domingo, 6 de novembro de 2016

Escola sem partido
Meus pais me colocaram numa escola no centro. Era particular, cara, chique, um status e tanto! Foi um esforço grande para a família, queriam o melhor para mim. Era para eu gostar, mas não foi o que aconteceu, odiei. Para se obter o respeito do grupo no mundo masculino de uma escola particular, alguém deve ser grande e forte, rico ou ser craque no futebol. Eu tinha exatamente as qualidades opostas a essas. Ninguém me conhecia, eu era pequeno e ruim de bola, além de meio pobre. Receita perfeita para sofrer bullying. Foi o que aconteceu, agressões e humilhações diárias, apelidos jocosos, passei três anos sofrendo naquela escola. Conheci as pessoas mais cruéis, perversas, canalhas, vis, obscenas, degeneradas e repugnantes da minha vida lá. Hoje em dia, alguns daqueles colegas são juízes de direito, médicos, empresários, engenheiros e até políticos conhecidos. São a elite de Porto Alegre. Durante todo tempo que estudei lá, pedia, às vezes até implorava, para me colocarem de volta na escolinha pública perto de casa. Naquela que as crianças eram as mesmas da rua, íamos caminhando para o colégio, todos éramos do mesmo tamanho e habilidade com a bola, vivíamos uma camaradagem muito leal, correta, altruísta e educativa. Mas não, minha mãe me explicava que lá no centro eu teria uma educação melhor, teria que aprender a conviver com os opressores. A opressão é inexorável, ela nunca deixará de existir, eu tinha que me afastar e construir minha vida longe dos opressores. Foi dureza esse tempo, tinha até medo de ir para escola. A hora do recreio e a Educação Física eram momentos de terror. Eu era a caça e haviam muitos caçadores querendo se divertir. Realmente, percebo agora, minha mãe foi sábia em me obrigar a passar um tempo naquela escola de opressores, ela tinha razão, eu aprendi a me afastar da súcia. Minha vida passou a ser um diligente afastamento do que significa opressão, em todos os sentidos: político, econômico e social.
Uma das coisas que tivemos que aprender a fazer para estudar no centro foi andar de ônibus. O pai nos levava de Brasília amarela pela manhã e nos trazia de volta ao meio dia, mas sempre tinha umas atividades à tarde, fora do horário que o pai podia nos transportar. Naquele tempo, finaleira da ditadura militar, o povo era visto como gado, só servia para puxar a carroça da economia. Portanto, não precisava de luxo. O último presidente militar, João Figueredo, chegou a afirmar, sem constrangimento, que preferia o cheiro de cavalo do que o de povo. Diante de tal liderança política, os ônibus eram péssimos, velhos, escuros, poucos e apertados. Na hora do pique, havia filas quilométricas nas paradas e as pessoas iam se socando para dentro como podiam. Os cobradores apressavam os passageiros com frases icônicas: “Um passinho a frente, por favor!” Queriam dizer que lá na frente, em cima do barulhento motor do ônibus, ainda dava para se amontoar uns dois ou três. Outra frase incrível que usavam, era: “Ainda tem lugar no corredor do meio!” Essa queria dizer que deveria ter três corredores em pé! Um sobre as pessoas sentadas nos bancos do lado direito, um sobre os passageiros do lado esquerdo e o terceiro entre esses dois. Os corredores dos lados eram privilegiados porque tinham onde se agarrar na barra do teto, o brabo era aguentar a catinga de tanto sovaco exposto. Os do corredor do meio eram jogados para lá e para cá, conforme o movimento do ônibus,  por sobre os outros, fazendo que muitas vezes tu caísse de boca nalguma paleta suada. Outra frase boa, muito usada, era: “Vamos subir mais um degrau para poder fechar a porta, por favor!” Significava que o veículo já estava tão lotado que os passageiros deveriam se apertar uns contra os outros para que a porta fechasse e aqueles que ainda estavam na fila do lado de fora se resignassem a esperar o próximo horário. Quem olhasse de fora, quando a porta finalmente fechava e o motorista arrancava acelerando irritado, via uns corpos espremidos como uma rolha de champanhe, colados ao vidro da porta. Pudores frívolos como paus e mãos se esfregando nas bundas e seios tinham que ser deixados de lado ao “optar” por ser usuário de ônibus. Ao entrar na escola do centro, aos dez anos de idade, fui aprendendo a conviver também com o sensacional (sensações de tato, equilíbrio, olfato, visão, audição e até paladar) sistema de transporte coletivo brasileiro planejado por opressores. Mas, hoje de novo percebo, foi muito educativo, minha mãe tinha razão.
