domingo, 27 de novembro de 2016

Sol de Si
Meu finado tio Luiz tinha umas tiradas muito engraçadas. Fazia comparações esdrúxulas e imaginava situações caricatas. Algumas passavam ao meu repertório instantaneamente por ser um humor insólito que me agradava muito. Uma que passei a usar sempre que cabe é a do sachê de chá.  Quando ele queria deixar claro o quão atraente sexualmente alguma pessoa não era, comparava com um sachê usado: tão excitante quanto um saquinho de chá segunda mão. Eu imaginava aquele sachê de chá todo amassado, esquecido num canto do pires, com uma mancha seca do líquido que já tinha tingido denunciando o que um dia foi, os prazeres que proporcionou para as pessoas que já não estavam por perto. Meu tio era um manancial de conhecimento. Para ele era fácil fazer piadas, tinha muita leitura e era só sacudir os baús do cérebro para pipocar chistes engraçados. Ele e minha mãe, Bebel, eram de família muito erudita. Tinham um pai escritor e tradutor, ampla biblioteca em casa, na escola estudaram francês e latim. Então, tinham uma visão de mundo bem diferente da média de seu tempo de iletrados sem internet. Os dois eram de esquerda, o que praticamente é sinônimo de militante, pois a direita, por inércia, é conservadora. Se ninguém fizer nada, as coisas se perpetuam, já diziam Newton e Marx. Os de esquerda são ativos, querem que as coisa mudem, vão a luta onde for. Os de direita reativos, não querem que as coisas mudem, então só se mexem para impedir a mudança.
Bebel, uma militante ativa de esquerda, estava sempre na luta por um mundo mais justo e igualitário. Vivia em reuniões que organizavam os pobres e oprimidos. Muitas vezes viajou longe para cursos, seminários e palestras. Esteve em Cuba, Nicarágua, China, entre tantos outros países com administrações de esquerda, trocando experiências com outros lutadores, aprendendo e ensinando. Estava sempre cercada de gente com a mesma gana, muitas vezes eram mulheres estrangeiras, europeias. Eu ficava na expectativa da chegada da mulher, como seria uma francesa ou alemã? Para minha grande frustração, as gurias que apareciam lá em casa eram sempre estranhas, saquinhos de chá usados, não me entusiasmavam sexualmente. Mas todas eram admiráveis: tinham o mesmo brilho no olhar de Bebel, um élan vital impressionante, uma alegria que contagiava e uma disposição de trabalhar de graça para os outros, por amor, Como Jesus ensinou, elas amavam o próximo e não se conformavam com as injustiças, uma atitude extremamente cristã. Pagavam do próprio bolso, viajavam para outros países, para ajudar desconhecidos, como na parábola do bom samaritano. Eu que, na adolescência, estava sempre tentando obter mais bens e beleza, o desapego a essas coisa materiais me era chocante. Foi sempre uma marcante lição de vida encontrar com aquelas figuras estranhas.
Agora, com a morte de Fidel, renasce uma antiga discussão, qual seria melhor: esquerda ou direita. Para os meios de comunicação nacionais a discussão não tem nem sentido, é óbvio que Fidel era um tirano ditador. Por sorte, vivi numa casa em que algumas pessoas realmente iam para Cuba ver como são as coisas por lá e tenho outros pontos de vista. No meu entender, a mídia no Brasil há muito deixou de tentar fingir uma neutralidade e adotou um editorial totalmente conservador de direita, por isso as palavras fortes que usam contra “El Comandante”. Não vou entrar no mérito se o líder cubano era ou não um ditador. Mas vou me perguntar se sua liderança foi boa ou ruim para Cuba. Segundo a ONU, Cuba tem o melhor sistema de saúde das Américas e o segundo melhor sistema de educação do mundo. Além disso, Não há naquele pequeno país de uma ilha caribenha, com a economia basicamente agrícola e que sofre boicote há 55 anos do comércio mundial, nem uma criança ou idoso desassistido, o que prova uma forte segurança social. Recente pesquisa também revelou que Cuba é o melhor país da América Latina para ser menina, assim, o país se torna modelo para outros países em desenvolvimento em termos de igualdade e oportunidade para as mulheres. O país também é um grande exportador de médicos, onde quer que sejam necessários no mundo, Cuba os envia para tratar enfermos de qualquer raça, nacionalidade ou credo por amor ao próximo. Nesse sentido, a liderança socialista de Cuba deu muito certo. A empolgação e brilho nos olhos de Fidel, os aplausos que recebia nos discursos na ONU, procure na internet para ver, fica claro que está falando de uma esperança que une todo mundo. Para os cubanos ele é um verdadeiro sol que ilumina o país. Me recordo que, por duas vezes nas suas andanças militantes, minha mãe esteve em Cuba. Tinha até umas fotos, não sei onde foram parar, dela ao lado de Raul Castro, na época um ilustre desconhecido, capinando um terreno, preparando a terra para a plantação. Meu pai também esteve por lá. Os dois relataram que lá não tem BMW, mas também não tem favelas. Não existe a possibilidade de alguém enriquecer, o que irrita profundamente os que gostam de explorar os pobres para ter sua BMW, como a mídia nacional. Um bom filme para assistir e tirar suas dúvidas a respeito do socialismo cubano é “Sicko”, documentário do subversivo cineasta americano, Michael Moore.
