domingo, 28 de abril de 2019


Voltinha de dragão



Minha experiência motociclística começou aos sete anos. Visitamos meu tio Jorge em Tapes e sua filha Jacqueline tinha um namorado motoqueiro. Ao fim da visita, ao sair no portão, vi uma CG 125 estacionada na rua. 

Calado, me aproximei e fiquei admirando curioso aquela máquina tão diferente da Brasília amarela de meu pai. Minha prima imediatamente ordenou ao namorado: Leva ele para uma voltinha. Fiquei um pouco assustado e, pela cara que fez, o cara não gostou nada da tarefa. Mas, sem alternativas, ambos topamos cabisbaixos, meio a contragosto. O cara montou e ligou a CG com um único coice, a Jacque me mostrou onde pisar para subir na garupa e um cinto de couro no banco onde me segurar. Obedeci as instruções, como sempre fazem as crianças e, mal terminei de sentar, o magrão arrancou. Achei a arrancada muito brusca e percebi que o cinto era um péssimo lugar para me firmar sobre a moto. As ruas eram de chão batido e na primeira esquina eu tive certeza que a moto derraparia no areão tal a velocidade que íamos. Cerrei os dentes e me agarrei com toda a força na cinta apavorado, mas, por milagre, conseguimos contornar. Mas, não tinha o que fazer, era tarde, ele já estava disparando para a segunda esquina. Não era só uma voltinha? Para onde esse desconhecido me levará??? Já estava cagado de medo. Ninguém naquela época usava capacete e eu também nem sabia da necessidade, achava que era só uma espécie de adorno que alguns motociclistas utilizavam como bossa. O ruído era ensurdecedor, eu ofegava e meus olhos arregalados lacrimejavam. Terror!! Eram, sem dúvida, meus últimos suspiros, ninguém poderia sobreviver àquilo. Eu lutava pela vida e o cara acelerava para mais uma curva fechada no fim da quadra. Na quarta esquina eu já imaginava que aquela era uma máquina mágica inderrapável, diferente de uma bicicleta, porque o cara reduzia a marcha, o motor quatro tempos rugia grave e ele deitava para valer. A tortura parecia interminável! Felizmente, o barulho diminuiu e a velocidade também até parar novamente na frente da casa de meu tio. Desci atordoado e trêmulo, mas sobrevivi à experiência. Hoje percebo que o cara deu uma volta na quadra de um minuto a uns trinta por hora, mas na época me pareceu que tinha montado num touro irritado por uns dois dias.  
A segunda vez que andei de moto já tinha uns nove anos, foi lá na Tristeza, na garupa de meu tio Luiz. Ele tinha uma Yamaha RS 125. 

