domingo, 15 de outubro de 2023

 Dia dos professores, Geni, homens, mulheres e os conflitos


Escrevo esse texto no dia dos professores, 15 de outubro. Há uma semana, o grupo Hamas lançou um ataque massivo a Israel com foguetes feitos com sucata. O conflito tenta resolver à força questões religiosas, econômicas, políticas e sociais onde houve um fracasso do diálogo. A região da Palestina é conflituosa desde o tempo em que a bíblia estava sendo escrita e quem não é de lá tem dificuldade de entender as razões das agressões. Tenho minhas suspeitas dos motivos que levaram àquela guerra, pois durante a semana ocorreram coisas que me fizeram refletir sobre conflitos, eventos tão comuns na vida de um professor de escola básica. 

Sou concursado para vinte horas, mas desde que entrei na prefeitura, há dez anos, cumpro quarenta horas, eles chamavam de “desdobramento”. O desdobramento não vai para a aposentadoria, é um truque conhecido das prefeituras para economizar com os professores velhinhos. No meio do ano passado, me chamaram na secretaria de educação, acharam uma forma para economizar com os funcionários da ativa também. Iriam acabar com meu desdobramento, meu salário cairia pela metade. Me ofereceram a “oportunidade” de assinar um contrato de mais vinte horas, mas com um salário bem menor, como se eu fosse um professor em início de carreira. Nada pude fazer diante do tribunal de contas que obrigou a administração a economizar comigo. Fiz outro concurso para mais vinte horas e passei em décimo terceiro lugar, fiquei tranquilo, pois a rede municipal tem 13 escolas de educação infantil sem professores de Educação Física, mas a prefeitura tergiversa e só chamou três até agora. Meu salário diminuiu em um quarto e de um dia para outro eu tive que me virar com uma remuneração bem menor. Entrei em conflito com o secretário de educação, com o prefeito, com o partido do prefeito, com o sindicato dos servidores, com a administração inteira e lembrei na hora da música “Geni e o Zepelim”, do genial Chico Buarque, que transcrevo ao final deste texto para quem tiver interesse em ler. Sempre se lembram dos professores para resolver os mais diversos problemas sociais, somos o coringa no baralho social, no entanto, são também deles que lembram na hora de economizar. Todos pedem para a Geni fazer um esforço para ajudar a comunidade nas tarefas mais bizarras. “O prefeito de joelhos, o bispo de olhos vermelhos”...  

Na segunda-feira pela manhã, estava para entrar em turmas difíceis, ansiosas pela prática de qualquer atividade corporal, que desrespeitam o professor sistematicamente e sabotam aulas teóricas de esgrima. Há mais de seis anos não posso dar aulas práticas de esportes por falta de material. Desde o governo Temer não recebemos material didático de Educação Física. Sim, evidentemente estou em conflito também com a união, desde o golpe contra a presidenta Dilma as coisas desandaram na educação pública. Visivelmente, há uma tentativa de precarização do ensino público com uma brutal diminuição de verbas. Questionei o diretor sobre o saco de bolas novas que estava na secretaria há duas semanas: porque ainda não foram disponibilizadas para as aulas de Educação Física? O diretor fez um grande discurso, de como tem lutado por material para a escola, me fez assinar um termo de recebimento das bolas, como se eu tivesse pedindo para uso pessoal ou para levar para casa. Primeiro queria me dar só cinco bolas, para preservar as outras. Argumentei que numa turma de 20 alunos, seria uma bola para cada quatro. Enquanto um faz o exercício, os outros três teriam que ficar assistindo entediados. O ideal seria uma bola para cada aluno, mas num momento de escassez como o atual, o mínimo aceitável seria uma para cada dois alunos. Depois de um certo atrito, um conflitinho, ele concorda em ceder dez então, mas eu tenho que ser “responsável” pelas bolas, me acusando, ainda que sem perceber, de já ter sido negligente com os materiais da escola em outras oportunidades. 

O diretor e eu lamentamos o grande aumento de crianças carentes nas comunidades empobrecidas do entorno nos últimos anos. A capacidade da escola é de 250 alunos, mas está atendendo 450 e com uma fila de espera de outros 200. Ao mesmo tempo que gestores municipais aumentam nossa carga de trabalho com mais alunos, nos tiram condições de trabalho e diminuem nossos vencimentos. Há um brutal aumento da população marginalizada, e quem, você leitor, acha que pensam na hora de ensinar os despossuídos como evitar as drogas ou a gravidez na adolescência, a preservar o ecossistema costeiro, a reciclar lixo, a importância da vacinação, a evitar conflitos na vizinhança, a escovar os dentes e tomar banho, a respeitar a religião ou a orientação sexual de cada um, a como se alimentar de forma saudável, a como usar um banheiro, a como se proteger de abusos sexuais, a conhecer seus direitos como crianças e adolescentes? Os professores são as Genis da sociedade, todo mundo quer que resolvamos as mazelas sociais, mas não querem pagar por isso. “Você pode nos salvar, você vai nos redimir.

