer jornal e perceba que 20% do espaço é sobre competições esportivas, tanto em jornais impressos como televisivos. Os eventos esportivos são televisionados ao vivo por horas em momentos nobres da semana, sábados e domingos à tarde ou quartas à noite. Grandes empresas disputam o direito de patrocinar os eventos. A maior sala de aula, disparado, de qualquer escola é sempre o ginásio “poliesportivo”. Se pensarmos em área construída, o ginásio é cerca de 10 vezes maior que qualquer outra sala de aula da escola, mas o correto é pensar em volume, quando percebemos que os ginásios são quase 30 vezes maiores. Onde há um ginásio poderiam haver outras 30 salas de aula, 20 se descontado o espaço necessário para escadas, áreas de convivência e banheiros. Os materiais didáticos mais caros também, disparado, são os da Educação Física. Uma bola de voleibol custa R$ 50,00 e ela é consumível, dura pouco. Fica evidente que há uma disposição política grande para que a pedagogia da resignação seja onipresente criando na sociedade uma idolatria ou, no mínimo, uma naturalidade dos esportes como coisa indispensável e necessária à vida em comunidade e até à saúde pública.  

Jogos competitivos são comuns à humanidade desde a antiguidade. O slogan romano do pão e circo, “ad captandum vulgus, panem et circenses”, para resignação das massas, foi requentado pelo capitalismo e ligeiramente ressignificado. Assim como na roma antiga, as competições voltaram a ter um espaço social com magnitude monumental depois da revolução industrial. Grandes estádios passaram a ser financiados e construídos por quem queria manter o status quo de dominação. Dogmas sociais caros aos donos dos meios de produção passaram a ser ensinados às massas aos montes em todas as mídias de forma metafórica usando os esportes ou as lutas: “Há tanta honra na derrota quanto na vitória”. Ensinando que viver na miséria, enquanto alguns privilegiados vivem de forma nababesca, é normal, fracassar sempre também deve ser visto como justo. “Não se muda as regras durante o jogo”. Há que se obedecer as regras, as autoridades, não propor mudanças ou alternativas, ricos serão sempre ricos e pobres sempre pobres, “c’est la vie", resigne-se. “O importante não é ganhar, mas sim competir”. O que isso quer dizer realmente é que todo mundo tem que continuar trabalhando mesmo sem vencer na vida.  “Só vence na vida quem se esforça muito!” Essa é a maior pulha de todas, sugere que a sociedade capitalista é meritocrática, mas isso é uma falácia ridícula. A chance de sair um milionário de uma família de catadores é tão improvável quanto a de sair um catador de uma família de milionários. Mesmo que o catador levante às 3 da madrugada, como já fazem, trabalhar 16 horas por dia, como é normal fazerem, sob sol, chuva ou frio, como estão acostumados a fazer, jamais acumularão riqueza alguma ou serão considerados vencedores, por mais esforçados e honestos cidadãos que forem. Enquanto o filho de um rico, pode acordar ao meio dia, jogar videogame a tarde toda e ainda assim será rico. Perceba que os bordões ensinados à população e repetidos insistentemente por todos os lados não deixam margem para a suposição de uma sociedade em que não seja necessário competir para viver bem. O fato de que a vida é uma selva parece ser uma coisa imutável, a sociedade tem que ser como um eterno conflito ganha/perde, onde alguns poucos vencem, mas a maioria sairá fracassada, perdedora, “loser” como dizem os americanos, não se permite a simples suposição de uma sociedade alternativa ganha/ganha, onde não haja perdedores. Assim como os césares controlavam as massas com algum alimento e uma corrida de bigas, os capitalistas donos dos meios de produção distribuem algum emprego e patrocinam os times de futebol e nos ensinam todos os dias que a vida é assim, competitiva.

A trajetória humana indica um distanciamento das leis da selva, o que é bom. Já houve um tempo em que até canhotos eram mortos por serem diferentes, mas o esforço do intelecto na direção de uma sociedade mais igualitária é evidente. Os Seres Humanos menos favorecidos ganharam muito com uma ética de maior sofisticação moral. A escravidão é fortemente combatida pela legislação e está quase erradicada. As mulheres têm direito a voto com o mesmo valor dos homens. As crianças são protegidas do trabalho. Os idosos são aposentados e mantém suas remunerações mesmo sem trabalhar. Os gays podem se relacionar abertamente e até casar formalmente. As minorias passaram a “empatar” no jogo social pois não há melhores ou piores, mas sim direitos iguais. Não devem existir vencedores ou perdedores na vida. Democracia é sobre isso, igualdade, fraternidade e liberdade, ensinamento cristão que foi adotado pelas repúblicas mais modernas. 