Havia três linhas de ônibus do centro para casa que poderíamos escolher para voltar: Juca Batista, Serraria e Ponta Grossa. Uma ocasião, seguindo dicas de uma irmã mais velha, ao sair da escola à tarde, entrei para a fila mais vazia das três linhas. Assim, eu conseguiria sentar. O Ponta Grossa tinha acabado de arrancar e a fila estava sem ninguém. Eu era o primeirão! No Serraria e no Juca as filas já viravam a esquina da Borges com a Jerônimo Coelho. Esperei. Assisti sairem cheios as duas linhas e pensei, orgulhoso, sou mais esperto, vou sentado. Esperei mais e percebi em júbilo as filas das três linhas crescendo sem parar. Mas já me aborreci vendo outros dois Jucas e Serrarias indo embora. Droga, o Ponta deve ter quebrado, situação extremamente comum naquele tempo eram as baldeações. A minha fila já virava a esquina quando cogitei que deveria ir em pé amontoado mesmo, azar, quando uma terceira dupla de Jucas e Serrarias saíram lotados. Mas, eu era o primeirão, e já estava ali esperando há 45 minutos! Seria uma vergonha e um desperdício não usufruir daquele privilégio. Finalmente o Ponta chegou, junto de outros dois das linhas concorrentes, depois de mais de uma hora de espera. Subi triunfante, passei a roleta e fui lá para frente sentar na janelinha. Mas, pena, uma senhora idosa, com dificuldades para caminhar, o motorista deixou entrar pela frente quando o ônibus lotado já ia arrancar. Ela pediu meu lugar e eu, uma criança educada, cedi e me senti o mais estúpido dos seres. Depois fiquei sabendo que o Ponta Grossa tem um por hora, enquanto as outras linhas são mais frequentes. Minha mãe tinha razão, havia muito o que aprender estudando no centro.
Depois de três anos de inferno e muita súplica, minha família autorizou que eu voltasse a estudar na escolinha pública do bairro. Terminei a oitava série lá e fui fazer o curso técnico noutra escola pública, mas agora no centro, tinha muito ônibus na minha vida de novo. Diferente da particular, essa era bacana, não tinha bullying comigo. Eu cresci, fiquei até mais alto e forte que outros colegas, nunca fiquei bom de bola, mas agora eu era um dos mais ricos, sem dúvida, da turma. Meus colegas eram muito pobres, muitos do interior, trabalhavam para ajudar a família, enquanto eu era o almofadinha, um dos raros que não ajudava com dinheiro em casa. Nessa escola me sentia muito bem, era respeitado pelos colegas. O ambiente era de eterna festa. Vivíamos unidos, as gargalhadas, tínhamos um circulo de amizade muito grande. Todo recreio saiamos caminhando da escola para uma confeitaria popular que existia ali por perto. Íamos olhando as bundas, debochando uns dos outros, fazendo planos de carreira em empresas ou empreendimentos próprios, discutindo os problemas de estágios e argumentando sobre o melhor veneno dos carros que passavam. Era uma época de muita camaradagem, franqueza, fraternidade, alegria, sonhos e esperanças. Emprestávamos trocados uns para os outros e dividíamos a mil-folhas, um que outro conseguia comprar uma coca-cola caçulinha, mas já sonhávamos com nosso primeiro emprego, com nosso primeiro carro, com nosso primeiro filme pornô, com nossa primeira namorada, com a nossa primeira transa, com nosso primeiro qualquer coisa. O tempo de ócio juntos nos era muito mais caro e precioso que o tempo em aula. Muitas vezes matávamos aulas para vagabundear pelo centro, passear e conversar. Nos sentíamos culpados e receosos de sermos flagrados por alguém conhecido, mas o risco valia a pena. Aprendíamos muito mais o que precisávamos aprender na adolescência no ócio com amigos do que em aula. Nunca me senti oprimido nessa escola, talvez porque o opressor era, de alguma forma, eu.
