domingo, 4 de novembro de 2018


Competição e cooperação
Dois eventos importantes na vida escolar coordenados pela Educação Física ocorreram na semana da criança e nos levaram a refletir muito sobre a prática pedagógica. Ambos atraíram a atenção dos alunos com muita intensidade e exigiram muito comprometimento e esforço físico dos participantes. A diferença fundamental entre eles foi o foco da atividade que determinava envolvimentos de natureza muito diferentes. Para os alunos mais velhos, pela manhã, tivemos uma competição, um campeonato esportivo de futsal. À tarde, para os mais novos, os jogos cooperativos.
Tanto a competição quanto a cooperação ocorrem normalmente na natureza. Assim como formigas e abelhas cooperam entre si para viver em colônias, zebras e leões competem e somente o mais rápido sobreviverá. Como qualquer espécie, o ser humano também convive com as duas formas de lutar pela sobrevivência. Compete e coopera entre si e com outros animais. Porém, é forçoso constatar que, no mundo natural, nossa espécie tem sido muito bem sucedida. Aparentemente estamos ganhando uma grande competição entre os seres vivos. No entanto, nossa espécie está longe de atingir o sucesso de formigas. Se colocarmos numa balança todos os seres humanos e todas as formigas, elas são muitas vezes maiores que nós. E mesmo todas as formigas do mundo não chegam perto do sucesso das gramíneas.
Examinemos um exemplo muito humano: a fertilização do óvulo pelo espermatozoide. Algumas pessoas veem ali uma grande competição. Milhares de espermatozoides que carregam os mesmos genes competem para atingir o objetivo e somente um obterá êxito na fecundação. Aí estaria uma grande prova natural da virtude da competição, nascemos de uma luta para decidir quem é o mais apto, quem teria mais mérito para gerar descendentes. No entanto, se estudarmos melhor, veremos que existem espermatozoides de diversos tipos. Alguns servem como bucha de canhão, abrirão caminho, são os mais rápidos, mas serão queimados pelo ambiente hostil das trompas, farão somente um tapete protetor com seus próprios corpos para passagem dos outros. Terão aqueles que serão guerreiros, são os mais fortes, lutarão contra espermatozoides de outros machos que porventura tenham ejaculado antes naquela fêmea. Alguns ficarão para trás propositalmente, são os mais franzinos, formando uma barreira que impede a passagem de outros genes. Outros ainda, nem tão rápidos, nem tão fortes, nem tão franzinos, serão protegidos pelos demais para que tenham um caminho livre para nadar até o óvulo. Podemos concluir por, em vez de uma competição, um esforço coletivo, uma grande colaboração para que o grupo atinja seu objetivo. Nascemos de uma grande cooperação e a virtude estaria nela. Perceba que, pessoas diferentes podem relatar de formas totalmente distintas observando a mesma cena da fertilização humana. Suas conclusões dependerão muito de suas inclinações políticas, sociais e culturais.
Voltando ao campeonato de futsal na escola, é sempre impressionante ver o esforço das crianças participando da atividade. Querem vencer de todo modo e para isso se entregam visceralmente a atividade. Começam discutindo para decidir quais times jogarão primeiro, a maioria dos alunos terá que esperar um longo tempo por sua vez. Também debatem quem entrará no time, fazem uma “seleção” entre eles, pois somente cinco de cada turma pode jogar por vez e os outros ficarão na “reserva”. Muitas outras divergências surgem durante as partidas que provocam acalorada discussão. Se foi falta ou não, se a bola saiu do campo de jogo ou mesmo de quem seria o direito de iniciar a partida. Um juiz precisa decidir os conflitos de interesse quando há discordância. Ainda assim, mesmo com a aceitação por ambos os times da legitimidade do árbitro, existem brigas com ele sobre as decisões que toma. Os conflitos ocorrem porque o objetivo de um time é diametralmente oposto ao de outro. Se um grupo atinge seu objetivo, obrigatoriamente o grupo adversário não pode atingi-lo. Para um time vencer, outro terá que sair derrotado. Ao final da atividade, alguns saem felizes, aos gritos de “é campeão” enquanto a maioria sai frustrada, buscando explicações, culpando uns aos outros pelo fracasso.
Já nos jogos cooperativos, todas as crianças participam ao mesmo tempo, ninguém fica excluído e o objetivo de um é exatamente o mesmo do outro. Assim, o sucesso de um acarreta também o sucesso de todos os outros. Durante a atividade, não há conflitos e ao final, todos saem faceiros com os resultados.
