quinta-feira, 2 de janeiro de 2020


O final feliz do velho professor
Guillermo arrumou seus dois últimos charutos enquanto tomava um café preto, cada um dentro de sua própria latinha. Gostava de fumá-los, não eram havana, mas tinham boa qualidade. Gostava do cheiro, do gosto, da sensação aveludada da fumaça rolando na boca e descendo a garganta. Um pigarrinho o acompanhava há anos, mas era o preço a pagar por aquele prazer e a reflexão que proporcionavam. Freud e Fidel lhe dariam razão. Os acomodou no bornal junto a um cantil com água. Pensou em levar um fiambre para lanchar, talvez um pão com salame, mas não ia precisar, eram só umas seis horas de caminhada até lá, teria condições de chegar bem. Pegou o cachimbo de raiz de nogueira e algum tabaco numa puída boceta de borracha, poderia ir dando umas pitadas pelo caminho. Olhou aquele lindo objeto que havia comprado em Amsterdam, a madeira brilhava como recém envernizada, mesmo depois de tantos anos. Só aí lembrou do isqueiro, velho companheiro que conseguia manusear no escuro, ainda acendia de primeira. Olhou sua aparência já bem polida pelo uso. Ainda encheu uma garrafa de bolso com seu melhor conhaque, seria bom para encorajar. Na porta, deu uma boa olhada para tudo, seus discos, seus livros, retratos de momentos felizes, sua história toda ali naquela pequena casa. Bateu a porta mas não chaveou. Facilitaria a vida de quem viesse depois. A manhã estava fresca, era verão, mas o tempo estava para chuva. Caminhou pela vila que ainda dormia, o sol levanta bem cedo nessa época do ano. Não sabia as horas, mas pouco importava. Foi passando pelas casas dos vizinhos e relembrando acontecimentos, amigos, amores, festas, brigas, sexo. Uma vida inteira ali tinha vivido, mas gostou de não encontrar ninguém, nenhum chato para cumprimentar. As únicas testemunhas de sua saída foram quatro andorinhas no fio de luz. O cheiro de jasmin tomava as ruas, encheu os pulmões com aquele agradável e úmido odor de aurora. Caminhava decidido e aquele perfume o alegrou.
Parou um instante no meio da estrada de chão, tirou do bornal o cachimbo e a boceta, preparou o tabaco e acendeu. Seu pai não fumava, mas por alguma razão, aquele gesto o fez lembrar dele. Talvez exatamente por isso, ele não gostava de drogas, de experimentar estados alterados da consciência, ao contrário de Guillermo. Seguiu caminhando. Pensou em Mario Quintana e o poema espelho: “Lentamente, ruga a ruga”. Todos os atritos que viveu com aquele velho avarento, as mágoas que ainda carregava consigo apesar dele morto há tanto tempo. “E os teus planos enfim lá se foram por terra”. As últimas vezes que se olhou no espelho se viu tão velho, os olhos opacos. A memória de sua mãe já bem mais distante, o carinho que tinha por ela, os arrependimentos das coisas que disse. Apurou o passo para sair logo da vila e daquele passado que o assombrava. Chegou a boca da trilha bem a tempo de ver ao longe o primeiro carro vindo pela estrada e se alegrou com o pensamento que não pegaria a poeira levantada por ele.
A trilha era estreita e escorregadia, cheia de pedras e raízes. Ali começava a verdadeira jornada introspectiva, ele sabia que muitas outras memórias viriam. Caminhava com o cachimbo a altura do peito, vez por outra o levava até a boca, até que se apagou. Parou para guardá-lo e tomar um gole do cantil. Também tomou um gole de conhaque para amaciar as juntas. Deixou a garrafinha no bolso das calças, mais a mão, percebeu que ia precisar mais seguido. Chegou ao pé da montanha e começou a subir. Guillermo ofegava, mas era normal para um homem de sessenta anos. Os pensamentos o acompanhavam, flutuavam aleatórios na mente. O esforço o fazia tropeçar em alguns muito antigos, mas a maior parte do tempo remoía os mesmos dos últimos dias. Estava velho, mas ainda longe de se aposentar. Se via como um professor medíocre. Já tinha tido seu orgulho acadêmico, preenchia seu currículo lattes com todos os cursos e palestras de que participava, mas agora não via mais sentido naquilo tudo que estudara. Será que tocou alguém em todos esses anos de docência? Será que ensinou alguma coisa? Já não tinha certeza, acreditava que não. Sua profissão passou a ser só mais uma cruz para carregar. E todos os livros que já tinha lido, de que adiantaram? Talvez somente para chegar até ali. Os ignorantes certamente são mais felizes. Camus conseguiu formular o problema que agora compreendia tão bem: o suicídio é a única questão filosófica que realmente importa. Pensou que tinha achado a resposta e caminhava feliz com a conclusão à que chegou.  
