segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Fomos veranear em Garopaba. Coisa curiosa a relação que temos com aquela cidade. Desde meus sete anos que a família aluga alguma casa no verão por lá. A viagem era uma epopéia: pai, mãe e quatro crianças numa Brasilia amarela, mais todos os utensílios e roupas necessárias para passar um mês. Demorava horas, um dia inteiro. Perto de chegar, as estradas eram de chão. Meus pais se esforçavam para tornar a jornada o menos penosa possível. A mãe comprava gibis e chicletes e o pai, mesmo concentrado na tarefa de dirigir, de quando em quando puxava uma cantoria. Cantávamos de tudo, as canções que houvíamos em casa, nas manhãs de domingos. Chico Buarque, Clara Nunes, Os Demônios da Garoa, músicas de igreja, marchinhas de carnaval... Cada um lembrava de uma. As duas irmãs mais velhas ajudavam no repertório, tinham uma ótima memória musical. Eu era pequeno e nunca fui bom em nada que se refere a música, ia na carona, cantava os estribilhos. Mas eram momentos gostosos, fazia a viagem parecer agradável e não uma espera aborrecida. A família inteira fazendo algo juntos, alegre em coro se entretia. É um privilégio pertencer a um grupo humano com tanta riqueza cultural. 
Nas primeiras vezes que fomos, Garopaba era uma vila minúscula, uma aldeia de pescadores. Num canto da praia tinha um rio desaguando no mar e todo o lugarejo se espremia dali para o morro. Algumas casas muito antigas e ranchos de madeira na praia para guardar os barcos de pesca. Depois da fronteira do rio, que separava a cidade do deserto, o resto da orla eram dunas quentes e vazias. Caminhar até o costão do Siriú era uma aventura solitária e sedenta. Só havia um pequeno barraco, no meio da baia, era o bar do “Ermitão”. Mas não funcionava durante o dia, só a noite. Minha mãe explicava que era dos hippies. Tinha uma lagoa grande, os nativos pescavam uma refeição rápida lá, mais nada. O Ermitão ficava no meio do ermo.
Naquele tempo, tudo era manual, inclusive a fabricação das canoas, entalhadas num único e enorme tronco de garapuvu. Objetos belíssimos, pintados com capricho, com curvas suaves, obras do trabalho esmerado de algum artesão meticuloso. Pela manhã, acordávamos cedo para ver o “arrastão”. Enquanto alguns barcos saiam, com todos os homens remando sincronizadamente de encontro as ondas, outros chegavam carregados. Era o acontecimento que mais movimentava a praia. As coloridas canoas surfavam até a areia. Eu, que recém aprendera a ler, ficava atento aos nomes pintados na proa. Alguns pescadores colocavam troncos no chão e outros empurravam a canoa lomba acima para sair d'água. Desembarcavam cordas e começavam a puxar as redes para terra firme. Era uma operação demorada, um esforço enorme. A rede lutava, ia e vinha ao sabor da ondulação e da força dos músculos. A vila inteira vinha interessada em ajudar. Os homens e mulheres puxando e as ondas empurrando de volta para o mar. Quem ajudasse era pago na hora com uma garoupa à escolher. Depois de uma meia hora de negociação com a natureza, as águas se agitavam, eram os peixes saltando na areia. Uma roda enorme de gente ficava em volta do resultado da pescaria ainda vivo e pulando no seco. Uma falação incrível, a multidão em júbilo. O momento era de festa naquele sotaque carregado que nos encantava, a vila inteira comemorava a empreitada e a garantia de mais um dia de fome saciada. O pobre, o coxo, o velho, o louco, as crianças, todos saiam com seu quinhão na mão. Os peixes eram negociados ali mesmo. Do nada aparecia uma caminhonete F 75 com baú frigorífico e caixas verdes de plástico eram enchidas rapidamente e colocadas para dentro da carroceria. Nós voltávamos para casa, felizes, com o almoço comprado e os olhos cheios de fraterna solidariedade. Ali não era uma sociedade como a de Porto Alegre, industrial e egoísta, era inclusiva e se notava pouca diferença social. 
Esse ano o veraneio foi diferente, claro. As estradas agora são de asfalto, a cidade é enorme, os barcos de pesca são grandes, de aço e motor e nem chegam na areia. O que antes era alimento, agora é produto que se vende. Não se vê mais redes, nem canoas de um pau só, nem remos. Os garapuvus que ainda restam, são jovens e pequenos, os artesão entalhadores já devem ter morrido. Na areia, não se vê mais tatuíras, mães d’água ou conchinhas. De ponta a ponta da baia tem casas de veraneio, não se vê mais dunas. O Ermitão e a lagoa, claro, sumiram. Não se vê mais corpos magros, musculosos e bronzeados do árduo trabalho braçal ao ar livre. Sentamos em cadeiras plásticas e garçons vem atender o que queremos na beira da praia pertinho do costão do Siriú. As garoupas estão extintas na região. Quarenta anos transformaram totalmente a sociedade garopabense e nem solidários arrastões eu vi dessa vez. Agora, a mãe já morreu, o pai está velhinho, temos filhos, veraneamos separados e em outros lugares. Mas, nos poucos momentos que alguns membros daquela família original se reúne em Garopaba, nossas cantorias continuam. Lá pelas tantas o pai puxa o coro e a gente vai atrás. É bacana. Que incrível repertório de canções vamos herdar, quão ricos somos em experiências musicais.
Na viagem de volta, trouxe o carro do cunhado para Porto Alegre sozinho e vasculhei os CDs. Escutei três vezes o Pink Floyd, The Dark Side of the Moon, por medo de mexer no som enquanto dirijo sem saber operar direito o aparelho. Paro para um xixi e tenho tempo de escolher outro CD com calma, peguei o do Pato Fu: Música de brinquedo. A banda faz uma coletânea de canções, das mais variadas, em português, inglês e japonês, as crianças cantam e todos os instrumentos são de brinquedo. É um disco bacana, me apaixonei, de novo, por Fernanda Takai e sua voz doce. Fiquei imaginando onde ela passa seus verões. O que seu pai colocava na eletrola nos domingos pela manhã para a família ouvir? Imagina viajar com ela!! A diversidade de canções que iam brotar do coro!! Se eu, que nunca escuto músicas, tenho memórias tão caras de momentos de cantorias, imagina essa guria!!! Ela devia passar férias num lugar bem distante, dias de viagem, arrastões ainda mais demorados, estradas de chão e vilinhas pequenas de economia solidária. De repente, me senti irmão da Fernanda e me vi com ela, minhas irmãs, meus pais e os caras da banda, numa brasilia amarela ou numa belina verde, apertado mas feliz, cantando juntos, ansiosos para chegar. Que melancólica saudades me deu dos veraneios em Garopaba.