Na escola onde trabalho atualmente, tenho um aluno no oitavo ano que é filho de uma catadora de recicláveis. Vou chamá-lo de Maicon, que é um nome fictício para ele mas bem comum nas escolas públicas brasileiras devido a vassalagem cultural aos Estados Unidos. Imitar a pronúncia de algum nome estrangeiro, como o do cantor Michael Jackson, com grafia nacional, é bem normal, já tive muitos maicons. Esse Maicon é meu aluno desde os seis anos no prézinho, quando vinha orgulhosamente vestido com a fantasia de homem aranha, seu super herói preferido. Logo Maicon caiu na real e deixou de usar a fantasia de homem aranha, o vi nas madrugadas do verão catando latinhas nas lixeiras do bairro com sua mãe. Ele passou a vestir a fantasia dos super heróis dos adultos, dos vencedores da vida real, os jogadores de futebol, profissão que sonha exercer. Maicon, como qualquer brasileiro, ouve infinitas vezes, todos os dias, em qualquer televisor ligado, rádio, site ou jornal aberto sobre a mesa do bar, histórias de superação, de rapazes negros e favelados como ele, que chegaram lá, venceram através do esporte, enriqueceram, deram vida melhor para família, foram morar em países onde o nome Maicon já está na pronuncia correta. A história que contam sugere que é possível, basta se esforçar, seguir as regras, obedecer as autoridades, jogar honestamente! Maicon sonha em um dia também ser entrevistado pelo repórter do Globo Esporte, contar como saía com a mãe de madrugada, sob chuva, com fome, frio e sono, para catar latinhas, mas com muito esforço, ele conseguiu! Indo atrás desse sonho, Maicon se esforça, não falta às aulas, come na hora da merenda, repete e raspa o prato, obedece, me escuta com atenção, mas principalmente, aproveita todas as oportunidades para jogar bola. Antes da aula, no recreio, no fim da aula esperando o ônibus escolar, nas minhas aulas de Educação Física quando sobra um tempinho. Maicon vê no futebol sua única chance de sair da miséria, é isso que lhe é ensinado todos os dias, por todos os lados, a única forma de ser reconhecido como vencedor, na sociedade racista em que vive, que segrega por classe. Existem maicons aos milhares no Brasil, oprimidos que aceitam resignadamente as regras desse jogo excludente, que, como dizia Paulo Freire, sonham em virar opressor.

Uns dias antes do massacre da creche em Blumenau, Maicon me ouvia falar sobre Tutting. Tutting faz parte do movimento Hiphop, é uma dança com as mãos criada pelos excluídos americanos, negros e hispânicos, resgatando a herança memética africana, dos hieroglífos egípcios do tempo do faraó Tut. Eu explicava que os dançarinos não aceitavam aquele discurso que os africanos eram pobres, escravos, ignorantes, incapazes. Eles pesquisaram sobre seus ancestrais e descobriram que a África tinha os países mais ricos do mundo antigamente, impérios, as maiores bibliotecas, as maiores universidades, os maiores cientistas. Um tempo em que os europeus iam à África para aprender, para conhecer o centro do mundo, ficar perto de sábios para ouvi-los falar. Uma época que o Farol de Alexandria (uma das sete maravilhas do mundo antigo), a mais alta construção do planeta naquele tempo, iluminava os intelectuais do mundo todo que se lançavam ao mar atrás de erudição os guiando para a iluminação do saber, do conhecimento, na maior biblioteca que existia então. Os dançarinos de Hiphop queriam voltar no tempo, antes que seus ascendentes tivessem sido sequestrados e levados acorrentados para o cativeiro da América. Eles queriam mimetizar na dança o tempo que as pirâmides do Cairo eram novas, maiores e mais brilhantes que a pirâmide do Louvre hoje em dia, queriam imitar aqueles ancestrais dos quais descendiam, queriam se empoderar, se orgulhar de suas origens. Percebi que os olhos de Maicon brilhavam com minha explicação, ele nem respirava para ouvir melhor, se percebeu descendente de ricos, herdeiro de uma injustiça histórica. Ele que está acostumado com a exclusão, percebeu que não precisava ser, não deveria ser um excluído, poderia não ser mesmo antes de se tornar um famoso jogador de futebol. 