No final da tarde desta terça-feira, eu já tinha cumprido minhas tarefas de trabalho e só esperava dar a hora do final do expediente para ir para casa descansar. A funcionária da limpeza entrou na sala dos professores nervosa, pedindo socorro. Ouvi um alarido no hall de entrada da escola e corri para ajudar. Eram dois homens aos gritos, exercendo toda sua brutal violência masculina, um deles armado com um relho feito de sucata, como as armas do Hamas. Os encarando olho no olho, bravamente, três mulheres - a vice-diretora, a supervisora e a orientadora - calmas e sérias, firmes como pugilistas no momento da pesagem. O vigilante e o portão de entrada, nossa primeira linha de defesa, já tinham se provado inúteis contra os dois cidadãos irados: eles tinham arrancado o portão dos trilhos e atropelado o vigia que tentava impedir que entrassem no prédio à força. As três mulheres e sua serenidade na hora do conflito era a última barreira física entre as feras e as salas cheias de crianças. Cheguei por trás dos machos selvagens contrariados que latiam, bufavam e rosnavam, e pensei em dar uma voadora nas costas de algum deles, pois eles vieram para isso, brigar, e eu também tenho o cérebro masculino. No entanto, percebi nos poucos passos que dei em direção a cena, que aquelas mulheres corajosas estavam conseguindo com sua mágica feminina, conter os invasores eficazmente. Me posicionei próximo ao extintor de incêndio que tinha na parede caso precisasse um objeto pesado para usar como arma. A tensão chegou ao máximo quando o vigia jogou gasolina naquele fogaréu avisando que chamaria a polícia. Um dos homens alertou que tinha sido “formado” no sistema prisional e tinha meios de matar o funcionário até de dentro da prisão. Por milagre, as três mulheres hipnotizaram os três homens, os dois invasores e o vigilante, os fizeram sentar e conversar explicando suas demandas: a filha de um deles, neta do outro, havia caído no horário da entrada e batido a cabeça. Eles estavam ali para punir os responsáveis, pois a menina estava no hospital com suspeita de traumatismo craniano. Eu, o quarto homem da cena, covardemente, assisti tudo sem abrir a boca. Não só por medo, mas também porque percebi que se agisse seria mais um homem a dificultar a convivência social. Não tenho nem um décimo da habilidade social de lidar com conflitos que aquelas três professoras. Em quarenta minutos bateu o sinal de saída e nenhuma criança percebeu que ali tinha ocorrido todo aquele bafafá medonho, apesar de os caras ainda estarem na sala da orientação educacional. Fiquei ali na porta esperando, solidário com as gurias, olhando o cartaz que cita a lei que ameaçar funcionário público da cadeia. Estava pronto para entrar na sala ao ouvir barulho de luta para apanhar junto de relho. Passaram quinze minutos do nosso horário quando os caras saíram da escola, ainda ameaçando, mas bem mais calmos. Felizmente, e graças ao extraordinário profissionalismo delas, ninguém se machucou e até mesmo a menina que bateu a cabeça, depois dos exames no hospital, teve alta sem sequelas, graças ao pronto atendimento que recebeu da escola que a levou ao postinho do bairro imediatamente depois do ocorrido. Por mais eficientes que sejamos, somos sempre acusados de negligentes, imperitos e incompetentes e, portanto, passíveis de punições severas por qualquer cidadão sem nem qualquer processo legal. Nós, os professores, somos as Genis da sociedade, “feitas para apanhar”, apesar do cartazinho com a lei na porta.

Na manhã de quarta-feira, véspera do dia das crianças, levamos as turmas todas para a praça para um picnic. Fomos caminhando e comentando o acontecido do dia anterior à boca miúda para que nenhum aluno leve aquele diálogo para comunidade. Ao chegar na praça, um dos alunos do terceiro ano vê seu pai trabalhando numa obra do outro lado da rua e corre para abraçá-lo. Sua professora, temerosa de algum acidente, grita para que a criança não atravesse. O pai, irritado, espinafra a educadora em praça pública pois ela não teria direito de gritar com seu filho. “Joga pedra na Geni!” Na tarde do mesmo dia, conversando na sala dos professores com uma colega, fiquei sabendo que uma mãe está processando a escola por que seu filho apanha todo dia dos coleguinhas do segundo ano. “Ela é boa de cuspir!”  Percebo então, na quarta-feira caminhando para casa depois do trabalho, o porquê da fala do diretor na segunda-feira a respeito das bolas. O diretor responde judicialmente pela escola, pois ele é o responsável legal. Ele está uma pilha de nervos, todos os conflitos da escola ecoam na sua cabeça.

O cotidiano da escola é assim. Todos estamos sob ameaça, o stress chega a ser viscoso e palpável no intervalo nas conversas na hora do cafézinho. Ninguém mais quer ser professor pois é claro para qualquer criança que é um profissional que ganha mal, mendiga por material de trabalho, é espinafrado em praça pública, ameaçado fisicamente até com relhadas, processado judicialmente por exercer sua profissão, ou seja, pode ser desrespeitado tranquilamente sem nenhuma consequência. Ela dá para qualquer um, maldita Geni! É raro o profissional da educação que não sofre de doenças mentais, que não toma medicação psicoativa ou usa drogas como o álcool ou o cigarro. Em todas as escolas em que trabalhei, os professores se cotizam para que nos intervalos haja café ou chá disponível em abundância para que seu cérebro não derreta sob a perturbação da homeostasia a que é submetido devido a enorme secreção de adrenalina. Ela é um poço de bondade, dá-se assim desde menina, é de quem não tem mais nada!    

Este é o breve relato de uma semana curta de três dias na escola, já que quinta-feira foi feriado de Nossa Senhora Aparecida e sexta emendaram o Dia do Professor. Não faltam cidadãos que trabalham seis dias na semana a nos acusar de privilegiados por ter tantos feriadões prolongados. Ninguém parece perceber o quanto nossa saúde mental é abusada e nosso corpo ameaçado ou até, muitas vezes, agredido no trabalho. As famílias que atendemos na escola são os oprimidos da sociedade, são escorraçadas para guetos nas periferias do país, mantidas afastadas com grandes muros, portões e vigias, assim como os palestinos. Quando arrancam os portões e reagem com suas armas feitas de sucata, chocam o “status quo”. No entanto, perceba, caro leitor, nós os professores estamos do mesmo lado: também somos empobrecidos, também vivemos fora das muralhas dos grandes condomínios, estamos brigando entre nós mesmos. Este é o primeiro ponto. O segundo ponto, é evidente para mim, depois de vinte anos como professor em escola pública, que as mulheres devem gestar o mundo. Elas são gestoras (gestantes), deixam crescer de dentro para fora com cuidado, tem habilidade de comunicação, dialogam e respeitam o indivíduo, constroem um ambiente acolhedor e envolvente que proporciona que habilidades se desenvolvam, permitem o florescimento das pessoas. Homens são gerentes, gerem, querem mandar, não aceitam ser contrariados, ditam normas. Foram os homens que inventaram esse negócio de competição: onde uns tem, outros não, uns estão incluídos, outros não. Mulheres geram vida, gestam todo mundo e amamentam ricos e pobres da mesma forma. O cuidado feminino com todos deve ser a lei. O poder de dar a vida das mulheres funciona com muçulmanos e judeus, com adolescentes e crianças, com trans e cis. Não foi à toa que homens arrancaram a presidenta Dilma de seu cargo. Uma mulher no poder desafia a lei da selva, onde manda o mais forte e o resto obedece. As mulheres empoderadas modificam a tradição da exclusão e eliminação social. Mulheres querem dialogar até que haja um consenso onde todos estejam alimentados, com cama quentinha e vistam casaquinhos. Não tenho dúvidas que na liderança do Hamas está um homem, que como eu pensa em entrar de voadora nas costas do Netanyahu, que revida como qualquer homem faz, com violência e falta de diálogo. O terceiro ponto é a estupidez da diferença social. A competição social, esse pódio classificatório com degraus hierárquicos para exibir quem venceu na vida dos losers é uma aberração patética e primitiva. É o fulcro gerador de ódio e discórdia. De nada adianta a tentativa de criar muros, de tentar criar castas de incluídos e excluídos. Só gera ódio e morte, coisas de homens. Há riqueza suficiente para todos. 