Aparentemente, a competição gera exclusão, frustração e conflitos e a cooperação gera inclusão, satisfação e paz. É claro que só posso descrever as cenas observadas dentro de minha formação pessoal como professor, outra pessoa talvez observasse coisas completamente diferentes como no caso da fertilização humana. Dependendo da perspectiva, até mesmo os esportes podem ser interpretados como uma ferramenta pedagógica de cooperação. Porém, é tal a importância das competições como valor moral na nossa sociedade, que tendemos a tornar tudo uma competição e investimos pesado nelas. Reflita comigo, vamos lembrar alguns fatos: Os maiores e mais caros prédios, de qualquer cidade, são os estádios de futebol. Repare que são construções bem ociosas, só são usados uma ou duas vezes na semana. Os esportes tem espaço garantido no horário nobre das mídias, com diversas empresas competindo para patrocinar as caríssimas transmissões ao vivo. A maior sala de aula, de qualquer escola, é sempre o ginásio de esportes, assim como o material didático mais caro é sempre o da Educação Física entre todas as disciplinas ensinadas às crianças. Luciano Huck transforma a habilidade de soletrar palavras ou empilhar copos plásticos em competição nacional para crianças nos sábados à tarde. Faustão transforma cantar, dançar e atuar em divertidas competições aos domingos. Promovemos até mesmo concursos de beleza para decidir quem é a mais bonita ou bonito. Enfim, o entretenimento que é promovido a população são competições de qualquer sorte. A onipresença das competições no mundo de hoje, desde os momentos de lazer, até as decisões mais importantes da sociedade como as eleições, deixa claro que quem tem o poder quer que elas se perpetuem.
Para esse professor, a discrepância é tão grande entre os dois eventos observados na semana da criança no que se refere à paz e harmonia entre os alunos, que precisamos parar e refletir: porque ensinamos a competição na escola? As respostas a essa pergunta são das mais diversas. Mas, o principal argumento a favor do ensino das competições nas escolas é o de que as crianças enfrentarão competições no futuro, então já devem ir se acostumando. A vida é assim, competitiva, então teríamos que lidar com isso de uma forma didática. No entender de alguns adultos, as crianças devem aprender a enfrentar adversários com objetivos opostos, seguindo regras, obedecendo autoridades e sabendo admitir derrotas com dignidade e lidar com frustrações. É verdade, mas também enfrentarão o mercado de trabalho e nem por isso as fazemos trabalhar na infância. Ao contrário, nós as protegemos o máximo que podemos para terem uma formação ótima sem traumas e sequelas. Estamos quase conseguindo, através de leis e regras, erradicar o trabalho infantil. A mesma coisa em relação às doenças. As crianças também enfrentarão doenças, mas fazemos o que podemos para erradicá-las totalmente. Lutamos para que as doenças desapareçam das preocupações humanas. Ou, pelo menos, mantemos as crianças distantes das enfermidades até que tenham condições para se defender melhor. Não vejo benefícios no ensino das competições, ao contrário, só vejo males. Veja que nós mesmos determinamos o que as crianças devem aprender. Porque não determinamos que elas aprendam uma sociedade de solidariedade, de inclusão, de colaboração, de resolução de conflitos através do diálogo e do entendimento? Porque temos que ensinar que a melhor forma de resolução de discordâncias seja um enfrentamento? Acho que temos o dever de ensinar outras formas de sociedade. Uma sociedade que não se divirta com a competição e a exclusão, mas com a solidariedade, a cooperação e a inclusão.
No entanto, a legislação ainda obriga o professor de Educação Física a ensinar esportes nas escolas, assim como lutas. Os executivos municipais, pressionados pela união, apressam-se em construir quadras poliesportivas e o material oferecido para as aulas é na maior parte de esportes. Ainda padecemos da preocupação do ensinar as crianças a competir. Mas isso não é mais necessário. Tu não precisas mais catar alimentos no mato, nem caçar javalis. Dividimos as tarefas e cada um faz só um pouco do trabalho, como os espermatozoides. Uns são policiais, outros pedreiros, uns fazem o pão e outros plantam o trigo, uns cuidam dos enfermos e outros ensinam os mais novos. A educação, segurança e saúde estão universalizadas, ao alcance de todos. Nossa espécie é bem sucedida atualmente graças à cooperação. Passamos a nos desenvolver muito mais rápido quando privilegiamos a cooperação. Todos podemos vencer e assim a vida se perpetua mais facilmente. Atualmente, nem precisamos mais competir com outros animais. Ou você teve que correr de algum leão ultimamente? Ainda estamos caminhando em direção à utopia do bem, para todos, todo tempo. Sabemos de antemão que nunca chegaremos, mas caminhar para esse horizonte nos faz avançar muito. No meu entender as crianças não precisam trabalhar, nem ficar doentes, nem competir. Se isso acontecer vai ser um acidente que se lutará para evitar.