Quando morei em Amsterdam, recebi a visita de uma das amigas estrangeiras “sachê usado” da Bebel. Ela me ofereceu sua casa na Alemanha para ficar uns tempos. Diante de tal oferta, resolvi me mudar para Hertzogenrath, um vilarejo perto de Aachen. Pedi as contas do meu emprego, comprei uma bicicleta de viagem, coloquei todas minhas coisas nas mochilas e parti da Holanda. Mas, mal cheguei e a guria já foi avisando: Ficaria um mês viajando e na volta eu já deveria ter desocupado o colchonete da sala. Me prendi a procurar emprego, fui a vários estabelecimentos mas era um lugar pequeno, a economia não sustentava ilegais como eu. Comecei a me deprimir sozinho naquele apartamento estranho. Mas não desisti, estive então em Colônia e Bonn, mas também não achei trabalho. A Alemanha Ocidental estava cheia de imigrantes da recém unificada antiga Alemanha Oriental, país que resistiu bem menos ao assédio do capital que Cuba, aptos legalmente para trabalhar, falantes da língua e aceitando qualquer salário. Eu não tinha como competir, apesar do meu desejo intenso de ficar mais tempo no país e aprender alemão, logo percebi que teria que sair. Durante os dias que fiquei sozinho no apartamento da sachê, triste e desempregado, me socorri da ajuda dos LPs que ela tinha do Brasil. Era uma forma de me acalmar, encher meu coração de esperança, ouvir português, me sentir seguro num país estrangeiro. Escutei muito Lulu Santos, Tim Maia e Chico Buarque. Me orgulhava de ser brasileiro ao encontrar no interior de uma casinha qualquer da Alemanha amantes da nossa cultura. Me emocionava com a letra das músicas, uma grande saudade me tornava melancólico, mas também me dava uma forte coragem par continuar a lutar pelo que eu queria. Quem me conhece sabe que nunca escuto música, nunca. Bem, quase nunca. Não sinto a menor falta. Mas quando escuto com atenção uma música boa, no escuro, sem ruídos externos, refletindo seu significado e o projetando sobre minha vida, sempre me emociono todo. Sei lá o que acontece, afrouxa minhas funções vitais, minha musculatura fica trêmula e fraca, minha garganta se aperta e choro como criança. Talvez por isso, tanta gente ouça, tanto, tantas músicas! Talvez eu me cague de medo de ouvir e perder o controle, então, inconscientemente, esqueço que existe música, nem aparelho de som eu tenho em casa. Arrumei minhas coisas de novo sobre a bicicleta e parti para Bélgica. Aprendi mais português do que alemão naquele mês na Alemanha.
Minha irmã mais velha, Verônica, depois de velha voltou a cantar num coral, coisa que fazia nos tempos de escola. Quando o grupo se apresenta somos todos convocados a comparecer, quer queiramos ou não. Então, fomos todos sábado passado assitir mais uma das apresentações do Grupo de Canto Sol de Si. Sempre encontro pessoas que não vejo há quinze, vinte anos nesses eventos. Me flagro julgando a aparência das pessoas depois de tanto tempo: Nossa, que velha e encarquilhada está a fulana, parece um saquinho de chá segunda mão. Claro, a recíproca deve ser verdadeira, elas olham para mim e vêem uma mancha seca e amassada no cantinho do pires daquilo que um dia já fui. Alguém me pergunta: E aí?!!! Não tenho nada para contar, nenhuma façanha extraordinária, só vivendo com os olhos opacos. Respondo sem jeito: tudo bem, tô aí, vivo. Depois da desconfortável espera na porta e conversinhas formais com antigos conhecidos, finalmente entramos, sentamos e começa o espetáculo. Eram 34 mulheres cantando juntas. Me surpreendi várias vezes emocionado, chorando no escuro, durante o show. Meu coração se encheu de uma alegre melancolia, me senti pleno de amor que aquelas gurias gentilmente me ofereciam. As músicas começam, geralmente de mansinho, vão crescendo, se encorpam, atingem um ápice de potência vocal e significado, um auge que espreme lágrimas, depois vão minguando até pararem, tem uma vida bem breve. Com o espetáculo, a mesma coisa: Depois de uma espera inicial e educadas trocas de sorrisos e cumprimentos, as músicas vão se sucedendo, uma a uma, o evento tem um auge, até a canja final e as palmas consagradoras. Na saída do teatro, as pessoas se cumprimentam alegres, mas se despedem num melancólico adeus e aos poucos vão saindo, em pouco tempo o saguão está vazio e triste de novo.