Portanto, convido a todos a valorizar as professoras, remunerá-las de acordo. Vamos todos seguir o exemplo dessas mulheres (de Atenas, outra música genial do Chico, que acabaram com a guerra negando o sexo aos homens, o lado mais animal do humano) que amam e cuidam, que olham no olho, que dialogam até o consenso e encaram o conflito de forma acolhedora, civilizada e inteligente. Convido a todos a pensar como professoras, que não desistem de nenhum de seus alunos, mesmo os mais agitados. Eu, confesso, ainda sou um humilde aprendiz de professora.



Geni e o Zepelim

Chico Buarque


De tudo que é nego torto

Do mangue e do cais do porto

Ela já foi namorada

O seu corpo é dos errantes

Dos cegos, dos retirantes

É de quem não tem mais nada


Dá-se assim desde menina

Na garagem, na cantina

Atrás do tanque, no mato

É a rainha dos detentos

Das loucas, dos lazarentos

Dos moleques do internato


E também vai amiúde

Com os velhinhos sem saúde

E as viúvas sem porvir

Ela é um poço de bondade

E é por isso que a cidade

Vive sempre a repetir


Joga pedra na Geni!

Joga pedra na Geni!

Ela é feita pra apanhar!

Ela é boa de cuspir!

Ela dá pra qualquer um!

Maldita Geni!


Um dia surgiu, brilhante

Entre as nuvens, flutuante

Um enorme zepelim

Pairou sobre os edifícios

Abriu dois mil orifícios

Com dois mil canhões assim


A cidade apavorada

Se quedou paralisada

Pronta pra virar geleia

Mas do zepelim gigante

Desceu o seu comandante

Dizendo: Mudei de ideia!


Quando vi nesta cidade

Tanto horror e iniquidade

Resolvi tudo explodir

Mas posso evitar o drama

Se aquela formosa dama

Esta noite me servir


Essa dama era Geni!

Mas não pode ser Geni!

Ela é feita pra apanhar

Ela é boa de cuspir

Ela dá pra qualquer um

Maldita Geni!


Mas de fato, logo ela

Tão coitada e tão singela

Cativara o forasteiro

O guerreiro tão vistoso

Tão temido e poderoso

Era dela, prisioneiro


Acontece que a donzela

(E isso era segredo dela)

Também tinha seus caprichos

E ao deitar com homem tão nobre

Tão cheirando a brilho e a cobre

Preferia amar com os bichos


Ao ouvir tal heresia

A cidade em romaria

Foi beijar a sua mão

O prefeito de joelhos

O bispo de olhos vermelhos

E o banqueiro com um milhão


Vai com ele, vai, Geni!

Vai com ele, vai, Geni!

Você pode nos salvar

Você vai nos redimir

Você dá pra qualquer um

Bendita Geni!


Foram tantos os pedidos

Tão sinceros, tão sentidos

Que ela dominou seu asco

Nessa noite lancinante

Entregou-se a tal amante

Como quem dá-se ao carrasco


Ele fez tanta sujeira

Lambuzou-se a noite inteira

Até ficar saciado

E nem bem amanhecia

Partiu numa nuvem fria

Com seu zepelim prateado


Num suspiro aliviado

Ela se virou de lado

E tentou até sorrir

Mas logo raiou o dia

E a cidade em cantoria

Não deixou ela dormir


Joga pedra na Geni!

Joga bosta na Geni!

Ela é feita pra apanhar!

Ela é boa de cuspir!

Ela dá pra qualquer um!

Maldita Geni!


Joga pedra na Geni!

Joga bosta na Geni!

Ela é feita pra apanhar!

Ela é boa de cuspir!

Ela dá pra qualquer um!

Maldita Geni!


quinta-feira, 20 de abril de 2023

 A Cultura da Guerra e a Pedagogia da Resignação 

A íntima relação da Educação Física escolar com os ataques à escolas


Há algumas semanas, na cidade de Blumenau, fundada por colonos alemães no interior de Santa Catarina, um rapaz de 25 anos pulou o muro de uma escola de Educação Infantil armado com uma machadinha e matou quatro crianças que brincavam no pátio com golpes na cabeça, além de ferir outras cinco. Logo em seguida, caminhou até um quartel da polícia militar na vizinhança e se entregou. O que motivou o massacre ainda está sendo investigado, mas, aparentemente, a carnificina teria servido como instrumento para alcançar uma fama que de outra forma seria inalcançável.   