Fiquei sem jeito de recusar, ele adorava motos e queria partilhar comigo aquele “prazer”. Tio Luiz pedalou umas três vezes para acordar o motor dois tempos que deu um grito agudo. Subi na geringonça com medo e desta vez me orientou para segurar o bagageiro atrás da minha bunda. Arrancamos e percebi que ali era ainda pior que a cinta do banco de Tapes para se agarrar. Na verdade percebi que andar de moto era uma brincadeira arriscadíssima, uma corda bamba sobre um rio de lava. Para piorar, ele andava muito mais rápido e as ruas eram de pedras de granito irregular. A moto ia saltando e fazia um barulho medonho, soltava calor e fumaça aos montes, era um dragão tentando me matar. Desta vez eu não escaparia, a morte era iminente! Entrei em pânico e a cada acelerada eu pensava em me jogar, seria mais prudente. Luiz achava que eu estava gostando e, aos gritos, me mostrava as capacidades da moto: QUERES VER QUANDO EU REDUZO PARA UMA TERCEIRA?? Eu não queria, mas estava apavorado demais para abrir a boca. Ele acelerava tudo e eu fazia o que podia para não cair. Acho que era um rito de passagem para a adolescência, sei lá. Mas era uma provação incrível. Resisti e passei no teste! Mas achei que nunca mais iria subir numa moto.
Cada vez que trocava de moto, tio Luiz vinha me mostrar orgulhoso. Comentava as vantagens da nova máquina, seus defeitos, os passeios que havia feito e seus planos de viagem. Aquelas conversas me interessavam muito. Gilera 175 que estragava tudo, Yamaha RS 125 importada do japão que não estragava nada, outra RS nacionalizada que era mal montada, duas Honda Turuna 125 com freio a disco, XLX 250R com dois carburadores difíceis de regular, XLX 350R com duplo comando no cabeçote e válvulas radiais. Uma ocasião, tio Luiz presenteou-me toda sua coleção de revistas Duas Rodas, desde o número um. Eram pilhas de revistas velhas, todas sempre traziam alguma reportagem de viagens. Comecei a lê-las pelas viagens de moto, os relatos eram maravilhosos: neve, estradas ruins, solução de problemas mecânicos no meio da selva, pessoas interessantes conhecidas na estrada, paisagens exuberantes, montanhas... Tomei gosto e li todas as reportagens das revistas, mas não só as de viagens: testes, comparativos, mecânica, história, entrevistas, lia inclusive as propagandas e as tabelas de preços. Comecei a me apaixonar pelas motocicletas quase tanto quanto meu tio. Passei a ter minhas preferências e as debatia com ele. Percebi beleza extrema no objeto motocicleta, nobreza na sua história e finalmente me flagrei apaixonado pelo assunto. Fui doutrinado por meu tio Luiz a amar as motos. Algumas reportagens me marcaram profundamente: A paixão de Steve McQueen pelas motocicletas Triumph. Ele realmente andava de moto, fazia as cenas de seus filmes sem double e participava de corridas baja pelo deserto da Califórnia. A explicação de porque gostava tanto delas: É como torcer o rabo de um tigre. Entendi aquilo que eu sentia ao andar de moto. Entendi a loucura do tio Luiz e do ator famoso. O medo, a coragem de enfrentar o rugido e a fúria da besta, domar sua enorme força, a ousadia de tentar controlar aquele poder a mão livre, a intrepidez necessária para tarefa. Era disso que se tratava. Um instinto ancestral, primitivo, de trogloditas.
Depois que completei quinze anos, meu tio passou a me convidar para ir na garupa em passeios e viagens de moto. Uma ocasião, fizemos uma viagem até Rio Grande com uma Honda XLX 350R no inverno. A viagem foi difícil, além de nos cobrirmos de muitos casacos, meias e luvas, tínhamos o cuidado de não deixar a 350 esfriar, ela era difícil de pegar no frio, só tinha partida a pedal. Essa viagem foi importante, encontramos dois ciclistas peruanos na estrada. Paramos para conversar, eles já tinham cruzado 6000km de bicicleta pela América do Sul e seguiam sem destino certo para o Uruguai e Argentina. Exemplos assim me enlouqueciam, tanto o nosso, como o deles. Num réveillon, depois que todos foram dormir, ficamos eu e meu tio a conversar madrugada adentro. Revelei meu sonho de um dia fazer como os peruanos, sair do Brasil a viajar de bicicleta. Luiz deu todo o apoio, não era maluquice minha, ao contrário, era uma coisa sensata desejar isso. Fui dormir com as esperanças renovadas para o ano novo.

Quando completei dezoito anos, pedi ao tio Luiz que me ensinasse a pilotar moto, queria já tirar a carteira de motorista para carros e motos. Combinamos o dia e ele veio mesmo. Fizemos uma tarde inteira de aula e eu já fiquei craque.  Ao entardecer eu tomei meu primeiro tombo de moto e quebrei o manete da embreagem da XLX 250R. Tio Luiz não ficou nem um pouquinho incomodado. Fomos andando até sua casa fazendo as marchas no tempo e trocamos a peça. Ele tinha manetes de reserva! Aos vinte, quando terminei o curso técnico em mecânica, trabalhei durante seis meses como mecânico de manutenção e parti para Holanda. Chegou a minha vez de viajar.