Me impressiono com as cantoras, todas já curtidas e marcadas pelas colisões com o mundo, saquinhos de chá usados, mas com brilho nos olhos. Transmitem a mesma esperança e alegria de um adolescente. Eufóricas ao final da apresentação. Nem todo mundo pode ser Fidel ou Chico Buarque e mobilizar milhões, marcar gerações e deixar legados ao morrer. Mas pode, da mesmíssima forma que eles, ter uma alegria, um sol em si, um brilho que emana de sua atitude, que seja cantar ou outra qualquer e ilumina com amor as vidas dos próximos. Mesmo ao final do espetáculo da vida, quando todos teus amigos estão se despedindo e saindo, ainda dá para ser um Sol de Si. A aparência das pessoas pouco importa, BMW também não adianta nada no final, mas ninguém deve ficar desassistido de carinho, cuidado e amor. Ninguém vive para sempre ou fica suculento até o fim. O que realmente interessa é se teu olho ainda brilha e tu faz a alegria dos outros por amor, porque a vida é breve. Tio Luiz, mesmo ao fim da vida, se negava a ter carro, era uma músico de olhos brilhantes, que espalhava amor para desconhecidos empunhando seu saxofone. Ainda tem muito caldinho num saquinho segunda mão, depende do jeito que tu olhas.

domingo, 20 de novembro de 2016

Nós, professores, temos a obrigação de esclarecer os alunos a respeito de sua cultura, de sua história, o porquê das coisas, dos mitos e manifestações folclóricas. Numa escola pública o fazemos de forma laica, sempre a luz da ciência e não de alguma religião ou crendice popular. Agora, no final do ano, somos massacrados pela mídia a lembrar de uma história muito conhecida:
Ele nasceu no dia 25 de dezembro de uma virgem chamada Maria. Seu nascimento foi acompanhado por uma estrela muito brilhante no leste. Naquele dia recebeu a visita de três reis que vieram adorá-lo. Aos doze anos de idade já era um prodígio ensinando as escrituras. Aos trinta foi batizado e começou seu ministério. Tinha doze discípulos que viajavam com ele e realizava milagres como curar doentes e andar sobre as águas. Era conhecido por muitos nomes, tais como: O salvador da humanidade, a verdade e a vida, luz do mundo, cordeiro de deus, o bom pastor, alfa e ômega, além de vários outros. Foi traído, crucificado, morto e sepultado, mas ressuscitou depois de três dias.
Estou falando, claro, da história de Hórus, o deus sol egípcio de 3000 A.C. Mas, essa mesma história foi contada com diferentes personagens em diferentes localidades do hemisfério norte. Deus Attis, da Grécia, 1200 A.C., tem a mesmíssima trajetória: nasceu dia 25 de dezembro, de uma virgem, estrela do oriente, reis, milagres, traído, morto na cruz, ressurreição no terceiro dia... Krishna, deus na Índia, 900 A.C.; Mithra, da Pérsia, 1200 A.C.; Odin, da Escandinávia; Thamus da Síria; o fenício deus Baal; Indra, do Tibet; Jesus, da Palestina e muitos outros messias da antiguidade repetem essa história. Sendo ocidental, você certamente está familiarizado com ela, pois o Império Romano a tornou onipresente por decreto, literalmente.
Então você se pergunta, porque todos tem a mesma história? Simples, porque é uma história astronômica/astrológica, sobre a trajetória do sol no céu. Era contada de pai para filho para se prever quando as coisas iriam acontecer. No hemisfério norte, o sol vai descendo no horizonte depois do solstício de verão, cada dia se pondo num lugar diferente, cada vez mais ao sul, apontando para constelações diferentes ao longo do ano, até apontar para o Cruzeiro do Sul no dia 22 de dezembro. Os dias são cada vez menores, mais frios e escuros, impossibilitando plantações, até o solstício de inverno, dia 22 de dezembro, quando aparentemente o sol para de descer, morre na cruz, por três dias e recomeça a subir, ressuscita, no dia 25. Havia uma grande festa nessa data, o pior do inverno já havia passado e agora o sol caminhava para o norte de novo, os dias aumentavam de tamanho, ficavam mais claros e quentes possibilitando a vida. Assim como Hórus e todos os outros messias astronômicos, Jesus é o sol. A cruz, é o Cruzeiro do Sul, constelação que o sol aponta ao se pôr no solstício de inverno. A cruz do zodíaco lembra tudo, mostra os solstícios e equinócios, divide o ano em quatro, quatro estações, e aponta para doze constelações diferentes ao pôr do sol, doze meses, doze discípulos. A estrela do oriente é Sírius, a estrela mais brilhante do céu no hemisfério norte, que se alinha com as três estrelas conhecidas aqui no Brasil como as Três Marias e lá conhecidas como os Três Reis, no dia 25 de dezembro. Os três reis seguem a estrela do oriente no dia que nasce a esperança, a luz do mundo. Mas, só se comemora a ressurreição do sol, o salvador da humanidade, aquele que perdoa todos os pecados e permite a vida, na pascoa. Assim como o natal tem toda uma simbologia astronômica/astrológica, a pascoa simboliza o recomeço, o tempo da colheita, o renascimento da vida e acontece no equinócio de primavera do hemisfério norte, quando finalmente vai se começar a usufruir a bondade do sol. A coroa de espinhos são raios de sol. E, podem ficar tranquilos, o sol vai voltar, flutuando nas nuvens, todos os dias!!