A barbárie chocou a opinião pública tal a inesperada e desnecessária brutalidade contra cidadãos tão pequenos, frágeis e inocentes, incapazes de provocar mal a qualquer pessoa. Especialistas em educação, segurança pública, sociologia e psicologia se esforçaram em tentar explicar a ocorrência e deram dicas de prevenção de possíveis casos semelhantes no futuro. Políticos tentaram aproveitar a ocasião para provar teses que defendem. A imprensa responsável cobriu o fato com prudência, sem mostrar as cenas de extrema violência captadas por câmeras de segurança ou mostrando o rosto do criminoso para não lhe dar a notoriedade que almejava. 

A crueldade gratuita do vândalo gerou uma verdadeira avalanche de opiniões de senso comum em outras instituições de ensino, delegacias, praças, mercados ou qualquer lugar onde duas pessoas se encontram Brasil afora, soterrando o imaginário popular com entulho de ignorância. A doxa gerada com a revolta sugeria desde linchamento imediato ou pena de morte do agressor em processo breve, até professores armados e policiais nos pátios. Se acredita que com mais armas e violência se acabaria com as armas e violência. O leigo acredita que é um caso isolado e basta eliminá-los ou, no mínimo, impedi-los a bala, para que o problema acabe. Infelizmente, ataques a escolas não são incomuns, poucos dias antes desse ataque do interior catarinense, um adolescente havia esfaqueado uma professora de 71 anos, Elizabeth Tenreiro, na Vila Sônia, periferia da cidade de São Paulo, parece se tratar de um problema estrutural. 

O ineditismo de Blumenau que arvorou o debate foi a incompreensão de um ser humano que age diferente dos demais de forma tão grotesca. O assassino não havia sido aluno na instituição, não buscava uma vingança contra alguém que o oprimiu no passado, como é comum nesses casos, mas teve talvez somente o perverso prazer em matar ou a procura por uma notoriedade a qualquer preço. As massas querem explicação para ato tão assimétrico e exigem que se lime fora do corpo social aresta tão aberrante. 

No entanto, é interessante reparar que a escola é o alvo preferencial desses desajustados aqui no Brasil, assim como nos Estados Unidos. Em outros países se atacam templos religiosos, mercados públicos ou centros militares e policiais. Me sinto forçado a constatar que a escola se tornou o imo da nossa sociedade, o estado está ali resumido, em sua essência, cuidando e educando seus sócios mais jovens. Se o estado se ausenta em alguma área, na escola é que se deve reclamar seu justo quinhão. Os professores são geralmente o primeiro funcionário público que os cidadãos brasileiros percebem como alguém que pode os escutar e encaminhar suas demandas, desde alimentação, passando por orientações de saúde, até lugar para morar, ou seja, onde se busca e se encontra cidadania plena. Até mesmo o ato de votar se dá nas escolas, onde muitos dos mesários são professores. Outra constatação óbvia, é que os delinquentes são todos homens brancos e jovens. A partir daí, me atrevo a intuir muita coisa. 

Como sou homem branco, professor nomeado em escola pública, acredito que tenho lugar de fala. Apesar de já ser um velho, próximo a aposentadoria, tenho muita vivência de chão de escola e posso contribuir no debate do ponto de vista de dentro. No início da carreira, trabalhei como professor de Educação Física dez anos em escolas de Educação Infantil no estado de Santa Catarina, semelhantes àquela atacada em Blumenau. Desde então, passei para o Ensino Fundamental, exercendo a docência em escolas públicas como a da professora Elizabeth, esfaqueada em São Paulo. Me chamou a atenção, que tanto num caso como no outro, todos os especialistas entrevistados para opinar sobre ataques em instituições de ensino eram de fora da escola. Políticos, psicólogos, juristas, antropólogos, sociólogos, se ouviu de tudo. Curioso que professores ou estudantes só foram consultados se diretamente envolvidos, para descrever o fato em si: como fizeram para imobilizar o agressor, como as crianças choravam de desespero, com a sala ficou lambuzada de sangue por todos os lados, como o delinquente parecia transtornado, etc. Em semanas de cobertura jornalística, ninguém conversou com um professor ou um estudante para perguntar: E aí, porque tu achas que acontece esse tipo de coisa?

Nos dias que se seguiram ao sinistro da creche, impressionados, as crianças e adolescentes da escola onde trabalho faziam conjecturas sobre possíveis ataques. Me perguntaram diversas vezes para onde iriam correr se um maluco entrasse na instituição com uma arma. Eles mesmo constataram quais eram os locais onde não havia rotas de fuga. Me indagaram se eu tinha medo de morrer e fizeram um levantamento mental listando os desajustados da escola que seriam capazes de uma chacina. Comentavam, alvoroçados pelos corredores, boatos de grandes ataques sincrônicos no Brasil inteiro para causar o caos, aos moldes do 11/9 nos Estados Unidos, cada rede social aponta uma data diferente. 

De 2002 para cá tivemos 22 ocorrências desse tipo em escolas, 12 nos últimos 4 anos. Percebo que estamos nos aproximando da situação americana. Nos Estados Unidos esse tipo de ataque é epidêmico, grandemente facilitado pelo acesso livre às armas de fogo a qualquer cidadão. Aqui ainda usamos machadinhas e facas pelo simples fato que armas de fogo são caras para o poder aquisitivo do povo. Mas, isso não abranda em nada a dor das famílias de mortos e feridos e muito menos diminui a discrepância desse hediondo fenômeno social. Houve um grande esforço durante o governo de Jair Bolsonaro para popularizar a compra, o uso recreativo, a posse e até o porte de armas de fogo carregadas. Esse senhor fez um grande desserviço à nação banalizando o ódio e as mortes. Enquanto deputado, Bolsonaro homenageava torturadores da ditadura militar no plenário da câmara, dizia que o correto deveria ter sido “matar uns trinta mil” que questionavam a forma autoritária e antidemocrática do regime totalitário. Seu discurso de ódio contra as minorias foi crescendo e, pouco a pouco, foi sendo incorporado ao senso comum como coisa normal. Em campanha eleitoral prometia “metralhar a petralhada”, dizia que pessoas de outras religiões deveriam se curvar a maioria de cristãos, que negros quilombolas não faziam nada e os comparava a animais, falava abertamente que os homossexuais deveriam respeitar a maioria de heterossexuais e não demonstar em público sua afetividade, que as reservas indígenas não deveriam ter mais espaço. Bolsonaro tem verdadeiro amor pelas armas e queria armar todo mundo, inclusive crianças. Bateu continência a bandeira americana, onde armamento e munição são comprados em lojas até por adolescentes como se fossem chicletes. Durante sua gestão, permitiu que crianças a partir dos seis anos treinassem em escolas de tiro, pegava crianças de colo e as fazia imitar armas com as mãos, aliás, fazer o gesto de uma arma com as mãos se tornou sua marca de campanha. O discurso de ódio às minorias, obviamente fascista, ficou tão comum e banalizado que contaminou grande parte do povo, principalmente a população menos favorecida intelectualmente, aquela que não entende o porquê do devido processo legal, aquela que crê que o linchamento seria uma coisa razoável e legitima, aquela que não tem ideia do que significa o facismo. Felizmente, seu mandato odioso que semeava a morte acabou. Os especialistas em segurança pública são unânimes em afirmar que quanto menos armas circularem pela população, menos violência será gerada. Apesar do senso comum e do simplório e xucro (e exatamente por isso popular) ex-presidente crerem que mais armas assegurariam mais segurança, a ciência prova com extrema facilidade que é o contrário, mas Bolsonaro era um negacionista da ciência convicto e tem muitos seguidores. 