Em Amsterdam, trabalhei por um ano em diversos empregos irregulares. Num deles tive um patrão motoqueiro, ele tinha uma Kawasaki KLR 600. Conversávamos muito sobre motos, tínhamos uma paixão em comum. Algumas vezes andamos de moto juntos e uma vez ele até permitiu que eu desse uma voltinha solo. Obviamente eu mentia muito sobre minha experiência motociclística, jamais admitiria que era somente uma tarde e um tombo. Na teoria ele via que eu sabia muito mesmo, tinha lido tudo que me caiu nas mãos sobre o assunto. Conhecia os modelos e o funcionamento dos motores. Outro trabalhador ilegal daquele hotel era um brasileiro que já estava há mais tempo na Holanda. Quando juntou bastante dinheiro, meu colega ilegal comprou uma Honda Dominator 650 usada e até pagou um seguro caro para moto. O incrível é que ele não tinha habilitação e nem sabia andar de moto! Fui eu quem o ensinou a pilotar!! Andávamos de madrugada pelas ruas de Amsterdam para aprender a andar direitinho e evitar possíveis blitz. Que incrível sensação era dar uma acelerada forte naquela Dominator nas madrugadas frescas do verão holandês. Estando eu no comando da máquina não era nada aterrorizante, mas sim desafiante! Teve uma vez que torci tanto o rabo do tigre numa avenida larga que não consegui frear a tempo e tive que passar reto numa esquina. Por sorte, naquela hora não havia movimento. Muito mais sorte que juízo me fez sobreviver à juventude. Meu colega de trabalho guardava a moto na frente do hotel, presa numa grade com correntes. Mas era um risco, o aluguel de garagens era muito caro para nós e Amsterdam era famosa por seus muitos ladrões de bicicletas e motos. Nosso patrão não suportou por muito tempo ter uma moto menor que seu empregado ilegal e trocou sua KLR por uma Yamaha Super Teneré 750, dois cilindros. Depois que ele trocou, nos convidava para rolês de moto pelo país. Fomos até Hilversum numa tarde de ócio. Fui na garupa do patrão e os dois faziam pegas nas autoestradas holandesas: olhei no velocímetro da Super e marcava 180km/h. Assim, Hilversum ficava pertinho. Uma manhã, quando saímos do hotel onde trabalhávamos, a Dominator havia sido roubada. Nem um mês de uso e só sobrou a corrente cortada. O seguro foi acionado, meu colega pagou a franquia e a diferença para outra Dominator, mas dessa vez nova! O cara era louco. Passou a pagar uma garagem também. A simples propriedade da moto já consumia quase todo seu salário. Uns dias depois ele foi dar um rolê e viu sua antiga moto estacionada num supermercado. Telefonou para nosso patrão e os dois foram lá. A moto estava sem o miolo da chave, mas ligada. Bastou dar a partida e saíram chispando dali. O óbvio era avisar a polícia, mas os dois tiveram outra ideia. Estava eu trabalhando na portaria quando chegaram apressados, pediram minha ajuda e subimos a moto roubada pelas escadas do hotel e a metemos num dos quartos do primeiro andar. Meu patrão me dispensou do trabalho e arrumou uma caixa completíssima de ferramentas. Me disse: Tu não falaste que és técnico em mecânica? Agora prova. Desmonta isso aí. Fiquei pensando no perigo que corria: ilegal no país, desmontando uma moto roubada num quarto de hotel. O patrão era muito trambiqueiro, bastava ver seus dois únicos empregados: dois ilegais. Talvez meu colega queria pegar o dinheiro investido na moto de volta de maneira ilícita. E se fosse uma armação dos dois? Talvez os dois tenham planejado aquele roubo e a recuperação da moto depois. Mas e o miolo estourado e a ligação direta? Sei lá, sei que fiquei numa saia justa, não tinha muita opção, foquei na tarefa. Eram umas três da tarde, às oito da noite eu já tinha separado o chassis do motor, das rodas, da suspensão, do painel de instrumentos, das carenagens. Desmontar é fácil e rápido, se fosse o contrário, montar eu não conseguiria. Fiquei com fama de Jack, o estripador. No outro dia quando cheguei, não tinha mais nada no quarto, estava tudo limpinho. Depois de uma semana, ganhei minha parte do butim em dinheiro. Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.