A Bíblia é cheia de referências astronômicas/astrológicas, porque astronomia e astrologia não tinham diferença nenhuma na época e era a forma de se prever o futuro num tempo de iletrados, histórias contadas verbalmente. Quando a Bíblia fala do “fim dos tempos” ou “Era”, se refere ao fim de uma era da precessão dos equinócios, movimento natural do eixo de rotação da terra. A cada 2150 anos em média, a posição do sol no céu vai ter como fundo outra constelação, formando assim as chamadas eras astrológicas. Ao fim da Era da constelação de touro (de 4300 A.C. a 2150 A.C.), Moisés se irrita com os caras adorando um bezerro de ouro, porque agora já era a Era da constelação de áries (2150 A.C. a 0). Jesus simboliza a Era da constelação de peixes (0 a 2150 D.C.), por isso seu símbolo é um peixe e ele multiplicava peixes e buscava seus discípulos entre os pescadores. A partir do ano de 2150, entraremos na era de aquário, sempre simbolizada por um homem derramando um jarro d’água. Em Lucas 22:10, o próprio personagem sol, Jesus, orienta que sigam o homem com o cântaro de água na mão e entre na sua casa, a casa da era de aquário.  
Assim que, caros colegas professores, não podemos perder de vista que a bíblia inteira é uma coleção de histórias plagiadas de outras mais antigas e não muito mais que uma alegoria para ensinar eventos astronômicos e astrológicos. Cada um tem sua crença, ou não, mas a escola tem um compromisso com o conhecimento científico e é ele que deve pautar o que vamos falar nas comemorações de final de ano. Claro, isso se a escola sem partido não vingar e voltarmos a constituição de 1824 que instituía a religião católica como a oficial do Brasil e proibia todas as outras.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Textinho descontextualizado: 
 
Logo que vim morar aqui em Floripa, em 2002, fui morar na casa do Tio Luiz. Lá era até bom, casa e comida de graça, mas a privacidade era zero. Obviamente, em um mês ele me expulsou de lá. Aluguei uma quitinete, então, lá na Lagoa. Era minúscula, só eu morava lá, mas dava para ouvir perfeitamente tudo que o vizinho falava e, claro, a recíproca era verdadeira, privacidade um. Depois de um ano consegui uma vaga numa república de estudantes do mestrado que eu cursava na época, era uma apartamento enorme com três quartos grandes. Além de ficar mais barato a privacidade aumentou, não se ouvia as coisas faladas nos quartos vizinhos, salvo, claro, gozadas mais explosivas. No começo, além de mim, morava na república um arquiteto, que tinha uma namorada com uma casa bem grande a algumas quadras dali, e uma matemática lésbica, que não sabia que era lésbica, então era assexuada e virgem. O arquiteto nunca transava lá e a assexuada virgem não fazia barulho. Eu era o único, portanto, que desejava uma privacidade maior, não dava para eu gritar de tesão e logo depois sair pelado pelo corredor até a cozinha pegar uma coca gelada na geladeira. Ali era privacidade dois.
Naquela casa, a rotatividade dos moradores era grande. Logo a assexuada saiu e entrou outra lésbica, esta assumida e praticante da sua sexualidade. Era uma chata que não trabalhava, não estudava, só tocava violão o dia inteiro se dizendo musicista profissional. Parecia a Raquel. Logo em seguida, um amigo do arquiteto veio passar uma semana, dormia na sala. Era comum, todos nós recebíamos visitas temporárias. Mas passou a semana e ele foi ficando, se apaixonou pela lésbica chata e sua “arte” profissional. Era uma situação esquisita porque, para nós, ele era gay. Mas os dois se deram bem, ele também era vagabundo e magérrimo, como ela (mulheres, bichas e lésbicas são os que gostam de corpos magros). Seu nome era Alexandre, nós o chamávamos de Alex. Ele era engraçadíssimo, alegre, teatral, imitava vozes e gestos, tinha vários personagens próprios, mas era ótimo mesmo em fazer paródias das diversas pessoas que freqüentavam a casa. O Alex inventou que seria o produtor da artista lá de casa. Ela achou o máximo ter tal empresário e logo deixou que o Alex também dormisse no seu quarto. O arquiteto e eu ficávamos imaginando o que acontecia, porque não ouvíamos nada. Chegamos a conclusão que era ela que comia ele! Mas, se chegaram a ter algum orgasmo, não foi nada explosivo. Depois de três meses, o Alex tinha conseguido agendar e “produzir” dois “shows” para a guria. Era um banquinho e um microfone duma caixa amplificada num quiosque de cachorro quente na esquina. Assim mesmo, fomos todos prestigiar o evento! O Alex irritado e nervoso, como todo bom produtor, porque nem tudo estava saindo conforme o planejado. As pessoas insistiam em passar pela esquina, na frente da grande musicista lésbica, conversando normalmente, às vezes sem nem perceber que estavam no meio de um recital de uma instrumentista virtuose. Metade do gordo cachê foi gasto com o caríssimo carreto para levar a caixa amplificada duas noites seguidas até o quiosque. Os negócios não iam exatamente bem, digamos. Passou mais uns dias e a lésbica chata arranjou uma namorada. O Alex teve que voltar a dormir na sala. A situação toda deixou o cara bastante abalado, com o orgulho ferido e a auto-estima baixa. Emagreceu ainda mais, sem dinheiro só comia quando alguém oferecia alguma coisa. Qualquer golinho de vinho, naquele corpinho magro, já ficava bêbado. Bêbado o Alex era