Atualmente, dentro da escola é o professor de Educação Física aquele encarregado de ensinar as crianças a lidar com o conflito. Esportes, jogos e lutas são guerras simuladas, conflitos com regras onde cada aluno deve se esforçar para atingir um objetivo que é diametralmente oposto ao de outros colegas. Uns se lançam num esforço físico intenso contra os outros e se obtiverem sucesso na sua empreitada, os outros certamente obterão o fracasso. Isso é a própria receita para geração do ódio. Estamos perpetuando uma cultura de guerra. Numa corrida entre 20 alunos, 19 sairão perdedores. As aulas de Educação Física são verdadeiras fábricas de derrotados, cheias de oportunidades para alguém ser excluído, ridicularizado, sofrer agressões e ofensas de toda sorte. O bullying encontra nas atividades competitivas da Educação Física momento autorizado para humilhações diversas. O discurso oficial do professor, que aprendeu como certo e passa para seus alunos, é que devemos aceitar a derrota e o fracasso como coisas normais, momentos de aprendizado para a vida futura que será uma grande batalha. O dogma que se passa é que a vida é uma competição e que portanto, temos que aprender a se comportar tanto na vitória, escassa, quanto na derrota, abundante. Chamo isso de Pedagogia da Resignação. 



Se um leigo entra numa escola para observar, nem uma semana será necessária para perceber que dificilmente se vê alunos brigando ou chorando nas aulas de matemática, ciências ou história. Porém, é na Educação Física que os professores têm acesso fácil às mazelas e dores sociais que afloram abundantemente durante as aulas. A cognição fica em segundo plano e questões de gênero, religião, raça, classe social ou mesmo força, porte físico e capital estético brotam do chão das quadras de esporte com muita fertilidade. A vulnerabilidade dos alunos fica exposta e visível a olho nu para qualquer observador. A raiva fica evidente na dividida de bola ou na força empregada no chute do futebol. As frustrações são descontadas na violência da cortada do vôlei. As imperfeições e erros são punidos imediatamente aos gritos e palavrões. Um interesse contrariado na cobrança de um lateral é tomado como ofensa pessoal. Na conjuntura em que vivemos, o professor de Educação Física tem que estar sempre ciente que tem muito material combustível pronto para explodir dentro de cada criança e na presença do comburente oxigênio oferecido pela respiração forçada faz com que a simples cobrança de um escanteio seja a fagulha que acende um pavio muito curto. O professor tem que estar constantemente atento para abafar focos de incêndio em esbarrões em quadra e até mesmo conter explosões violentas de fúria irracional por mal entendidos. 

 A Educação Física deveria usar o momento atual, em que esses ataques às escolas estão se tornando comuns, como um excelente gancho pedagógico para se refletir sobre a sociedade em que vivemos. Uma boa hora para propor mudanças e construir uma cultura de paz. Qual a sociedade que queremos? Uma sociedade do conflito, da guerra, de uns contra os outros? Não seria melhor uma sociedade de paz, sem competições e onde não haja perdedores? A disciplina de Educação Física deve usar a situação para se posicionar, o momento atual é um prato cheio, levantar o debate, refletir com seus alunos sobre a situação que nos metemos. O que podemos fazer para que a vida não seja infernal para as pessoas? Chamou a atenção, naquele caso da Vila Sônia em São Paulo, que quem conteve o agressor foi a professora de Educação Física, Cinthia Silva Barbosa. Não deveria ser para isso que um professor tem que estar preparado, conter arroubos violentos de desajustados, perdedores sociais. No entanto, infelizmente, professores de Educação Física estão se tornando especialistas em apartar brigas e segurar agressores furiosos. O diálogo e a busca de um consenso não apareceriam no Jornal Nacional, mas é para isso que Cinthia deveria ser formada, para debater com seus alunos como construir uma sociedade mais justa para todos. 

É importante perceber o quanto a Educação Física, particularmente o esporte, é muito valorizada socialmente. Acesse qualquer jornal e perceba que 20% do espaço é sobre competições esportivas, tanto em jornais impressos como televisivos. Os eventos esportivos são televisionados ao vivo por horas em momentos nobres da semana, sábados e domingos à tarde ou quartas à noite. Grandes empresas disputam o direito de patrocinar os eventos. A maior sala de aula, disparado, de qualquer escola é sempre o ginásio “poliesportivo”. Se pensarmos em área construída, o ginásio é cerca de 10 vezes maior que qualquer outra sala de aula da escola, mas o correto é pensar em volume, quando percebemos que os ginásios são quase 30 vezes maiores. Onde há um ginásio poderiam haver outras 30 salas de aula, 20 se descontado o espaço necessário para escadas, áreas de convivência e banheiros. Os materiais didáticos mais caros também, disparado, são os da Educação Física. Uma bola de voleibol custa R$ 50,00 e ela é consumível, dura pouco. Fica evidente que há uma disposição política grande para que a pedagogia da resignação seja onipresente criando na sociedade uma idolatria ou, no mínimo, uma naturalidade dos esportes como coisa indispensável e necessária à vida em comunidade e até à saúde pública.  