Quando voltei para o Brasil reencontrei nossa dura realidade. Mesmo motos 125 eram muito caras para mim. Esquecer o assunto seria melhor. Mas, meu tio Luiz não deixava eu esquecer. Mesmo morando em Rio Grande, por duas vezes ele mandou estrangeiros que viajavam de moto pelo Brasil para pousar na nossa casa. Uma ocasião foi um americano com uma Harley Davidson 1200. Noutra vez um com uma Kawasaki voyager XII. Eram motos muito diferentes das nossas nacionais e mesmo das europeias. Eram imensas! Nessa época eu tinha uma oficina de bicicletas bem completa na garagem de meu pai, então o cara da Harley aproveitou a oportunidade para fazer uma grande revisão na sua moto. Ficou dez dias morando lá em casa e desmontando o carburador. Temi que não conseguisse montar novamente, mas ele tinha vários manuais de como proceder. Era uma verdadeira atração turística na rua, pois todos meus clientes da oficina, na maioria adolescentes, vinham olhar o personagem e sua máquina enorme com alforjes de couro. Quando finalmente terminou o trabalho, colocou a moto bem no meio da garagem para ligar o motor. Naquela tarde, só eu e um menino de uns dez ou doze anos estávamos testemunhando a cena. O americano subiu na Harley e girou o botão do tanque, característico da marca, que permite acionar a partida. O menino se aproximou curioso da moto e até se inclinou um pouco para olhar melhor. Quando o piloto apertou o botão de partida, o motor acordou com um estrondo que encheu a garagem de som num volume estupidamente alto e grave, sólido e vibrante. Não é a toa que a marca é conhecida como rolling thunder, ou trovão que roda. O menino deu um salto para trás e arregalou os olhos, com medo. Depois riu. Ali tinha mais um garoto sido inoculado com o vírus do amor as motos. Ele sentiu a emoção de torcer o rabo do tigre e sobreviver para contar a história depois. O cara da Kawa ficou menos tempo lá em casa, mas até arrumou uma namorada que era cliente da oficina e ficou uns meses morando com ela. Além desses momentos, teve muitos outros que não me deixavam esquecer dos cavalos de aço. Um amigo ganhou de seu pai uma Agrale SXT 27.5, às vezes ele ia lá em casa com ela e me deixava experimentar. Era uma 200 dois tempos bem potente, tinha um ronco agudo e fazia muita fumaça, mas nós adorávamos aquilo, fazia parte da coisa toda.

Me formei em educação física e comecei a trabalhar como personal trainer, mas mesmo assim, não conseguia comprar uma moto. Mesmo as mais baratinhas exigiam entradas grandes e comprovação de renda que na informalidade eu não tinha. Minha mãe me socorreu com parte da entrada e o nome para os papéis. Finalmente comprei minha primeira moto: Uma Yamaha TDM 225 zero km. Me senti o Vital dos Paralamas do Sucesso, total! Saindo da concessionária, numa esquina da avenida Farrapos, acelerei e a moto empinou sem querer, a roda da frente saiu mais de metro do chão. Lembrei do rabo do tigre e resolvi sair da cidade para pegar o jeito com ela. Fui para freeway e voltei por Viamão para evitar o trânsito pesado. Mas, mesmo assim, quase chegando em casa, aos 57 km, cai o primeiro tombo com ela, quebrei um ossinho da mão e entortei o guidão. Apesar desse desastroso começo, me dei muito bem com essa moto, mesmo com gesso voltei a andar. Passei a usar a moto para trabalhar e viajar, era maravilhoso. Ela era diferentona e quatro tempos, então as pessoas me paravam na rua para perguntar sobre a moto, me sentia um pop star. Fui morar em Florianópolis e seguido voltava para Porto Alegre para visitar a família. Depois de dois anos lembrei de um detalhe importante: eu não tinha carteira de motorista para motos, só para carros. Umas três vezes fui parado em blitz que pediram os documentos e nunca repararam que eu não tinha habilitação para motos. Talvez por ser a carteira do modelo antigo, então os fiscais não percebiam. Fiz todas aulas regulamentares de moto escola numa CG 125. A situação era meio ridícula, eu chegava de TDM e trocava para CG para as aulas. Outra história interessante que vivi com essa moto foi uma forte chuva de granizo que peguei na estrada. Não tinha onde me esconder então simplesmente tomei a tormenta no lombo, o capacete defendia a cabeça e a jaqueta diminuía a intensidade nos braços e nas costas, mas nas mãos e nas pernas as pedradas batiam direto. Depois de alguns minutos parou, mas era como se eu tivesse levado uma surra. Quando a moto já estava com cinco anos e 77.000 km, resolvi vender. Ela estava se estragando na garagem, eu morava perto do trabalho e ia caminhando. Nos finais de semana, toda vez que ia sair com ela dava um problema: Morria a bateria, entupia o carburador, o pneu ficava murcho... Um saco. Eu não sabia, mas seria bem difícil comprar outra. Vendi e fiquei sem moto por uns bons anos de novo.