chatíssimo, como todo bêbado. Naquela época, eu dava aula a noite e chegava em casa tarde. Um dia, resolvi cozinhar ao chegar, estava com fome. Ia fazer um rápido miojo, mas como o Alex estava por ali, abatido, resolvi fazer uma massa mais substancial. Fiz bem rápido, coloquei um salame que estava por ali, tomate e pimentão, requeijão e até queijo ralado. Servi dois pratos e ofereci ao Alex. Sentamos na frente da TV para comer. O Alex deu duas garfadas e disse que não estava bom. Percebi de cara que ele tinha bebido, normalmente ele achava ótimo qualquer cacetinho seco, ria e fazia alguma paródia engraçada com a situação de pão seco. Ficou olhando o prato no colo e disse: “tu não sabe fazer, tu deveria ter...” daí deu uma baita explicação de como eu deveria ter cozinhado a massa, escorrido, colocado os vegetais, etc. Eu me desculpei, continuei comendo o que para mim estava bom e acrescentei que numa próxima vez eu faria o que ele estava me dizendo. Ele pegou no garfo de novo e deu uma desanimada remexida na massa. Largou o garfo, suspirou e repetiu toda a baita explicação. Eu disse: tá, Alex, eu entendi, desculpe, na próxima eu acerto. Ele de novo pegou o garfo, deu mais uma garfada, mastigou desanimado e afastou o prato repetindo, de novo, toda a ladainha. E assim foi, umas quinze vezes, ele dava um discurso enorme de como eu não sabia fazer massa, sempre igual. Entre cada discursada dele eu tentava argumentar alguma coisa, sempre de uma forma diferente, primeiro tentei me desculpar, depois gozei ele, depois xinguei o cara, cheguei até a empurrar para dar uma sacudida, nada adiantou. Mal eu terminava minha manifestação ele começava o mesmo discurso: “tu não sabe fazer, tu deveria ter...” Terminei de comer, passei a ignorá-lo, mas mesmo assim ele começava o discurso de novo, pegando o prato, remexendo na massa fria, largando o prato com nojo. Sai da sala e me meti no quarto, no outro dia ele estava sóbrio e nem lembrava do acontecido, duas semanas depois foi finalmente embora.
Textículo de 2010:
Quando adolescente eu gostava dos Beatles, acho que influenciado pelo tio Luiz. Ele descrevia com muita eloqüência como, na adolescência dele, as músicas dos Beatles, com aquele ritmo empolgante e alegre, com letras debochadas e pornográficas para época, tinham sido importantes para ele subverter a ordem de sua vida e da sua época. Toda uma geração vislumbrou o sonho se tornando realidade, um mundo bonito com aquelas letras de paz e amor, foi um transe coletivo. A Mafalda, aquele personagem do argentino Quino, também gostava muito dos Beatles. Tem uma tira que ela se pergunta porque eles não eram eleitos logo chefes gerais da ONU. Eu, na época que li a Mafalda, ri da tira, mas sem entender direito a sutileza do Quino. Amanhã tem “show de calouros” na creche em que trabalho, fiquei de cantar três músicas do Elvis: It’s now or never, Love me tender e Tutti Frutti. Estou ensaiando sozinho agora à noite em casa. Fiquei ouvindo o disquinho do Elvis no computer, uma coletânea das melhores músicas dele, enquanto jogava um frecell para decorar as letras. Fiquei surpreso como eu gostei. Agora senti uma melancolia enorme de não ter ouvido mais o Elvis na vida e pensei, como a Mafalda: Como? Como? Porque meu deus? Porque não elegeram o Elvis como chefe das nações unidas quando ele ainda era vivo?

domingo, 6 de novembro de 2016

Escola sem partido
Meus pais me colocaram numa escola no centro. Era particular, cara, chique, um status e tanto! Foi um esforço grande para a família, queriam o melhor para mim. Era para eu gostar, mas não foi o que aconteceu, odiei. Para se obter o respeito do grupo no mundo masculino de uma escola particular, alguém deve ser grande e forte, rico ou ser craque no futebol. Eu tinha exatamente as qualidades opostas a essas. Ninguém me conhecia, eu era pequeno e ruim de bola, além de meio pobre. Receita perfeita para sofrer bullying. Foi o que aconteceu, agressões e humilhações diárias, apelidos jocosos, passei três anos sofrendo naquela escola. Conheci as pessoas mais cruéis, perversas, canalhas, vis, obscenas, degeneradas e repugnantes da minha vida lá. Hoje em dia, alguns daqueles colegas são juízes de direito, médicos, empresários, engenheiros e até políticos conhecidos. São a elite de Porto Alegre. Durante todo tempo que estudei lá, pedia, às vezes até implorava, para me colocarem de volta na escolinha pública perto de casa. Naquela que as crianças eram as mesmas da rua, íamos caminhando para o colégio, todos éramos do mesmo tamanho e habilidade com a bola, vivíamos uma camaradagem muito leal, correta, altruísta e educativa. Mas não, minha mãe me explicava que lá no centro eu teria uma educação melhor, teria que aprender a conviver com os opressores. A opressão é inexorável, ela nunca deixará de existir, eu tinha que me afastar e construir minha vida longe dos opressores. Foi dureza esse tempo, tinha até medo de ir para escola. A hora do recreio e a Educação Física eram momentos de terror. Eu era a caça e haviam muitos caçadores querendo se divertir. Realmente, percebo agora, minha mãe foi sábia em me obrigar a passar um tempo naquela escola de opressores, ela tinha razão, eu aprendi a me afastar da súcia. Minha vida passou a ser um diligente afastamento do que significa opressão, em todos os sentidos: político, econômico e social.