Jogos competitivos são comuns à humanidade desde a antiguidade. O slogan romano do pão e circo, “ad captandum vulgus, panem et circenses”, para resignação das massas, foi requentado pelo capitalismo e ligeiramente ressignificado. Assim como na roma antiga, as competições voltaram a ter um espaço social com magnitude monumental depois da revolução industrial. Grandes estádios passaram a ser financiados e construídos por quem queria manter o status quo de dominação. Dogmas sociais caros aos donos dos meios de produção passaram a ser ensinados às massas aos montes em todas as mídias de forma metafórica usando os esportes ou as lutas: “Há tanta honra na derrota quanto na vitória”. Ensinando que viver na miséria, enquanto alguns privilegiados vivem de forma nababesca, é normal, fracassar sempre também deve ser visto como justo. “Não se muda as regras durante o jogo”. Há que se obedecer as regras, as autoridades, não propor mudanças ou alternativas, ricos serão sempre ricos e pobres sempre pobres, “c’est la vie", resigne-se. “O importante não é ganhar, mas sim competir”. O que isso quer dizer realmente é que todo mundo tem que continuar trabalhando mesmo sem vencer na vida.  “Só vence na vida quem se esforça muito!” Essa é a maior pulha de todas, sugere que a sociedade capitalista é meritocrática, mas isso é uma falácia ridícula. A chance de sair um milionário de uma família de catadores é tão improvável quanto a de sair um catador de uma família de milionários. Mesmo que o catador levante às 3 da madrugada, como já fazem, trabalhar 16 horas por dia, como é normal fazerem, sob sol, chuva ou frio, como estão acostumados a fazer, jamais acumularão riqueza alguma ou serão considerados vencedores, por mais esforçados e honestos cidadãos que forem. Enquanto o filho de um rico, pode acordar ao meio dia, jogar videogame a tarde toda e ainda assim será rico. Perceba que os bordões ensinados à população e repetidos insistentemente por todos os lados não deixam margem para a suposição de uma sociedade em que não seja necessário competir para viver bem. O fato de que a vida é uma selva parece ser uma coisa imutável, a sociedade tem que ser como um eterno conflito ganha/perde, onde alguns poucos vencem, mas a maioria sairá fracassada, perdedora, “loser” como dizem os americanos, não se permite a simples suposição de uma sociedade alternativa ganha/ganha, onde não haja perdedores. Assim como os césares controlavam as massas com algum alimento e uma corrida de bigas, os capitalistas donos dos meios de produção distribuem algum emprego e patrocinam os times de futebol e nos ensinam todos os dias que a vida é assim, competitiva.

A trajetória humana indica um distanciamento das leis da selva, o que é bom. Já houve um tempo em que até canhotos eram mortos por serem diferentes, mas o esforço do intelecto na direção de uma sociedade mais igualitária é evidente. Os Seres Humanos menos favorecidos ganharam muito com uma ética de maior sofisticação moral. A escravidão é fortemente combatida pela legislação e está quase erradicada. As mulheres têm direito a voto com o mesmo valor dos homens. As crianças são protegidas do trabalho. Os idosos são aposentados e mantém suas remunerações mesmo sem trabalhar. Os gays podem se relacionar abertamente e até casar formalmente. As minorias passaram a “empatar” no jogo social pois não há melhores ou piores, mas sim direitos iguais. Não devem existir vencedores ou perdedores na vida. Democracia é sobre isso, igualdade, fraternidade e liberdade, ensinamento cristão que foi adotado pelas repúblicas mais modernas. 

Na escola onde trabalho atualmente, tenho um aluno no oitavo ano que é filho de uma catadora de recicláveis. Vou chamá-lo de Maicon, que é um nome fictício para ele mas bem comum nas escolas públicas brasileiras devido a vassalagem cultural aos Estados Unidos. Imitar a pronúncia de algum nome estrangeiro, como o do cantor Michael Jackson, com grafia nacional, é bem normal, já tive muitos maicons. Esse Maicon é meu aluno desde os seis anos no prézinho, quando vinha orgulhosamente vestido com a fantasia de homem aranha, seu super herói preferido. Logo Maicon caiu na real e deixou de usar a fantasia de homem aranha, o vi nas madrugadas do verão catando latinhas nas lixeiras do bairro com sua mãe. Ele passou a vestir a fantasia dos super heróis dos adultos, dos vencedores da vida real, os jogadores de futebol, profissão que sonha exercer. Maicon, como qualquer brasileiro, ouve infinitas vezes, todos os dias, em qualquer televisor ligado, rádio, site ou jornal aberto sobre a mesa do bar, histórias de superação, de rapazes negros e favelados como ele, que chegaram lá, venceram através do esporte, enriqueceram, deram vida melhor para família, foram morar em países onde o nome Maicon já está na pronuncia correta. A história que contam sugere que é possível, basta se esforçar, seguir as regras, obedecer as autoridades, jogar honestamente! Maicon sonha em um dia também ser entrevistado pelo repórter do Globo Esporte, contar como saía com a mãe de madrugada, sob chuva, com fome, frio e sono, para catar latinhas, mas com muito esforço, ele conseguiu! Indo atrás desse sonho, Maicon se esforça, não falta às aulas, come na hora da merenda, repete e raspa o prato, obedece, me escuta com atenção, mas principalmente, aproveita todas as oportunidades para jogar bola. Antes da aula, no recreio, no fim da aula esperando o ônibus escolar, nas minhas aulas de Educação Física quando sobra um tempinho. Maicon vê no futebol sua única chance de sair da miséria, é isso que lhe é ensinado todos os dias, por todos os lados, a única forma de ser reconhecido como vencedor, na sociedade racista em que vive, que segrega por classe. Existem maicons aos milhares no Brasil, oprimidos que aceitam resignadamente as regras desse jogo excludente, que, como dizia Paulo Freire, sonham em virar opressor.