A experiência da escola pública bacana, com ambiente alvissareiro, se repetiu quando entrei na UFRGS. Na engenharia havia muitos bravos colegas do interior e até de outros estados que trabalhavam, além de muitos almofadinhas da capital como eu. Os de Porto Alegre eram oriundos de escolas particulares, felizmente não cruzei de novo com nenhum ex-colega pulha daquela minha antiga escola particular. Fiquei amigo de dois colegas que moravam próximos a minha casa. Os dois vinham de outras escolas particulares, ainda mais caras e com um status maior daquela que frequentei, eram muito parecidos ideologicamente mas diferentes em aparência, uma gordinha baixinha e um altão magro. Era uma hora e meia de ônibus até o Campus, então íamos conversando muito sobre as aulas de cálculo e física e fazíamos muitos planos de viagens juntos. Os dois me encantavam com sua inteligência e erudição, eram fluentes em inglês e iam bem nas disciplinas que eu me ralava, aprendi muito com eles. Agora eu já era grande e forte, minha aparência física, meus conhecimentos e o local onde eu morava contribuíam para que eu tivesse um salvo conduto entre aqueles dois personagens. Larguei a faculdade e fui viajar por dois anos, me afastei um pouco dos dois amigos. Ela largou também e foi fazer medicina, ele seguiu e se formou engenheiro civil.
Estou escrevendo esse texto, caro leitor, porque revivi algumas situações da infância e adolescência uns tempos atrás, mas agora do ponto de vista de um adulto, já orfão de mãe. Há muito tempo, há 15 anos já, me afastei de Porto Alegre, construí minha vida longe da opressão. Foi uma decisão consciente, não foi uma fuga. Mas seguidamente volto, por um motivo ou outro. Uns meses atrás, depois de um cineminha num shopping perto da casa de meu pai, procurei um lugar para jantar na praça de alimentação. Escolhi um fast food qualquer, fiz meu pedido e esperei. Nesse momento, chegou meu colega altão da engenharia reclamando de um erro no seu pedido. Nem me percebeu ali. Estava bem barbeado, cheiroso, penteado, roupas novas, passadas, figurino clássico do capitalista com fé no sistema. Refleti um pouco se fingia que não o tinha visto, recentemente ele me excluiu do Facebook por um fosso de diferenças ideológicas de magnitude abissal. O cumprimentei com certo receio, era impossível não notar o agora gordo e gigante amigo a trinta centímetros de mim. Ele me olha com uma alegre surpresa, mas logo se contém, seus olhos se tornam opacos, mas segue com os cumprimentos protocolares, tentando demonstrar uma alegria ritual em honra a nosso passado comum de colegas universitários. O mesmo faço eu. Nós dois evitamos política e nos esforçamos em manter uma conversinha de balcão. Comentamos dos filhos, que grandes e espertos estão, de como estamos gordos, dos quilos que os médicos mandaram nós dois perder. Chegam nossos lanches e nos despedimos educadamente. Ele não me convida para a mesa de sua família, nem eu me convido para sentar com eles. Escolho uma mesa distante, como com calma, mas não olho mais para o salão. Que momento triste. Faço uma rápida avaliação de minha aparência: Clássica de esquerda, questionador do sistema. Barba de 15 dias, roupas surradas, nem pente tenho, me lembro que enforquei o banho e quase nunca uso perfume. Nós dois comendo um fast food americano, o mais emblemático ícone capitalista. Ele deve ter pensado vitorioso: loser. Sem dúvida, no jogo que ele compete, eu nem no banco de reservas fico, nem entro em campo. Saí dali desacorçoado, meio engasgado, triste mesmo. Fui a uma livraria, olho tudo diletante e resolvo levar uma revista superinteressante só para ter alguma coisa para ler à noite lá no pai. Entro na fila para pagar e encontro o irmão da minha outra colega de engenharia com toda sua família. Ela também me excluiu do Facebook. A mesma cena se repetiu. Cumprimentos rituais, conversinhas amenas enquanto esperamos a fila andar, desconforto de ambos os lados. A mulher do cara me olhava como quem olha uma barata, com asco e repulsa, discretamente afastava sua prole de mim. Esse também, mesmo visual barbeado e lustroso pequeno burguês. Ele também era nosso contemporâneo de faculdade, mas um ano a frente de nós. Engenheiro, vende piscinas. Os dois terminaram a engenharia, eu larguei. Os dois casaram e tem família, eu nunca me entusiasmei com isso. Não vi, mas tenho certeza que os dois tem carros grandes, sedãs caros estacionados no subsolo, eu tenho moto mas fui de ônibus ao shopping. Na engenharia eu fracassei, assim, como na busca por uma remuneração maior. Mas, como dizia Darcy Ribeiro: “Fracassei em tudo que tentei, mas meus fracassos são minha maior vitória, odiaria estar no lugar de quem me venceu.” Tenho orgulho de não ter sucumbido a esse jogo de ganha-perde. Discordo nisso com minha falecida mãe, a opressão não é inexorável, é construída e ensinada em escolas. Me afastei e luto por uma sociedade ganha-ganha.   