Uma das coisas que tivemos que aprender a fazer para estudar no centro foi andar de ônibus. O pai nos levava de Brasília amarela pela manhã e nos trazia de volta ao meio dia, mas sempre tinha umas atividades à tarde, fora do horário que o pai podia nos transportar. Naquele tempo, finaleira da ditadura militar, o povo era visto como gado, só servia para puxar a carroça da economia. Portanto, não precisava de luxo. O último presidente militar, João Figueredo, chegou a afirmar, sem constrangimento, que preferia o cheiro de cavalo do que o de povo. Diante de tal liderança política, os ônibus eram péssimos, velhos, escuros, poucos e apertados. Na hora do pique, havia filas quilométricas nas paradas e as pessoas iam se socando para dentro como podiam. Os cobradores apressavam os passageiros com frases icônicas: “Um passinho a frente, por favor!” Queriam dizer que lá na frente, em cima do barulhento motor do ônibus, ainda dava para se amontoar uns dois ou três. Outra frase incrível que usavam, era: “Ainda tem lugar no corredor do meio!” Essa queria dizer que deveria ter três corredores em pé! Um sobre as pessoas sentadas nos bancos do lado direito, um sobre os passageiros do lado esquerdo e o terceiro entre esses dois. Os corredores dos lados eram privilegiados porque tinham onde se agarrar na barra do teto, o brabo era aguentar a catinga de tanto sovaco exposto. Os do corredor do meio eram jogados para lá e para cá, conforme o movimento do ônibus,  por sobre os outros, fazendo que muitas vezes tu caísse de boca nalguma paleta suada. Outra frase boa, muito usada, era: “Vamos subir mais um degrau para poder fechar a porta, por favor!” Significava que o veículo já estava tão lotado que os passageiros deveriam se apertar uns contra os outros para que a porta fechasse e aqueles que ainda estavam na fila do lado de fora se resignassem a esperar o próximo horário. Quem olhasse de fora, quando a porta finalmente fechava e o motorista arrancava acelerando irritado, via uns corpos espremidos como uma rolha de champanhe, colados ao vidro da porta. Pudores frívolos como paus e mãos se esfregando nas bundas e seios tinham que ser deixados de lado ao “optar” por ser usuário de ônibus. Ao entrar na escola do centro, aos dez anos de idade, fui aprendendo a conviver também com o sensacional (sensações de tato, equilíbrio, olfato, visão, audição e até paladar) sistema de transporte coletivo brasileiro planejado por opressores. Mas, hoje de novo percebo, foi muito educativo, minha mãe tinha razão.
Havia três linhas de ônibus do centro para casa que poderíamos escolher para voltar: Juca Batista, Serraria e Ponta Grossa. Uma ocasião, seguindo dicas de uma irmã mais velha, ao sair da escola à tarde, entrei para a fila mais vazia das três linhas. Assim, eu conseguiria sentar. O Ponta Grossa tinha acabado de arrancar e a fila estava sem ninguém. Eu era o primeirão! No Serraria e no Juca as filas já viravam a esquina da Borges com a Jerônimo Coelho. Esperei. Assisti sairem cheios as duas linhas e pensei, orgulhoso, sou mais esperto, vou sentado. Esperei mais e percebi em júbilo as filas das três linhas crescendo sem parar. Mas já me aborreci vendo outros dois Jucas e Serrarias indo embora. Droga, o Ponta deve ter quebrado, situação extremamente comum naquele tempo eram as baldeações. A minha fila já virava a esquina quando cogitei que deveria ir em pé amontoado mesmo, azar, quando uma terceira dupla de Jucas e Serrarias saíram lotados. Mas, eu era o primeirão, e já estava ali esperando há 45 minutos! Seria uma vergonha e um desperdício não usufruir daquele privilégio. Finalmente o Ponta chegou, junto de outros dois das linhas concorrentes, depois de mais de uma hora de espera. Subi triunfante, passei a roleta e fui lá para frente sentar na janelinha. Mas, pena, uma senhora idosa, com dificuldades para caminhar, o motorista deixou entrar pela frente quando o ônibus lotado já ia arrancar. Ela pediu meu lugar e eu, uma criança educada, cedi e me senti o mais estúpido dos seres. Depois fiquei sabendo que o Ponta Grossa tem um por hora, enquanto as outras linhas são mais frequentes. Minha mãe tinha razão, havia muito o que aprender estudando no centro.
