segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Segunda de Carnaval
Trabalhei dez anos na Educação Infantil em Florianópolis. Acho que a principal lição que aprendi lá foi que para agradar uma criança não precisa muito. Nada elaborado ou caro. O principal é estar junto e disposto a interagir. A piada que mais eles riam era curta e simples. Vou reproduzir aqui embaixo, preste muita atenção, porque requer sutileza para a compreensão:
Um padre chegou para outro padre e disse: Oi, padre!
Pronto, era isso, acabou a piada. Eu gargalhava sentado na rodinha da sala e a turma toda gargalhava junto, com vontade, era realmente hilário! Às vezes, eu até contava umas duas ou três vezes em seguida para todos entenderem a piada, a gargalhada seguia farta. Você, leitor, com certeza maior que cinco anos de idade justamente porque está lendo isso, talvez não tenha entendido o teor da piada. Sinto muito, não vou explicar, ela funciona somente com espíritos espirituosos com muita presença de espírito! Mas, acredite, muitas vezes me paravam no pátio, durante o recreio e pediam: conta de novo aquela piada do padre?
Outra brincadeira que agradava sobremaneira era na rua. Eu me “escondia” encostando o rosto nalguma parede. Então, ia narrando alto o que estava acontecendo e fazendo os gestos característicos: O monstro está dormindo. O monstro acordou. O monstro se espreguiça. O monstro da uma bocejada. O monstro faz xixi. O monstro coça a barriga. O monstro dá um pum.
Uma multidão de pequenos seres acompanhava meus gestos com muita atenção. Finalmente o monstro sentia fome e sentia cheiro de criancinhas e, pela primeira vez, olha para baixo. Todos saiam correndo e gritando e eu atrás com as mãos para o alto em forma de garra, urrando. Uns dez metros depois eu encostava o rosto noutra parede e todo o processo se reiniciava. O monstro está dormindo... A brincadeira durava até o monstro, exausto de correr, desistia e falava que agora não era mais monstro. Relatei essa brincadeira para minha namorada da época e ela rapidamente me esclareceu: Esse monstro é tu!!!

Hoje pela manhã acordei de um sonho maluco num tapa. De profundo R.E.M. para vigília foi um segundo. Restaurada a consciência, lembrei que era segunda-feira de carnaval, a melhor do ano! Me espreguicei umas três vezes, em diagonal na cama, com toda calma. Fui fazer um xixi, mas resolvi voltar para cama. Refleti sobre o que poderia fazer para aproveitar o ócio. Bocejei e me espreguicei de novo, peidei e cocei a barriga. A ex tinha razão, o monstro sou eu. Mas hoje é segunda de carnaval e eu não preciso correr atrás de criancinhas.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Vestibular
Há uns dias, recebi a notícia que minha sobrinha passou no vestibular. Fiquei faceiro, assim como toda família. É um vestibular concorrido aquele da UFRGS, ainda mais para direito! Pensei em escrever alguma coisa para ela, não que ela vá ler, já fui adolescente e eu, pelo menos, lia o mínimo possível. O tempo era precioso e tinha muitas bundas para olhar, não sentava para leituras diletantes. Cartinhas de tios babões são tão aborrecidas como ler um guia telefônico, certamente não é uma coisa para pular de alegria, então porque eles as escrevem? Pergunta difícil! Sei lá! Mas agora que fiquei para titio, sinto uma verdadeira compulsão! De forma que, para exercitar minha escrita, comecei a recordar algumas coisas. Tive a sensibilidade de não mandar para seu email, mas sim escrever no face, aberto ao público. Lá, como ela mesma me ensinou, em caso de constrangimento: “eu sempre posso me desmarcar”! E no face outras pessoas podem vir a apreciar. Sei daqueles três ou quatro leitores diletantes que sempre comentam meus escritos, desde gosto da abóbora até os aforismas de Nietzsche!
