segunda-feira, 16 de setembro de 2019



Espantos
Fazia a faculdade meio de lado, tinha outros planos, pensava em ser empresário. Abri uma pequena oficina de bicicletas na garagem de meu pai. Fazia duas ou três cadeirinhas que me interessavam como ciclista amador. Mas, as dificuldades da livre iniciativa me levaram a repensar tudo. Lá pelas tantas resolvi terminar a Educação Física. Comecei a fazer dez cadeiras por semestre. Havia muitas cadeiras optativas no curso, mas muitos créditos necessários para obtenção do diploma eram assim. De forma que comecei a pegar disciplinas que não me despertavam nem curiosidade, como vôlei ou futsal, só para cumprir as exigências mínimas do grau. Enquanto houvesse horários vagos na grade eu socava alguma coisa na hora da matrícula. Lá pelas tantas, escolhi uma dessas não obrigatórias, de apenas quatro créditos, que todo mundo dizia que era das mais fáceis, nem precisava estudar para passar. No entanto, a tal da cadeira me atormentou terrivelmente, eu dormia e acordava pensando nela, suava frio e passava mal durante as aulas e foi meu único “C” do currículo, passei raspando. A disciplina chamava Rítmica Dança e tínhamos que apresentar três coreografias para aprovar: uma de dança moderna, uma de dança clássica e uma de dança gauchesca. A professora era sádica e colocava música a tocar enquanto nos obrigava a dançar, para mim uma tarefa hercúlea, mitológica, impossível. Logo ficou claro para ela que eu era o pior aluno da classe. Não só para ela, todos os alunos viam que eu era um desastre dançando porque a sala de aula tinha as paredes forradas com grandes espelhos para minha grande humilhação ser conhecida e ridicularizada em toda universidade. Enquanto todos iam para um lado eu estava indo para o outro, atrapalhado, atrasado em todos os movimentos, me batendo nos outros e sofrendo. A professora não entendia minha dificuldade, para ela uma coisa tão fácil: Tiago! É só dançar conforme a música! Ó, essa é ternária, escuta! Pã, pã, pã, está ouvindo? Preste atenção! Eu me defendia como podia: Mas professora, eu estou quase morrendo de tanta atenção, estou me esforçando ao máximo! Eu consigo escutar que a música é ternária, também consigo dançar! O problema é que a senhora quer que eu faça as duas tarefas ao mesmo tempo. Uma colega de grupo me salvou do fracasso total: Esquece a música, deixa que nós prestamos atenção nela, olha para nós e repete o que a gente fizer! Foi minha salvação. Eu decorava as coreografias e ficava atrás de todos nas apresentações. Era ainda difícil, exigia concentração total naquele ambiente ruidoso, a música soava como uma buzina de nevoeiro num navio nos meus ouvidos, mas tornou a tarefa exequível. Era como consertar um relógio suíço depois de levar marteladas nos dedos, extremamente penoso para mim, mas possível. Quando terminou o semestre pensei que nunca mais passaria por tal tortura.
Me formei Professor de Educação Física e enveredei para a área de treinamento pessoal, longe das escolas. Se algum cliente exigisse dança ou música eu indicava outro colega, não era para mim. Mas, a vida vai nos levando por caminhos tortuosos independentes da nossa vontade. Fui fazer mestrado em Florianópolis e para me sustentar fui obrigado a dar aulas em escolas. Me esquivei enquanto deu, por anos, da música e da dança. Trabalhei na Educação Infantil, em projetos no contra turno da escola, até em escolas para cegos. Mas a música e a dança sempre me perseguiram. Atormentado, voltei para o Rio Grande do Sul, fui morar em Maquiné e decidi não ser mais professor. A decisão deu errado, as agruras da iniciativa privada me desviaram de novo e me colocaram de volta dentro das escolas, agora na cidade de Osório. Chegou uma hora que foi impossível me desviar de supervisoras que me questionavam: porque tu não fazes uma dança com as crianças? Não queria admitir que sou um retardado, que tenho uma deficiência mental, que não tinha a menor condição de ensinar alguma coisa que para mim é impossível. Diante da lei nacional que dita que a Educação Física TEM que ensinar dança, é um dos seis eixos curriculares da disciplina nas escolas, me vi obrigado a adaptar. Então, mandava os alunos pesquisar coreografias e mostrava filmes com outras crianças fazendo maravilhas e incentivava as crianças tentarem fazer algo semelhante. Também mandava estudar a história do ballet ou a vida da Isadora Duncan. Disfarçava... ainda disfarço, escrevendo no quadro várias exigências que queria ver na coreografia dos estudantes: mudanças de nível, salto, deitado, ajoelhado, sentado, etc. mudanças no espaço, os dançarinos dispersos no palco, agrupados, em fila, em xis, w, etc. Nossa, parecia mesmo que eu tinha sido aprovado com louvor na disciplina de dança da faculdade. Mesmo com todo meu empenho didático, meus alunos apresentavam coreografias ruins demais, reflexo de um professor ruim.