Depois de três anos de inferno e muita súplica, minha família autorizou que eu voltasse a estudar na escolinha pública do bairro. Terminei a oitava série lá e fui fazer o curso técnico noutra escola pública, mas agora no centro, tinha muito ônibus na minha vida de novo. Diferente da particular, essa era bacana, não tinha bullying comigo. Eu cresci, fiquei até mais alto e forte que outros colegas, nunca fiquei bom de bola, mas agora eu era um dos mais ricos, sem dúvida, da turma. Meus colegas eram muito pobres, muitos do interior, trabalhavam para ajudar a família, enquanto eu era o almofadinha, um dos raros que não ajudava com dinheiro em casa. Nessa escola me sentia muito bem, era respeitado pelos colegas. O ambiente era de eterna festa. Vivíamos unidos, as gargalhadas, tínhamos um circulo de amizade muito grande. Todo recreio saiamos caminhando da escola para uma confeitaria popular que existia ali por perto. Íamos olhando as bundas, debochando uns dos outros, fazendo planos de carreira em empresas ou empreendimentos próprios, discutindo os problemas de estágios e argumentando sobre o melhor veneno dos carros que passavam. Era uma época de muita camaradagem, franqueza, fraternidade, alegria, sonhos e esperanças. Emprestávamos trocados uns para os outros e dividíamos a mil-folhas, um que outro conseguia comprar uma coca-cola caçulinha, mas já sonhávamos com nosso primeiro emprego, com nosso primeiro carro, com nosso primeiro filme pornô, com nossa primeira namorada, com a nossa primeira transa, com nosso primeiro qualquer coisa. O tempo de ócio juntos nos era muito mais caro e precioso que o tempo em aula. Muitas vezes matávamos aulas para vagabundear pelo centro, passear e conversar. Nos sentíamos culpados e receosos de sermos flagrados por alguém conhecido, mas o risco valia a pena. Aprendíamos muito mais o que precisávamos aprender na adolescência no ócio com amigos do que em aula. Nunca me senti oprimido nessa escola, talvez porque o opressor era, de alguma forma, eu.
A experiência da escola pública bacana, com ambiente alvissareiro, se repetiu quando entrei na UFRGS. Na engenharia havia muitos bravos colegas do interior e até de outros estados que trabalhavam, além de muitos almofadinhas da capital como eu. Os de Porto Alegre eram oriundos de escolas particulares, felizmente não cruzei de novo com nenhum ex-colega pulha daquela minha antiga escola particular. Fiquei amigo de dois colegas que moravam próximos a minha casa. Os dois vinham de outras escolas particulares, ainda mais caras e com um status maior daquela que frequentei, eram muito parecidos ideologicamente mas diferentes em aparência, uma gordinha baixinha e um altão magro. Era uma hora e meia de ônibus até o Campus, então íamos conversando muito sobre as aulas de cálculo e física e fazíamos muitos planos de viagens juntos. Os dois me encantavam com sua inteligência e erudição, eram fluentes em inglês e iam bem nas disciplinas que eu me ralava, aprendi muito com eles. Agora eu já era grande e forte, minha aparência física, meus conhecimentos e o local onde eu morava contribuíam para que eu tivesse um salvo conduto entre aqueles dois personagens. Larguei a faculdade e fui viajar por dois anos, me afastei um pouco dos dois amigos. Ela largou também e foi fazer medicina, ele seguiu e se formou engenheiro civil.
Estou escrevendo esse texto, caro leitor, porque revivi algumas situações da infância e adolescência uns tempos atrás, mas agora do ponto de vista de um adulto, já orfão de mãe. Há muito tempo, há 15 anos já, me afastei de Porto Alegre, construí minha vida longe da opressão. Foi uma decisão consciente, não foi uma fuga. Mas seguidamente volto, por um motivo ou outro. Uns meses atrás, depois de um cineminha num shopping perto da casa de meu pai, procurei um lugar para jantar na praça de alimentação. Escolhi um fast food qualquer, fiz meu pedido e esperei. Nesse momento, chegou meu colega altão da engenharia reclamando de um erro no seu pedido. Nem me percebeu ali. Estava bem barbeado, cheiroso, penteado, roupas novas, passadas, figurino clássico do capitalista com fé no sistema. Refleti um pouco se fingia que não o tinha visto, recentemente ele me excluiu do Facebook por um fosso de diferenças ideológicas de magnitude abissal. O cumprimentei com certo receio, era impossível não notar o agora gordo e gigante amigo a trinta centímetros de mim. Ele me olha com uma alegre surpresa, mas logo se contém, seus olhos se tornam opacos, mas segue com os cumprimentos protocolares, tentando demonstrar uma alegria ritual em honra a nosso passado comum de colegas universitários. O mesmo faço eu. Nós dois evitamos política e nos esforçamos em manter uma conversinha de balcão. Comentamos dos filhos, que grandes e espertos estão, de como estamos gordos, dos quilos que os médicos mandaram nós dois perder. Chegam nossos lanches e nos despedimos educadamente. Ele não me convida para a mesa de sua família, nem eu me convido para sentar com eles. Escolho uma mesa distante, como com calma, mas não olho mais para o salão. Que momento triste. Faço uma rápida avaliação de minha aparência: Clássica de esquerda, questionador do sistema. Barba de 15 dias, roupas surradas, nem pente