Maicon poderia ter motivações para invadir a escola matando geral, vingando toda sua ascendência, poderia ter ódio acumulado por gerações. No entanto, é curioso que, mesmo sendo um excluído social de todas as formas possíveis, um perdedor, Maicon não está na lista elaborada por meus alunos de possíveis candidatos a desajustados assassinos que entram na escola esfaqueando todo mundo. Os alunos que estão na lista são brancos de olhos claros, como possivelmente é o assassino de Blumenau, cidade de colonos alemães, ou o ex-presidente Bolsonaro. Pessoas racistas que tem ódio mortal aos negros e indígenas, machos misógenos inseguros da sua sexualidade que gostariam de eliminar todas as mulheres e gays do mundo para não ter que enfrentá-los, homens com histórico de atleta frustrado e fracassado, ou jovens que querem resolver tudo a bala rapidamente, inclusive suas próprias vidas. Esse é o perfil do delinquente que entra atirando ou esfaqueando em escolas. Psicopatas que não aceitam que é preciso estudar muito para compreender a ciência e querem impor seu senso comum ainda que a custa de milhares de vidas. São sujeitos que pensam mais ou menos assim: 

Como eu, homem, branco, jovem, ainda não venci na vida? Como as pessoas não enchem estádios para me louvar? Porque entrevistam negros no final dos jogos e ninguém nem olha para mim? Porque os indígenas muito mais pobres que eu têm tantas terras e eu não? Porque tenho que dar lugar a uma mulher grávida no ônibus? Porque tenho que obedecer uma senhora idosa na escola se sou mais rápido e forte que ela? Porque esses rapazes podem andar de mãos dadas e até se beijar na rua e eu não? Porque o que ele estudou na faculdade é melhor do que me disse o tio do zap? Vou obrigar o mundo a me reconhecer como alguém importante nem que seja a última coisa que eu faça. Se não posso ser um vencedor cumprindo as regras numa sociedade ganha/perde, vou impor muitas derrotas antes de morrer, vou cair atirando! Assim acaba logo esse sofrimento de fingir uma sexualidade que me é imposta e finalmente vou ter a fama que desejo. 



Não é à toa que durante o governo do néscio rude do baixo clero parlamentar, diversas vezes eleito por homens brancos com esse perfil, o perfil de Hitler, o perfil de Erdoğan, o perfil de Trump, o perfil de Bolsonaro, tenha aumentado vertiginosamente a fundação de células nazistas por todo Brasil e a ocorrência de ataques insanos como o da creche em Blumenau. 

A Educação Física teve diversas fases no Brasil. Houve um tempo em que a Educação Física nas escolas servia como uma medida de saneamento básico depois da pandemia de gripe espanhola em 1918, promovia a higiene pessoal dos alunos ao ar livre, baseada na ginástica grego-romana. Durante as grandes guerras mundiais, a disciplina serviu para preparar a população para ser um soldado. Depois, uma fase que pregava que a Educação Física seria o centro da formação escolar para vida em sociedade, com dança e música, ginástica calistênica e esportes, para fortalecer e disciplinar as crianças. Finalmente, depois do golpe militar de 64, a Educação Física passou a promover competições, através de esportes coletivos, lutas e atletismo, para que os alunos aprendessem a obedecer às regras e autoridades sem questioná-las, não propusessem alternativas e, principalmente, aprendessem que há que se resignar na derrota agradecendo sorridente o vencedor pela chance de participar do confronto sem sair morto. Para os militares de 64, a Educação Física escolar deveria ser toda com atividades que envolvessem os jovens em conflitos completamente alienados das mazelas sociais e distantes da realidade. Os alunos podem chutar forte se estão brabos, mas sempre jogando “dentro das quatro linhas”, como insistia o ex-presidente Bolsonaro. Interessante reparar que quase todos os professores de Educação Física, políticos legisladores e administradores de todas os sistemas de ensino e escolas atuais do Brasil tem nesse paradigma seu sol, com grandes ginásios poliesportivos no centro da vida escolar até mesmo no recreio. Apesar de, depois da redemocratização em 1985, haja um grande esforço de intelectuais da educação para criar novas propostas democráticas, fraternas e igualitárias, o pensamento hegemônico ainda é o competitivista.