Uns dias antes do massacre da creche em Blumenau, Maicon me ouvia falar sobre Tutting. Tutting faz parte do movimento Hiphop, é uma dança com as mãos criada pelos excluídos americanos, negros e hispânicos, resgatando a herança memética africana, dos hieroglífos egípcios do tempo do faraó Tut. Eu explicava que os dançarinos não aceitavam aquele discurso que os africanos eram pobres, escravos, ignorantes, incapazes. Eles pesquisaram sobre seus ancestrais e descobriram que a África tinha os países mais ricos do mundo antigamente, impérios, as maiores bibliotecas, as maiores universidades, os maiores cientistas. Um tempo em que os europeus iam à África para aprender, para conhecer o centro do mundo, ficar perto de sábios para ouvi-los falar. Uma época que o Farol de Alexandria (uma das sete maravilhas do mundo antigo), a mais alta construção do planeta naquele tempo, iluminava os intelectuais do mundo todo que se lançavam ao mar atrás de erudição os guiando para a iluminação do saber, do conhecimento, na maior biblioteca que existia então. Os dançarinos de Hiphop queriam voltar no tempo, antes que seus ascendentes tivessem sido sequestrados e levados acorrentados para o cativeiro da América. Eles queriam mimetizar na dança o tempo que as pirâmides do Cairo eram novas, maiores e mais brilhantes que a pirâmide do Louvre hoje em dia, queriam imitar aqueles ancestrais dos quais descendiam, queriam se empoderar, se orgulhar de suas origens. Percebi que os olhos de Maicon brilhavam com minha explicação, ele nem respirava para ouvir melhor, se percebeu descendente de ricos, herdeiro de uma injustiça histórica. Ele que está acostumado com a exclusão, percebeu que não precisava ser, não deveria ser um excluído, poderia não ser mesmo antes de se tornar um famoso jogador de futebol. 

Maicon poderia ter motivações para invadir a escola matando geral, vingando toda sua ascendência, poderia ter ódio acumulado por gerações. No entanto, é curioso que, mesmo sendo um excluído social de todas as formas possíveis, um perdedor, Maicon não está na lista elaborada por meus alunos de possíveis candidatos a desajustados assassinos que entram na escola esfaqueando todo mundo. Os alunos que estão na lista são brancos de olhos claros, como possivelmente é o assassino de Blumenau, cidade de colonos alemães, ou o ex-presidente Bolsonaro. Pessoas racistas que tem ódio mortal aos negros e indígenas, machos misógenos inseguros da sua sexualidade que gostariam de eliminar todas as mulheres e gays do mundo para não ter que enfrentá-los, homens com histórico de atleta frustrado e fracassado, ou jovens que querem resolver tudo a bala rapidamente, inclusive suas próprias vidas. Esse é o perfil do delinquente que entra atirando ou esfaqueando em escolas. Psicopatas que não aceitam que é preciso estudar muito para compreender a ciência e querem impor seu senso comum ainda que a custa de milhares de vidas. São sujeitos que pensam mais ou menos assim: 

Como eu, homem, branco, jovem, ainda não venci na vida? Como as pessoas não enchem estádios para me louvar? Porque entrevistam negros no final dos jogos e ninguém nem olha para mim? Porque os indígenas muito mais pobres que eu têm tantas terras e eu não? Porque tenho que dar lugar a uma mulher grávida no ônibus? Porque tenho que obedecer uma senhora idosa na escola se sou mais rápido e forte que ela? Porque esses rapazes podem andar de mãos dadas e até se beijar na rua e eu não? Porque o que ele estudou na faculdade é melhor do que me disse o tio do zap? Vou obrigar o mundo a me reconhecer como alguém importante nem que seja a última coisa que eu faça. Se não posso ser um vencedor cumprindo as regras numa sociedade ganha/perde, vou impor muitas derrotas antes de morrer, vou cair atirando! Assim acaba logo esse sofrimento de fingir uma sexualidade que me é imposta e finalmente vou ter a fama que desejo. 



Não é à toa que durante o governo do néscio rude do baixo clero parlamentar, diversas vezes eleito por homens brancos com esse perfil, o perfil de Hitler, o perfil de Erdoğan, o perfil de Trump, o perfil de Bolsonaro, tenha aumentado vertiginosamente a fundação de células nazistas por todo Brasil e a ocorrência de ataques insanos como o da creche em Blumenau. 

A Educação Física teve diversas fases no Brasil. Houve um tempo em que a Educação Física nas escolas servia como uma medida de saneamento básico depois da pandemia de gripe espanhola em 1918, promovia a higiene pessoal dos alunos ao ar livre, baseada na ginástica grego-romana. Durante as grandes guerras mundiais, a disciplina serviu para preparar a população para ser um soldado. Depois, uma fase que pregava que a Educação Física seria o centro da formação escolar para vida em sociedade, com dança e música, ginástica calistênica e esportes, para fortalecer e disciplinar as crianças. Finalmente, depois do golpe militar de 64, a Educação Física passou a promover competições, através de esportes coletivos, lutas e atletismo, para que os alunos aprendessem a obedecer às regras e autoridades sem questioná-las, não propusessem alternativas e, principalmente, aprendessem que há que se resignar na derrota agradecendo sorridente o vencedor pela chance de participar do confronto sem sair morto. Para os militares de 64, a Educação Física escolar deveria ser toda com atividades que envolvessem os jovens em conflitos completamente alienados das mazelas sociais e distantes da realidade. Os alunos podem chutar forte se estão brabos, mas sempre jogando “dentro das quatro linhas”, como insistia o ex-presidente Bolsonaro. Interessante reparar que quase todos os professores de Educação Física, políticos legisladores e administradores de todas os sistemas de ensino e escolas atuais do Brasil tem nesse paradigma seu sol, com grandes ginásios poliesportivos no centro da vida escolar até mesmo no recreio. Apesar de, depois da redemocratização em 1985, haja um grande esforço de intelectuais da educação para criar novas propostas democráticas, fraternas e igualitárias, o pensamento hegemônico ainda é o competitivista.