tenho, me lembro que enforquei o banho e quase nunca uso perfume. Nós dois comendo um fast food americano, o mais emblemático ícone capitalista. Ele deve ter pensado vitorioso: loser. Sem dúvida, no jogo que ele compete, eu nem no banco de reservas fico, nem entro em campo. Saí dali desacorçoado, meio engasgado, triste mesmo. Fui a uma livraria, olho tudo diletante e resolvo levar uma revista superinteressante só para ter alguma coisa para ler à noite lá no pai. Entro na fila para pagar e encontro o irmão da minha outra colega de engenharia com toda sua família. Ela também me excluiu do Facebook. A mesma cena se repetiu. Cumprimentos rituais, conversinhas amenas enquanto esperamos a fila andar, desconforto de ambos os lados. A mulher do cara me olhava como quem olha uma barata, com asco e repulsa, discretamente afastava sua prole de mim. Esse também, mesmo visual barbeado e lustroso pequeno burguês. Ele também era nosso contemporâneo de faculdade, mas um ano a frente de nós. Engenheiro, vende piscinas. Os dois terminaram a engenharia, eu larguei. Os dois casaram e tem família, eu nunca me entusiasmei com isso. Não vi, mas tenho certeza que os dois tem carros grandes, sedãs caros estacionados no subsolo, eu tenho moto mas fui de ônibus ao shopping. Na engenharia eu fracassei, assim, como na busca por uma remuneração maior. Mas, como dizia Darcy Ribeiro: “Fracassei em tudo que tentei, mas meus fracassos são minha maior vitória, odiaria estar no lugar de quem me venceu.” Tenho orgulho de não ter sucumbido a esse jogo de ganha-perde. Discordo nisso com minha falecida mãe, a opressão não é inexorável, é construída e ensinada em escolas. Me afastei e luto por uma sociedade ganha-ganha.   

Sempre que volto a Porto Alegre, evito dirigir, o trânsito é sufocante e opressor naquela cidade. Basta tentar seguir a lei, parar em faixa de pedestres ou obedecer a velocidade máxima, passas a ser agredido. Se tu não fores oprimido, serás opressor. Umas duas ou três fechadas e buzinadas e tu começas a reagir no reflexo, tu começas a ser mais agressivo, passas a competir como um animal. Portanto evito, não quero oprimir ninguém, não quero jogar esse jogo. Largo a moto na garagem do pai, me recuso a competir, saio de transporte coletivo para algum passeio que quero dar. Evito horários de pico, fico sufocado em congestionamentos. Depois daqueles dois encontros tristes na mesma noite, saí do shopping e me dirigi à parada já tarde da noite. Tenho medo de assalto em Porto Alegre, fico atento as pessoas do entorno. Histórias de violência me oprimem também lá. A diferença social dos que estão de um lado do balcão do shopping para os que estão do outro tem aumentado muito e cada um usa as armas que tem para tentar vencer. A parada é abrigada e iluminada a noite, muitos trabalhadores do shopping aguardam comigo. Não esperei nem um minuto e chegou um Ponta Grossa! Era um ônibus novo, claro, com ar condicionado, amplo, daqueles minhocões, todo mundo está sentado e sobram lugares. Lembro daqueles antigos ônibus da Trevo, empresa que faz as linhas que vão para a casa do pai. Que diferença! O motor é embaixo, muito mais silencioso, super potente, arranca rápido. A viagem até em casa é rápida e segura. Fico refletindo o que separa o Ponta Grossa do João Figueredo para o da Dilma. Obviamente foram anos de governos de esquerda, de caras com barbas por fazer e roupas surradas. A primeira ação de Olívio Dutra, primeiro prefeito eleito depois da ditadura que era realmente de esquerda, foi intervir nos transportes públicos. Depois o orçamento participativo colocou casinhas e asfalto onde antes eram vielas escuras de favelas em Porto Alegre. A melhor distribuição de renda foi responsável por um boom econômico no Brasil durante os governos Lula e Dilma a tal ponto que o país “comprou” em leilão internacional concorrido as olimpíadas e a copa. O aumento do poder aquisitivo de classes menos favorecidas fez com que muitas famílias comprasse carro, aumentando os congestionamentos. 
Através dos posts eu percebia, enquanto eram meus amigos no Facebook, que meus dois ex-colegas de engenharia eram radicalmente contra os governos de esquerda. Vai ver é porque congestiona as ruas para seus sedãs e põe nas filas do shopping, do mesmo lado do balcão, pessoas como eu, desprovidas da fé no sistema depois de tanto bullying e fracassos. Não existe escola sem partido, elas todas vão te ensinar uma ideologia. A tentativa vil desses senhores que falam bem dessa proposta é a de que aceitemos a ideologia deles, aquela que ensina a manter o status quo atual, o status que os esportes ensinam: todo mundo tem que competir, mas só alguns devem subir no pódio, lugar que tem degraus hierárquicos e não cabe todo mundo. Não foi a toa que Barão de Coubertin resgatou os esportes olímpicos logo após Marx e Engels publicarem o Manifesto. Os esportes vêm carregados de ideologia aristocrática, mas com discurso de abnegado altruísmo. Não sejamos tolos, democracia grega era aristocrática. Só cidadãos livres do sexo masculíno podiam votar. Veja que nas últimas eleições, muitos candidatos de direita se elegeram dizendo que não são políticos. Mais um pouco eles vão sugerir um congresso sem partido...