Quando vim morar na Barra do Ouro estava decidido a nunca mais ter veículos automotores, era uma decisão por consciência moral ecológica. Queria voltar as bicicletas pela sustentabilidade, apesar da paixão por motos. Mas logo essa decisão se mostrou radical demais. Eu morava longe demais dos grandes centros e já estava mais coroa, nem tão apto a grandes esforços físicos. Comprei então uma moto bem pequena, que tivesse uma pegada ecológica mínima, comprei uma Yamaha Crypton 115. Quatro marchas, partida a pedal, chegava a quase 110km/h, estava bom. Nessa época trabalhei numa serraria e ia trabalhar de moto, não tinha ônibus para lá. Fiz grandes viagens também com essa pequena lambretinha, até com meu filho na garupa. Cheguei a ir até Rio Grande, ida e volta deu mais de mil km. Ela era valente, mas era só um transporte, não proporcionava a emoção do tigre. Com os pneus muito fininhos, a Crypton incomodava muito, furava toda hora na buraqueira das estradas de chão. Me aborreci e com 30.000km resolvi vender.

Assim que deu troquei por uma moto com suspensões e pneus maiores para aguentar a pauleira das estradas de chão da Barra do Ouro: uma Yamaha Crosser 150. Era muito parecida e com o mesmo conforto da TDM, mas com motor menor. Com somente 1000 km, depois da revisão obrigatória, o mecânico esqueceu de apertar o bujão do escoamento de óleo do motor. Vazou tudo e o motor travou. Pensei que ia ter uma briga na justiça com a concessionária pelo reparo. Mas não, eles buscaram a moto, pediram desculpas e bastou encher de óleo de novo e tudo se acertou. Com essa moto sofri um pequeno acidente. Estava febril, mas fui trabalhar assim mesmo. Lá pelas tantas comecei a estranhar o caminho. Eu tinha seguido reto numa encruzilhada em que deveria ter dobrado a esquerda e só fui perceber o erro uns cinco km depois. Voltei tudo e no mesmo dia, passei a cem por hora na frente de um pardal em que o limite é oitenta. Depois, na esquina da escola, errei uma avaliação de onde a roda estava e caí num buraco me estabacando no chão na frente de várias colegas de trabalho. Dei show. Fui ao médico depois e contei todo o acontecido, ele esclareceu: alucinações febris. Em caso de doença: não pilote! Apesar de tudo, fiz muitas viagens com a Crosser. Fui a Florianóplois, Garopaba, Chui, Uruguai, Gramado, Rio Grande e até Cambará do Sul com meu filho na garupa ver os lindos canyons. Viajar de moto é uma experiência metafísica, se transcende ao corpo. Ficar longo tempo sobre a moto com o ruído hipnótico do motor te leva a meditar, tudo que tu percebes é teu corpo e teus próprios pensamentos. Tu sentes tudo, a massa de ar te envolvendo, ouves até tua respiração. A dormência das mãos, a dor nas costas da posição, o manancial de pensamentos, ninguém para conversar. Só tu contigo mesmo. A moto é uma ferramenta para se viajar também pelo mundo interior. Aprendi isso na teoria num livro que meu tio Luiz me emprestou aos 16 anos: Zen e a arte da manutenção de motocicletas. Depois tive ampla oportunidade para vivenciar na prática a meditação motociclística. Quando terminei de pagar, troquei ela com 72.000km rodados e estava ótima ainda.