Sou um professor esforçado, leio, estudo e reflito sobre a minha prática pedagógica. No entanto, meus esforços nem sempre são vistos com bons olhos. Um dia desses, fiquei sabendo que uma menina trans entraria para a escola. Como a legislação me obriga, é um tema transversal previsto na BNCC o debate sobre gênero, e já imaginando o tanto de bullying que ela poderia sofrer nas minhas aulas, apresentei um documentário sobre homofobia e transfobia nas escolas para algumas turmas. Escolhi o primeiro que apareceu na pesquisa do google, o assisti planejando minha intervenção pedagógica e o achei bem atual e pertinente. Queria passar para todas as turmas, mas fui impedido pela supervisão e orientação da escola depois da terceira turma. Alguns pais haviam reclamado que no documentário aparecia Jair Bolsonaro e outros políticos dando declarações homofóbicas caricatas. Bolsonaro é o maior exemplo de cidadão brasileiro machista, misógino, homofóbico, transfóbico, racista, capacitista, etc. Ele é um combo de preconceitos de toda sorte, um bufão misantropo. Risível, mas trágico. Porém, tem muitos seguidores, falaram para minhas chefias imediatas que eu estava doutrinando as crianças e pediram que eu não falasse mais em política. Apesar da minha argumentação, fui convidado a assinar uma ata de advertência que eu não deveria mais partidarizar minhas aulas. A “escola sem partido”, visão alienante da escola, como a Educação Física competitivista dos militares de 64, saiu vencedora novamente, pois estou velho e cansado para competições ideológicas e me ameaçaram com processos. Parei de mostrar o documentário, me omiti covardemente do debate em sala de aula ou fora dela e preparei aulas de vôlei alienadas e flutuantes no espaço, a menina Trans que se lasque. Veja que curioso, as Cinthias da Educação Física Brasil afora que estão preparadas para conter fisicamente alunos desajustados e violentos dão entrevistas no programa Fantástico, mas aqueles professores que tentam refletir com os alunos sobre as estruturas injustas da sociedade são chamados a assinar atas ameaçadoras. Na competição ideológica, estou do lado perdedor. O problema é obviamente estrutural. 

É de se reparar que as eleições também são competições excludentes. Elas geram muita frustração e revolta para os perdedores. Elas geram ódio, mágoa e ressentimento. 

Ken Robinson, famoso pedagogo inglês, prega que as artes plásticas, a dança, o teatro e a música deveriam ter a mesma importância nas escolas que a matemática ou as línguas. Muitos até concordam com ele, mas levantam uma série de questões que, segundo eles, objetivamente isso seria impossível, pois a população precisa se preparar para o trabalho, não para cantar, dançar, apreciar arte. Objetivamente, é verdade que não há espaço próprio para essas disciplinas na minha escola de subúrbio. No entanto, há o espaço objetivo de 30 salas para competições excludentes. Há uma escolha política importante aí. Os dirigentes optam voluntariamente por perpetuar uma sociedade com cultura de guerra, em que uns poucos ganham e a maioria perde. A sociedade desejada é a elitizada, onde somente alguns privilegiados sobem no pódio e as massas têm que se resignar de não vencer  na vida. 

Há um mês fui a Porto Alegre assistir a um show dos Almôndegas, trilha sonora da minha infância e adolescência. Milhares de pessoas assistindo, nenhuma foi excluída, saiu perdedora ou brigou com alguém, bem diferente de um jogo de futebol. Foi maravilhoso, mas são momentos raros e caros para quem mora no interior. Lá lembrei de Maicon, ele provavelmente nunca foi num emocionante espetáculo daqueles. Só acontecem essas coisas na capital e são eventos pagos. Na escola, no rádio e na TV aberta ele tem acesso só a competições excludentes, esse é o único mundo que conhece. Esse é o mundo que a sociedade capitalista está disposta a financiar para ele, por mais caro que seja o material didático. Será que se ele tivesse acesso a espetáculos de Tutting, soubesse mais da história de seus ancestrais, tivesse uma vida verdadeiramente democrática, com direitos iguais a qualquer outro cidadão, ele desejaria ser uma estrela do futebol? E o assassino de Blumenau? Será que ele teve aulas para resgatar o orgulho de sua ascendência? Será que seu ato não é uma vingança contra uma sociedade que lhe excluia? Será que a notoriedade que buscava não é para reparar sua invisível vidinha de perdedor?  Será que se não tivesse tido uma educação para a resignação e alienação ele teria feito o que fez? O assassino de Blumenau foi entrevistado uma semana depois do massacre e revelou que faria tudo de novo. Claro, finalmente ele conseguiu o que queria, pessoas interessadas no que tem para dizer. Ele finalmente virou o herói que desejava ser, um vencedor na sociedade que valoriza a guerra. 

A vida não precisa ser uma selva, não deve ser uma competição, nós é que a fazemos assim. Acredito que em vez de quadra poliesportiva poderia ter uma horta nas escolas. Todos fariam uma atividade física intensa e produziriam alimentos para a comunidade. Todos seriam incluídos. Em vez de ginásio improdutivo poderia ter uma lona de circo onde se aprenderia a usar o trapézio, um monociclo ou fazer malabarismo com bolas. Ninguém sairia triste ou irritado da aula. Em vez de competições excludentes, poderia ter mais teatro, escultura e dança, para se aprender a sensibilidade do humano que vive em sociedade civilizada. Em vez de assassinos frustrados, poderíamos ter artistas valorizados. Finalmente, acredito que a Educação Física poderia ser uma geradora de paz, amor e vida, vida em abundância, em vez de guerra, lesões, sofrimento físico e psíquico e morte como é atualmente.