Sempre que volto a Porto Alegre, evito dirigir, o trânsito é sufocante e opressor naquela cidade. Basta tentar seguir a lei, parar em faixa de pedestres ou obedecer a velocidade máxima, passas a ser agredido. Se tu não fores oprimido, serás opressor. Umas duas ou três fechadas e buzinadas e tu começas a reagir no reflexo, tu começas a ser mais agressivo, passas a competir como um animal. Portanto evito, não quero oprimir ninguém, não quero jogar esse jogo. Largo a moto na garagem do pai, me recuso a competir, saio de transporte coletivo para algum passeio que quero dar. Evito horários de pico, fico sufocado em congestionamentos. Depois daqueles dois encontros tristes na mesma noite, saí do shopping e me dirigi à parada já tarde da noite. Tenho medo de assalto em Porto Alegre, fico atento as pessoas do entorno. Histórias de violência me oprimem também lá. A diferença social dos que estão de um lado do balcão do shopping para os que estão do outro tem aumentado muito e cada um usa as armas que tem para tentar vencer. A parada é abrigada e iluminada a noite, muitos trabalhadores do shopping aguardam comigo. Não esperei nem um minuto e chegou um Ponta Grossa! Era um ônibus novo, claro, com ar condicionado, amplo, daqueles minhocões, todo mundo está sentado e sobram lugares. Lembro daqueles antigos ônibus da Trevo, empresa que faz as linhas que vão para a casa do pai. Que diferença! O motor é embaixo, muito mais silencioso, super potente, arranca rápido. A viagem até em casa é rápida e segura. Fico refletindo o que separa o Ponta Grossa do João Figueredo para o da Dilma. Obviamente foram anos de governos de esquerda, de caras com barbas por fazer e roupas surradas. A primeira ação de Olívio Dutra, primeiro prefeito eleito depois da ditadura que era realmente de esquerda, foi intervir nos transportes públicos. Depois o orçamento participativo colocou casinhas e asfalto onde antes eram vielas escuras de favelas em Porto Alegre. A melhor distribuição de renda foi responsável por um boom econômico no Brasil durante os governos Lula e Dilma a tal ponto que o país “comprou” em leilão internacional concorrido as olimpíadas e a copa. O aumento do poder aquisitivo de classes menos favorecidas fez com que muitas famílias comprasse carro, aumentando os congestionamentos. 
Através dos posts eu percebia, enquanto eram meus amigos no Facebook, que meus dois ex-colegas de engenharia eram radicalmente contra os governos de esquerda. Vai ver é porque congestiona as ruas para seus sedãs e põe nas filas do shopping, do mesmo lado do balcão, pessoas como eu, desprovidas da fé no sistema depois de tanto bullying e fracassos. Não existe escola sem partido, elas todas vão te ensinar uma ideologia. A tentativa vil desses senhores que falam bem dessa proposta é a de que aceitemos a ideologia deles, aquela que ensina a manter o status quo atual, o status que os esportes ensinam: todo mundo tem que competir, mas só alguns devem subir no pódio, lugar que tem degraus hierárquicos e não cabe todo mundo. Não foi a toa que Barão de Coubertin resgatou os esportes olímpicos logo após Marx e Engels publicarem o Manifesto. Os esportes vêm carregados de ideologia aristocrática, mas com discurso de abnegado altruísmo. Não sejamos tolos, democracia grega era aristocrática. Só cidadãos livres do sexo masculíno podiam votar. Veja que nas últimas eleições, muitos candidatos de direita se elegeram dizendo que não são políticos. Mais um pouco eles vão sugerir um congresso sem partido... 

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