Sou um professor esforçado, leio, estudo e reflito sobre a minha prática pedagógica. No entanto, meus esforços nem sempre são vistos com bons olhos. Um dia desses, fiquei sabendo que uma menina trans entraria para a escola. Como a legislação me obriga, é um tema transversal previsto na BNCC o debate sobre gênero, e já imaginando o tanto de bullying que ela poderia sofrer nas minhas aulas, apresentei um documentário sobre homofobia e transfobia nas escolas para algumas turmas. Escolhi o primeiro que apareceu na pesquisa do google, o assisti planejando minha intervenção pedagógica e o achei bem atual e pertinente. Queria passar para todas as turmas, mas fui impedido pela supervisão e orientação da escola depois da terceira turma. Alguns pais haviam reclamado que no documentário aparecia Jair Bolsonaro e outros políticos dando declarações homofóbicas caricatas. Bolsonaro é o maior exemplo de cidadão brasileiro machista, misógino, homofóbico, transfóbico, racista, capacitista, etc. Ele é um combo de preconceitos de toda sorte, um bufão misantropo. Risível, mas trágico. Porém, tem muitos seguidores, falaram para minhas chefias imediatas que eu estava doutrinando as crianças e pediram que eu não falasse mais em política. Apesar da minha argumentação, fui convidado a assinar uma ata de advertência que eu não deveria mais partidarizar minhas aulas. A “escola sem partido”, visão alienante da escola, como a Educação Física competitivista dos militares de 64, saiu vencedora novamente, pois estou velho e cansado para competições ideológicas e me ameaçaram com processos. Parei de mostrar o documentário, me omiti covardemente do debate em sala de aula ou fora dela e preparei aulas de vôlei alienadas e flutuantes no espaço, a menina Trans que se lasque. Veja que curioso, as Cinthias da Educação Física Brasil afora que estão preparadas para conter fisicamente alunos desajustados e violentos dão entrevistas no programa Fantástico, mas aqueles professores que tentam refletir com os alunos sobre as estruturas injustas da sociedade são chamados a assinar atas ameaçadoras. Na competição ideológica, estou do lado perdedor. O problema é obviamente estrutural. 

É de se reparar que as eleições também são competições excludentes. Elas geram muita frustração e revolta para os perdedores. Elas geram ódio, mágoa e ressentimento. 

Ken Robinson, famoso pedagogo inglês, prega que as artes plásticas, a dança, o teatro e a música deveriam ter a mesma importância nas escolas que a matemática ou as línguas. Muitos até concordam com ele, mas levantam uma série de questões que, segundo eles, objetivamente isso seria impossível, pois a população precisa se preparar para o trabalho, não para cantar, dançar, apreciar arte. Objetivamente, é verdade que não há espaço próprio para essas disciplinas na minha escola de subúrbio. No entanto, há o espaço objetivo de 30 salas para competições excludentes. Há uma escolha política importante aí. Os dirigentes optam voluntariamente por perpetuar uma sociedade com cultura de guerra, em que uns poucos ganham e a maioria perde. A sociedade desejada é a elitizada, onde somente alguns privilegiados sobem no pódio e as massas têm que se resignar de não vencer  na vida. 

Há um mês fui a Porto Alegre assistir a um show dos Almôndegas, trilha sonora da minha infância e adolescência. Milhares de pessoas assistindo, nenhuma foi excluída, saiu perdedora ou brigou com alguém, bem diferente de um jogo de futebol. Foi maravilhoso, mas são momentos raros e caros para quem mora no interior. Lá lembrei de Maicon, ele provavelmente nunca foi num emocionante espetáculo daqueles. Só acontecem essas coisas na capital e são eventos pagos. Na escola, no rádio e na TV aberta ele tem acesso só a competições excludentes, esse é o único mundo que conhece. Esse é o mundo que a sociedade capitalista está disposta a financiar para ele, por mais caro que seja o material didático. Será que se ele tivesse acesso a espetáculos de Tutting, soubesse mais da história de seus ancestrais, tivesse uma vida verdadeiramente democrática, com direitos iguais a qualquer outro cidadão, ele desejaria ser uma estrela do futebol? E o assassino de Blumenau? Será que ele teve aulas para resgatar o orgulho de sua ascendência? Será que seu ato não é uma vingança contra uma sociedade que lhe excluia? Será que a notoriedade que buscava não é para reparar sua invisível vidinha de perdedor?  Será que se não tivesse tido uma educação para a resignação e alienação ele teria feito o que fez? O assassino de Blumenau foi entrevistado uma semana depois do massacre e revelou que faria tudo de novo. Claro, finalmente ele conseguiu o que queria, pessoas interessadas no que tem para dizer. Ele finalmente virou o herói que desejava ser, um vencedor na sociedade que valoriza a guerra. 

A vida não precisa ser uma selva, não deve ser uma competição, nós é que a fazemos assim. Acredito que em vez de quadra poliesportiva poderia ter uma horta nas escolas. Todos fariam uma atividade física intensa e produziriam alimentos para a comunidade. Todos seriam incluídos. Em vez de ginásio improdutivo poderia ter uma lona de circo onde se aprenderia a usar o trapézio, um monociclo ou fazer malabarismo com bolas. Ninguém sairia triste ou irritado da aula. Em vez de competições excludentes, poderia ter mais teatro, escultura e dança, para se aprender a sensibilidade do humano que vive em sociedade civilizada. Em vez de assassinos frustrados, poderíamos ter artistas valorizados. Finalmente, acredito que a Educação Física poderia ser uma geradora de paz, amor e vida, vida em abundância, em vez de guerra, lesões, sofrimento físico e psíquico e morte como é atualmente.