Com a paralização econômica provocada pelo golpe contra a presidenta Dilma, muitas concessionárias de motos no litoral norte fecharam. Fiquei sabendo de uma em Torres que estava vendendo as motos a preço de custo para também fechar, fui lá conferir. Realmente, era verdade, as motos estavam muito mais baratas, uns 25% a menos, barbada. Dei a Crosser de entrada e financiei uma moto maior: Uma Yamaha Lander 250. Essa moto era incrível, com uma suspensão enorme. As estradas de chão ficavam lisinhas com ela, passava flutuando sobre os buracos. Como com as outras, ia trabalhar todos os dias e nas férias viajava. Nessa foi a que meu filho mais andou. Vivenciou várias possibilidades motociclística: chuva sem equipamento de chuva, equipamento de chuva sem chuva, frio, calor, sol, noite, tudo. Certa feita voltamos tarde de um passeio na serra, era verão mas estava bem fresquinho. Fechou o tempo e paramos para vestir as capas de chuva. Bem a tempo porque caiu um temporal de final de tarde de verão. Anoiteceu e estávamos numa estrada de chão muito precária, para completar, quando estávamos quase chegando em casa, baixou uma cerração incrível, muito densa. Então tínhamos tudo ao mesmo tempo: toró, cerração, noite e estradas de pedras soltas e lama com muitas erosões e água correndo na beira do penhasco. Situação extrema de pilotagem, a visibilidade não passava de uns cinco metros e a velocidade máxima daquele trecho era uns 7 km/h. Tensão máxima com o filho na garupa. Felizmente tudo acabou bem aquele dia. Com essa moto sofri um acidente, o mais grave até agora. Ia subindo a rampa para uma ponte de uma estrada de chão e não vi um carro vindo em direção contrária sobre a ponte. Freei forte e a moto derrapou de traseira, corrigi mas tive que frear forte de novo para não bater, então caí. A moto deslizou e bateu no carro. Me ralei um pouco, mas a moto e o carro também. Fiquei dois anos pagando esse acidente. Diante de uma ponte, diminua a velocidade! Quando terminei de pagar essa moto resolvi esperar um pouco para trocar. Ela estava boa. Troquei só os pneus. Mas, por azar, todo mês acontecia uma avaria grave que me fazia gastar horrores e me deixava empenhado na estrada. No fim, teve uma vez que empurrei a moto por oito quilômetros até o socorro mecânico. Basta, resolvi trocar de moto e de marca. Essa moto tinha as melhores suspensões, mas foi a pior e mais cara para manter. Depois de quatro delas e 77.000km só nessa, chega de Yamaha!

Fiz uma pesquisa grande entre os diversos modelos e marcas, queria uma com freios ABS para não mais sofrer acidentes como aquele da ponte. A única marca que ainda tinha concessionária no litoral norte era a Honda, mas eles avaliaram a minha Lander muito para baixo. Conversei com meu pai e ele se propôs a ajudar no financiamento. Pronto, decidi por uma Kawasaki Versys 300X. Essa é minha moto atual. Já está com 25.000km. Ela é muito mais potente que as outras todas que tive, apesar de não ser muito maior. Talvez seja pelos dois cilindros, Essa moto é do tipo que o McQueen aprovaria, é como torcer o rabo do tigre. Não dá para brincar com ela. Quarenta cavalos, faixa vermelha aos 12.000 RPM, muito forte. Meu filho veio de novo no verão e lembrei daquele momento em Tapes e na Tristeza com tio Luiz, minhas primeiras experiências sobre motos. Queria ensinar isso ao meu filho Rodrigo. Domar o pavor, controlar o pânico, para ter acesso a um mundo maravilhoso, de paisagens lindas e viagens maravilhosas como aquelas das revistas Duas Rodas. Se você já assistiu o filme canadense Invasões Bárbaras, talvez lembre de uma cena em que a moça vai aplicar uma injeção de droga ilícita no doente terminal. A morfina já não dava conta e os médicos avaliam que somente a heroína poderia superar seu efeito analgésico. Ela alerta o paciente que o que está prestes a sentir jamais vai se repetir, vai ser a mais intensa sensação que já teve. Ela gostaria de estar em seu lugar para sentir de novo o que ele vai experimentar. Ela é viciada em heroína e conta que a primeira vez que se usa é como “ride the dragon”, dar uma volta de dragão. Todas as outras vezes que usou foi tentando sentir de novo aquilo. As motos são um pouco assim: viciantes. E as primeiras vezes são experiências únicas, como dar uma voltinha num dragão. Saímos de madrugada pelas ruas de Porto Alegre com a Versys. Fiz o que meu tio Luiz fez comigo há quarenta anos, mostrei as possibilidades da máquina: QUERES VER QUANDO EU REDUZO PARA UMA TERCEIRA?? Espero sinceramente que ele tenha ficado apavorado, que tenha sentido o calor e a vibração do dragão, que tenha pensado em se atirar e tenha a memória de um trovão ambulante. Se isso aconteceu, nunca mais esquecerá e sempre buscará essa sensação de novo. Talvez não consiga, mas terá meditado horrores!