Caminhava já há duas horas e sentiu fome, mas nada tinha para comer. O esforço o deixava sensível e seu cérebro reconstruiu na sua boca o gosto do salame que deixou sobre a mesa, chegou até salivar. Parou para sentar-se um pouco numa pedra à beira da trilha. Tomou um pouco de água e conhaque. Recuperou o fôlego da subida e abriu delicadamente, com muito cuidado, a latinha do primeiro charuto, o acendeu com calma e reverência. O segundo deixaria para o fim, para as reflexões finais. O gosto daquele fumo estava muito melhor do que jamais tivera. Refletiu que era o cansaço, realçava o sabor, apreciou muito aquela gostosa sensação. Tantos pensadores que admirava usavam o charuto como inspiração também. Saboreou aquele instante com enlevo, percebeu que era um momento feliz. Lembrou da paciente que insinuou sobre o prazer que Freud sentia em chupar um charuto. Conseguiu até rir sozinho na floresta e se engasgou com a fumaça. Todas as mazelas familiares e suas interpretações lhe subiram a consciência. Os significados, as que tinha sublimado e as que nunca tinha superado, estavam todas ali junto com ele naquela hora. Guillermo era um homem carregado de história, como qualquer homem de sessenta anos, mas aquela bagagem emocional já não pesava nas costas. Olhou para o céu e para as plantas a seu redor, sentiu-se plenamente integrado com o meio ambiente. A natureza era absolutamente indiferente a ele e suas inquietações. Retomou a caminhada sorridente.  
A lembrança da sagacidade da paciente de Freud, sua malícia e agudeza de espírito o fez voltar no tempo para junto de suas mulheres. Puxou a garrafinha de conhaque do bolso traseiro das calças e tomou mais uns goles para comemorar. Ah, aquele era uma assunto bom de relembrar. Guillermo não era nem bonito, nem feio. Era médio, todo médio, na altura, no pinto, no intelecto. Mas para com as fêmeas ele tinha algo que o tornava acima da média. Ele havia conseguido seduzir mulheres muito mais inteligentes, ricas e bonitas que ele. Conviveu com verdadeiros lumiares. Creditava a elas muito de seu tirocínio. Com cada uma aprendeu um pouquinho. Quanta risada, quanto prazer, quanto gozo obteve com elas. E o tanto que ofereceu também, tinha consciência disso. Elas também aprenderam e gozaram com ele, teve muita sorte na vida nesse quesito. Transar na praia ao luar, chorar lendo um texto juntos ou assistindo a um filme, saborear uma boa refeição lavando nus a louça, comer sorvete no umbigo. Das experiências humanas de sensualidade, cumplicidade, companheirismo, amizade, tinha experimentado tudo. Cada uma foi passando na sua memória, como num desfile de misses. Cada uma melhor que a outra, cada uma com sua peculiaridade, cada uma com seu sabor diferente. Da magrinha crocante a obesa suculenta, da doutora em filosofia a empacotadora de supermercado, todas tinham sido muito importantes em sua vida. Porém, nenhuma lhe deixou tentado a firmar um compromisso de vida inteira. Algumas tinha feito chorar ou agido como um machista clássico, mas, no computo geral, mais tinham o amado do que odiado. Se alegrou muito com esse pensamento, olhou para cima e viu o cume do morro.