Adolescência é um tempo incrível na vida do sujeito. Um manancial de mudanças bruscas e decisões importantes. A chance do cara sair sequelado dessa idade é enorme! Capotar o carro do pai é comum, muitos amigos meus o fizeram. Alguns saíram tapeando o pó da roupa de festa, outros não sobreviveram à brincadeira. Não foram poucas as noites que eu saí silenciosamente empurrando a Belina verde para a rua até algum lugar que o ruído do motor não acordasse ninguém. Quantos pegas emocionantes eu corri contra desconhecidos naquela chacoalhante camionete familiar!! Sim, tem outros adolescentes a solta na madrugada, éramos muitos e fomos todos, não há como negar!!! Tem coisas que os pais conseguem evitar, por exemplo: Moto para adolescente é como dar faca para nenê, vai dar sangue na certa. Outras são impossíveis!!! Sexo vai sair mesmo que seja no mastro de um veleiro em noite de tempestade!! Todos os hormônios te mandam agir... e rápido!!! Procuramos parceiros para sexo aos bandos... E formamos bandos, claro! Ouvimos todas as músicas de tal banda porque aqueles que eu considero do meu grupo o fazem. Signos de todos os tipos são orgulhosamente ostentados: Camisetas, cabelos estranhos, pulseiras, colares, coturnos! Qualquer coisa!! Fazemos questão nessa idade de provar para todos o quão engajados somos ao grupo, ainda que para isso precise marcar no corpo a fidelidade ao bando. Mas, se há uma coisa certa na cabeça de alguém de 17 anos, é isso: eu já sei tudo!!! A tatuagem do dragão nas costas é a mais legal e vai se amar para toda a vida, não há dúvidas na vida de um teenager!!!
O presente é tão cristalino para o adolescente que é até irritante para ele quando alguém o questiona. Já o futuro, está tudo em aberto e não se tem a menor idéia de onde se vai... Mas há de ser glorioso!! Não são dúvidas, mas sim, opções a ser melhor analisadas. Temos certeza que vamos ser ricos, famosos, felizes e desejados. Mas, para isso, temos que percorrer um caminho que nossos pares nos indicam. São meras formalidades, formulários a preencher e tal, até se atingir o carro zero e a casa na praia. Basta escolher a mais tesuda que ela cairá aos teus pés, já pré arretada, óbvio! A metodologia para atingir esses objetivos deve ser fácil de aprender. O único empecilho, claro, é a família, que nos aporrinha com afazeres que aborrecem sobremaneira e teimam em nos alertar para perigos tolos. Um deles é o vestibular. Que estúpido que é o sistema de ensino que coloca os adolescentes a escolher o que vão fazer para o resto de suas vidas! Para uma minoria ridícula até que dá certo, mas a grande maioria entra, anda de lado um tempo, finalmente abandona.
Eu ouvia Cascavelletes e tinha cabelo comprido. Usava macacão de brim e botinhas militares. Andava de bicicleta o dia todo pelos morros em Porto Alegre, sozinho!!! Um amigo me emprestou a fita cassete com a capinha de xerox. Levei para casa e ouvia uma vez atrás da outra aquelas maravilhas, deitado no chão da sala, no escuro. Eram letras sensacionais, exprimiam meus desejos da forma mais clara possível e ainda tinha uma melodia que me agradava!! Punk rock!! Masturbação, estudos obrigatórios para o vestibular, desejos de arrancar a roupa da gostosa e cair de boca ainda no bar, matar o rival que “ganha” as gurias, surf, estupro com carinho, etc. Enlouqueci com aquela fitinha. Duas semanas depois meu amigo exigiu o cassete de volta e por sorte eu já tinha ouvido umas 4000 vezes a fita toda e decorado minhas preferidas. Claro que, um sujeito assim, atarantado com tantos pensamentos desviantes, jamais faria uma escolha adequada. Eu escolhi Engenharia Mecânica.
Eu até que era bom nesse negócio de vestibular. Me inscrevi só na UFRGS, porque era grátis e eu ainda queria acabar meu curso técnico em mecânica, era divertido e prático. Naquele tempo o vestiba era em duas etapas: um provão e umas provas específicas. O provão era para eliminar pobres! Só ficava a nata, quem estudou em escola pública já nem precisava aparecer para encher o saco nas provas seguintes. Como eu frequentei escola pública e não estudei nada, até me surpreendi por ter passado no provão! Nas específicas resolvi estudar. No dia anterior a prova de matemática eu olhei o caderno do terceiro ano do segundo grau. É que para a Engenharia tinha mais peso a matemática. Funcionou, passei 62° lugar para Mecânica. Fui o único da minha família que passou de cara no vestibular, foi um assombro para todos, porque eles me consideravam meio burrão. Adivinhe? Larguei o curso, fui viajar pelo mundo e quando voltei tentei retomar, mas não funcionou, eu não gostava daquilo. Fiz outro vestibular e passei em sexto na UFRGS, agora para Educação Física.