Somando todas as voltinhas no dragão, já rodei mais de 300.000 km de moto, mais de oito voltas ao redor do mundo. É muita meditação e acho que isso é bom.



sábado, 27 de abril de 2019

Perdi o comecinho do jornal nacional ontem e não vi nada sobre a entrevista do Lula. Achei que tinha perdido, porque era obviamente o acontecimento político mais importante do dia. Fui para tv cultura e mostraram a entrevista. Hoje fiquei sabendo que a Globo não mostrou!!! Querem que esqueçam do cara. Curioso que uma das perguntas era sobre o acampamento Lula livre que há um ano mora na frente da polícia federal de Curitiba e dá bom dia, boa tarde e boa noite para ele todo dia. Só isso já seria para Globo repórter. Mas claro que mostraram uma grande reportagem sobre o início do campeonato brasileiro de futebol. Existe um grande esforço de alienação do povo. Agora assumido por Bolsonaro: não estudem sociologia ou filosofia. Pois claro! Existe o perigo de perceberem os planos de dominação ideológica. O esporte ensina o capitalismo: meritocracia, se tu não venceu na vida a culpa é tua! Treina mais porque tu és ruim...

sábado, 13 de abril de 2019


A constituição de 1934 trouxe uma série de inovações que modernizaram o estado Brasileiro. O ensino primário se tornou obrigatório, o voto passou a ser secreto, as mulheres obtiveram o direito ao voto e o estado foi reafirmado como laico. Getúlio Vargas liderou uma série de negociações para que essas leis fossem aprovadas: O estado deveria manter as escolas para que as crianças estudassem gratuitamente, as mulheres só votavam com a devida autorização por escrito dos pais ou maridos e os feriados religiosos cristãos seriam oficiais, apesar da laicidade do estado. Hoje algumas dessas leis parecem ridículas, obvias ou redundantes, mas era uma revolução na época.
Fiquei muito contente com o fato de que uma professora da escola onde trabalho iniciou as comemorações da páscoa com símbolos pagãos como coelhos e ovos. É alvissareiro que numa escola pública se valorize os aspectos laicos da festa ao invés dos religiosos. Na nossa unidade da rede municipal de ensino, assim como todas as demais da cidade, há uma grande diversidade de crenças entre os alunos e pais. Temos cinco alunos indígenas, muitos afrodescendentes, assim como uma grande diversidade de seitas cristãs, sem falar nos ateus. Isso falando só dos declarados, talvez tenhamos alunos muçulmanos, budistas ou judeus que se mantém no armário receosos de possíveis agressões intolerantes. Mas, ainda que todos os alunos fossem cristãos, deveríamos respeitar a laicidade das atividades, obedecendo as leis que ainda regem o ensino público do país desde 34.
Entre os profissionais da nossa escola temos cristãos das mais diferentes tendências, umbandistas, budistas e eu, ateu. Conversando com colegas professores percebo o ateísmo admitido de alguns que não saem do armário por não perceberem a importância política do ato. É tão importante que os ateus se assumam publicamente como é importante que gays, indígenas, veganos ou negros se assumam e lutem por seu reconhecimento como cidadãos de direitos. Infelizmente, se as pessoas não respeitam as diferenças por consciência moral, leis tem que ser escritas para que pelo menos artificialmente se conviva em paz. A lei Maria da Penha foi uma imposição da ONU ao estado brasileiro e tenta impedir que mulheres sofram agressões. Mesmo sendo óbvio que mulheres não devem apanhar, ela teve que ser escrita, pois mulheres são surradas rotineiramente. A lei das cotas foi uma necessidade surgida do fato que não havia negros ou deficientes nas universidades ou nas repartições públicas. A inércia da imoralidade é brutal.