Faltava pouco agora, Guillermo já estava bem cansado. A floresta se abriu com bem menos árvores na altitude da serra, uma linda paisagem se descortinava em cada curva da trilha. A vila lá embaixo parecia bucólica vista dali, sem todas as imperfeições, desgostos e vícios que sabia que lá tinha. Parou um pouco para apreciar o panorama, abriu o bornal e catou o cantil. Tomou todo o resto de água que ainda havia. Pegou a garrafinha e também acabou com o conhaque, assim daria tempo de fazer o efeito desejado dali a pouco. Ajeitou o tabaco no cachimbo pilando com o dedo e acendeu. Deu umas baforadas observando suas linhas arredondadas e belas e seguiu para cumprir seu destino. Numa pedra solta, distraído olhando para o vale lá embaixo, torceu o tornozelo e caiu. Bufando, se ajeitou no chão como dava, ralou a mão e o cotovelo, seu tornozelo doía muito, menos um pouco do que doeria se não tivesse tomado o conhaque. Conseguiu levantar e deu uns pulinhos num pé só. Mas era um esforço maior que conseguia fazer. Faltavam poucos metros, mas talvez não conseguisse. Ninguém apareceria para lhe ajudar, não num dia de semana naquela trilha remota, pensar isso lhe alegrou. Sócrates era contra o suicídio, mas aceitou a condenação de voluntariamente tomar cicuta, achava que a morte era libertadora, finalmente a alma estaria livre do fardo do corpo. Lembrou-se dele naquele momento, seu corpo era uma âncora, estava obviamente atrapalhando seu espírito. Não acreditava naquela baboseira de alma, via o corpo e a mente como uma coisa só, chamava de “corpente”. A dor do corpo é a dor da mente, indissociáveis. Sentou no chão ofegante, tirou suas surradas botas de caminhada do pé machucado. O dia em que as comprou em Estrasburgo passou por sua cabeça. O tornozelo estava inchado e roxo, talvez tivesse quebrado a fíbula ou rompido algum ligamento. Guardou a bota e a meia no bornal, não queria deixar lixo para trás, seguiu caminho se apoiando nas mãos e no pé bom. O deslocamento era sofrido mas engraçado, parecia um siri na praia. Apesar da dor conseguiu rir da situação.
O trecho que duraria cinco minutos caminhando em pé, Guillermo levou quase uma hora naquele estado patético, mas conseguiu chegar onde queria. Estava exausto, mas exultante da empreitada, havia conseguido. Tinha vivido toda uma vida para chegar até ali, obtivera êxito pleno. Sentou seu corpo faminto, cansado, dolorido, sedento e desejante na rocha da beira do penhasco. Seus pés pendurados no abismo. Ali devia ter pelo menos uns cem metros de queda livre até bater na primeira pedra lá embaixo. Somente os urubus saberiam de sua localização, não incomodaria ninguém. Respirou fundo e olhou o infinito. Riu um pouco sozinho, estava bem feliz. Tirou o segundo e último charuto do bornal. Segurou firme a latinha para não cair lá embaixo sem querer, isso seria muito triste. Abriu a tampinha cautelosamente e sacou o lindo charuto. Ficou um tempo o contemplando e depois o cheirou de ponta a ponta. Com carinho, acionou seu velho isqueiro uma última vez e, como sempre, ele não falhou, mesmo com uma fina garoa que agora caia. Fumou aquele charuto com toda calma, lembrando todos os pensadores que o haviam acompanhado por todos aqueles anos: Kant, Hegel, Kierkegaard, Espinosa, Schopenhauer, Marx, Nietzsche, Rousseau, Beuvoir, Sartre... Cada tragada era seguida de um demorado rolar da fumaça na língua, observando como ela se misturava ao meio ambiente assim que liberada da boca. Os artistas que lhe impressionaram tanto Duchamp, Van Gogh, Rodin, Chico Buarque, John Lennon, Bob Dilan, os escritores com quem conversava até altas horas da noite, Érico Veríssimo, Machado de Assis, Victor Hugo e tantos outros. Muitos deles também tinham optado por abreviar a existência. Pensou em tudo que tinha vivido saboreando aquele último charuto, os lugares e pessoas que conheceu. O tornozelo nem doía mais, o conhaque havia servido bem. A soma, tanto das dores quanto das alegrias que teve na vida, estava agora apresentando o resultado e era positivo. Sua vida valera a pena. Ali estava ele, um homem com seus pensamentos e vícios que saciavam plenamente seu “corpente”. Estava feliz e realizado. Era o senhor de sua existência, não se deixou levar pela vida, mas a domou com rédea curta, inclusive agora, quando decidira dar fim a ela. Apesar de muitas vezes parecer escravo do corpo, que exigia dele que comesse, evacuasse, bebesse ou urinasse a revelia de seu comando, queria exercer a única liberdade real do ser humano que é a possibilidade de escolha do momento do fim.
Guillermo apagou o toco do charuto na rocha e guardou o que sobrou na latinha. Arrumou o bornal no pescoço, sentou-se mais na beirinha do penhasco, encheu o pulmão de ar fresco olhando para o horizonte e lançou-se no abismo. Por alguns segundos ainda se deliciou com o voo. Estava feliz.