Lá pelas tantas, acho que eu estava no meio da faculdade, minha irmã Betânia engravidou e ia ter o nenê. Ela avisou que ia ser uma menina e seria chamada de América!!! Que horror!!! Eu vou chamar de Mariazinha, gritei! A guria nasceu toda torta, parecia o Quasimodo com a cabeça do ET, um horror!!! A mariazinha era uma américa mesmo, feia que dava dó!! Eu fui olhar no hospital já preparado para falar algo como “que bonitinha!” Mas, ao olhar por sobre o berço, não consegui ser hipócrita e saiu: “Que... que... compridinha!” Mas um sentimento muito estranho se apoderou de mim naquele momento. Eu, por alguma razão inexplicável, precisava ajudar a cuidar daquele serzinho medonho e fedorento.
A América foi crescendo e sua simples presença me emocionava. Eu era personal trainer e até ganhava um dinheiro legal para quem ainda nem era formado e morava com a mãe. Então, aquela nenezinha feia passou a ser o foco das minhas gastanças e eu comprava tudo que podia para agradá-la. Na faculdade, ficava esperto para o que seria melhor para aquela idade e saia correndo da aula para a loja comprar o que o professor recomendava. Bolas, legos, triciclos, bicicletas, programas de computador e até uma máquina de fotografia de verdade ela ganhou. Ela me gratificava com muitas risadas, conversas, sorrisos e olhares de matar qualquer queixo duro. Aos poucos, comecei a olhar aquela criança e achar linda. Com um ano de idade ela cantava músicas inteiras!! Não estou falando de atirei o pau no gato, mas de Estrela Estrela do Vitor Ramil. Mal chegava da casa de minha irmã e vinha me contar histórias do Teletubies, programa que eu nunca tinha visto, mas ouvia com paciência e interesse as aventuras do Thinkie Winkie ou da Pô. Rolos e rolos de filme gastei tentando captar algum sorriso melhor, sabia que as crianças crescem, ficam adolescentes e te acham patético. Eu nunca mais veria aqueles sorrisos. Levei-a para passear várias vezes, nas praças, no rio Guaíba, admirar por do sol, jogar pedrinhas na água, conversar com cachorros na rua e cheirar flores nos quintais dos vizinhos. Ela gostava! Curiosamente, as mesmas coisas eu repeti com sua avó, Bebel, que a agradavam igualmente perto do fim de sua vida.
Fui morar em Florianópolis e lá fiquei por dez anos. Me perdi um pouco da América. Uma ocasião até ela me mandou um email, questionando minha ausência. Prometi resposta, mas até hoje não soube explicar. A complexidade da vida é muito grande para um email. Eu e ela, de fato, crescemos na ausência um do outro, nos afastamos um pouco.
América seguiu sua trajetória de estudante com brio, nas melhores escolas que o dinheiro poderia pagar em Porto Alegre. Filha de dois advogados e neta de outros dois, todos os quatro ilustres, ela escolheu direito quando chegou naquela hora de preencher o formulário do vestibular. Claro que ela passou, o concurso da UFRGS é cuidadosamente planejado para referendar os melhores estudantes do Anchieta e afins nos primeiros lugares. Na minha opinião, se é pública, deveria ter vagas para todos, ou sorteio, vestibular é uma forma evidente de privilegiar os já privilegiados, tanto social como geneticamente. Um grande amigo meu da faculdade, o Rodrigo, era engraçadíssimo, ríamos muito e nos dávamos super bem. Uma vez ele me contou que tinha tirado primeiro lugar na PUC no geral e primeiro lugar na Engenharia Civil da UFRGS. Era mais uma anchietano a arrasar a concorrência. Cursou os dois, mas depois de um tempo largou a informática da PUC e ficou só com a Engenharia. Foi mais ou menos o que minha sobrinha fez. Ela passou em sexto lugar para direito na UFRGS e em primeiro para Letras na PUC. Vai cursar as duas, mas garanto que daqui a pouco larga a letras.

Trocamos poucas palavras desde que voltei de Florianópolis. Agora ela não é mais uma nenenzinha que canta Vitor Ramil, tem algumas opiniões e ambições que são bem diferentes das minhas. Tu vês, caro leitor, garanto que ela nem ouve 4000 vezes Cascavelletes e seus estupros com carinho! Que absurdo!! Ela não é como eu queria que fosse, mas ela é um amor. E, puxa, agora ela tá uma gata! Super linda, tem até facebook e viaja para o exterior sozinha! Até com o nome me acostumei! As crianças crescem, se tornam adolescentes, saem dos ninhos e voam, como nós fizemos. Mas, quando é eles, a gente fica só olhando, angustiado. Ela voa para onde quiser, mas, como em todo o período que eu acompanhei sua vida, me cabe aceitá-la, admirá-la e amá-la como ela é. Agora te desmarca, América...