Recentemente, tivemos um caso de agressão racista de uma menina do primeiro ano contra outra do segundo. Mesmo entre os alunos mais jovens da escola, questões raciais, religiosas e de gênero afloram num manancial de intolerância, ódio, bullying e apelidos jocosos. As leis foram criadas exatamente para inibir situações constrangedoras para os alunos. As comemorações cristãs da páscoa, que alguns profissionais inadvertidamente tendem a propor por inércia de quase um século, desde a constituição de 34, são agressivas a grande parte dos alunos. É prudente, visando garantir o direito para todos os alunos de uma escola inclusiva, que a cultura da paz garantida pelas leis da laicidade da escola seja observada por todos. Com o governo atual talvez haja alguma mudança, pois nosso presidente Bolsonaro já se manifestou contra a laicidade e a favor de um ensino confessional, mas isso ainda não ocorreu.
Coelhos e ovos, tradicionais da páscoa, são muito anteriores ao cristianismo. O equinócio da primavera no hemisfério norte sempre foi comemorado com símbolos de fertilidade: coelhos porque se reproduzem muito depressa e ovos por dali surgir a vida. A festa pagã marcava o início da atividade agrícola depois do longo inverno. Derretido o gelo, a terra poderia ser semeada viabilizando a vida. Viva a laicidade daquela professora.
Apesar de quase todo território brasileiro estar no hemisfério sul e próximo ao equador, ou seja, não sofremos com invernos rigorosos e o equinócio de março não é de primavera, mas de outono, a colonização portuguesa nos trouxe a cultura da festa da semeadura atrelada a festa cristã da ressurreição de Jesus. Como é típico de um império colonizador, os portugueses impuseram sua cultura aos povos indígenas nativos ou dizimaram e escravizaram os que não se vergavam a nova ordem. Povos de outros continentes também foram escravizados e trazidos à ferros para cá. Depois de 500 anos de terrível crueldade, a sofisticação moral da sociedade brasileira levou os brancos europeus a reconhecerem suas atrocidades e criarem ações afirmativas de reparação àquela dívida histórica. Surgiram uma série de leis, as já citadas de 34, antes dela a lei Áurea, mais recentemente as reservas indígenas e as leis de cotas entre tantas outras. Mas assim mesmo, algumas pessoas resistem e ainda não aceitam nem as leis da constituição de Vargas.
Também me alegrou muito que nossa supervisora escolar orientasse os professores a trabalhar os valores de amizade, fraternidade e paz. Assim agindo, nossa escola estará resistindo a um democratismo de maioria cristã que planta ódio e segregação planejado pelos atuais gestores da educação nacional e faremos uma celebração democrática de amor e inclusão aos nativos indígenas, aqueles descendentes de escravizados africanos, assim como aos sectários de outras crenças.
Eu sou ateu mas adoro os feriadões negociados por Getúlio em 34. Carnaval, páscoa, corpus christi, natal… adoro! Quero que sejam sempre comemorados, mas que cada um faça segundo suas crenças e não impondo aos demais. Já chega os sinos nas igrejas acordando a todos nas manhãs de domingo, o “deus seja louvado” em todas as notas de dinheiro, estátuas gigantescas no alto dos morros com os braços abertos, crucifixos até no supremo tribunal federal… Falando nisso, precisamos conversar sobre aquela nossa senhora no meio da escada da escola: vocês sabiam que somente católicos veem naquela estátua algum significado?… bueno, mas isso fica para outro texto.