Arrumei uma amiga que coordenava um projeto de dança no bairro Restinga em Porto Alegre e pedi ajuda. Ela se interessou por meu problema e foi super solícita. Logo conseguiu um ônibus para seu grupo viajar até nossa escola e se apresentar. Combinamos uma quarta feira para que os visitantes tivessem a oportunidade de participar também de nosso projeto de excelência, o Pé na Areia, coordenado pelo professor de Geografia, Fabiano. Foi muito legal, eles apresentaram umas quatro ou cinco danças para nossos alunos atônitos. O nível do grupo da capital era totalmente diferente dos meus alunos. Eles tinham bons professores, ricas coreografias, jogo de cena, figurino. Era um grupo enorme, com várias pessoas no palco, variavam muito os movimentos, eram maravilhosamente espantosos. Uma menina do sétimo ano, ao final do espetáculo, se aproximou de mim toda alegre e disse: Professor, essa dança deles é tão louca, mas tão louca, que eu nem entendi nada!! Para ela foi como um primeiro orgasmo, incompreensível, mas muito prazeroso. O grupo que nos visitou tinha estrada, havia participado de festivais, viajado para outras cidades, outros estados até. Nós tínhamos testemunhado um longo processo de estudos e aprendizados, não era uma dancinha qualquer. As oportunidades culturais que as crianças da capital tem, mesmo as pobres, são muito maiores que as crianças do interior tem acesso.
Almoçamos e, depois das apresentações da tarde, fomos caminhando para a praia de Mariápolis para participar do Pé na Areia. Nossa escola fica a oito quadras do mar, então passamos por um sem número de terrenos, casas, jardins bem cuidados, plantas exóticas, piscinas, enormes sacadas envidraçadas de frente para o mar, mansões absolutamente vazias, as ruas de Atlântida Sul desertas no inverno. As crianças da Restinga, excitadas e curiosas, iam me perguntando coisas sobre tudo que viam. Mas quem mora aqui nessas casas? E eu, constrangido, esclarecia: Ninguém! São casas de veraneio, só usadas no verão. Será que eles deixariam a gente morar aqui o resto do ano então? Eu, ainda mais sem jeito, talvez já ruborizado, me sentindo culpado pelo flagrante de obscena diferença social: Acho que não. Chegamos a areia da praia e agora foi a vez delas de viver o momento de espanto. Muitas nunca tinham visto o mar. Elas corriam feito loucas, molhavam os pés e subiam nas dunas, se abraçavam e riam, soltas na infinita beira mar de Osório. Nossos alunos, acostumados àquela paisagem, nem entendiam o porquê de tanta alegria dos visitantes. Fabiano, mestre que é, ia nos guiando pelas dunas, nos apresentando o bioma costeiro, os pássaros, os siris, os peixes. Vimos piru-pirus, gaivotas, albatrozes, vimos maria-farinhas, um baiacu morto e até, para nossa felicidade, um tuco-tuco cavando sua toca. Discutimos ventos, marés, dunas, vegetação nativa e exótica, ocupação humana atual e a indígena ancestral e, ao final, fechamos os olhos e escutamos o mar em silêncio. Antes de entrar no ônibus para voltar para casa, as crianças da Restinga se atiraram no mar e rolaram na areia, mesmo sendo inverno, mesmo não tendo outras mudas de roupas ou toalhas para se secar, mesmo ficando batendo queixo, com coxas assadas da areia e beiços roxos de frio. Quando elas teriam outra oportunidade daquelas para se banhar? Não ouvi seus comentários no ônibus para Porto Alegre depois, mas será que não foi como o da minha aluna: essa praia foi tão louca, mas tão louca, que eu nem entendi nada! Certamente o que testemunhei foram orgasmos. Múltiplos. Inéditos. As oportunidades de contato com a natureza que as crianças do interior tem, mesmo as pobres, são muito maiores que as crianças da capital tem acesso.
Moro no interior há quase oito anos, mas sempre vivi em capitais, tanto de outros estados como de outros países. Sempre tive uma grande oferta de eventos culturais que nem percebia que eram espantosamente maravilhosos. Vim buscar os espantos naturais que me faltavam lá e encontrei, em abundância. Mas, agora, sinto falta daqueles espantos da capital, muita. Quando vou a Porto Alegre vou com sede de eventos, vou a tudo, museus, shows, peças de teatro, cinemas, saraus, ballet. Final de semana passado fui num espetáculo diferente, Outros, do grupo Galpão de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. Eram coroas, todos com mais de 40, fizeram música, teatro, dança, performance. Tão louco, mas tão louco, que não entendi nada! Quando chego no trabalho, conto para alguns interlocutores que sabem desse meu lado curioso o que vivi. Em Osório sou tido como muito erudito, um exímio conhecedor do panorama cultural. Mas não sou, sou só um cara que gosta de se espantar no cinema ou nalguma peça. Em Porto Alegre sou tido como um grande explorador do meio ambiente natural, um aventureiro da paisagem campestre. Mas também não sou, sou só um cara que tem uma casinha de madeira no morro, racha lenha, planta aipins, nada nos rios, colhe frutas.
Assim como não consigo dançar e ouvir música ao mesmo tempo, não consigo conciliar minha vida erudita e rural. Consigo uma de cada vez, mas não as duas ao mesmo tempo. Porém, gosto das duas igualmente. Os amigos que tenho numa não se encaixam com os amigos que tenho noutra, quase não falam a mesma língua. Isso me atormenta como a cadeira de Rítmica Dança. Estou fazendo como minha colega me ensinou naquela época: esquece uma, presta atenção na outra. Quem observar a coreografia da minha vida no futuro vai perceber alguns tropeços, talvez eu passe raspando, tire “C”, mas estou me esforçando ao máximo para apresentar um belo espetáculo. Sou um buscador de espantos e os encontro em abundância, algumas pessoas percebem, outras não.