quarta-feira, 4 de abril de 2018


Sobre Eleições
Todos meus colegas sabem que sou contra o ensino das competições nas escolas. Acredito ser um desserviço à sociedade civilizada. Competir significa necessariamente excluir: para que alguém vença, outros terão que perder. No entanto, sou justamente eu quem tem a obrigação por lei de ensinar a competir. Esse fato me provoca grande conflito interno e me leva a muita reflexão sobre minha prática profissional e a sociedade em que vivemos.
 É tal a importância das competições como valor moral na nossa sociedade, que tendemos a tornar tudo uma competição e investimos pesado nelas. Reflita comigo, vamos lembrar alguns fatos: Os maiores e mais caros prédios, de qualquer cidade, são os estádios de futebol. Repare que são construções bem ociosas, só são usados uma ou duas vezes na semana. Os esportes tem espaço garantido no horário nobre das mídias, com diversas empresas competindo para patrocinar as caríssimas transmissões ao vivo. A maior sala de aula, de qualquer escola, é sempre o ginásio de esportes, assim como o material didático mais caro é sempre o da Educação Física entre todas as disciplinas ensinadas às crianças. Luciano Huck transforma a habilidade de soletrar palavras ou empilhar copos plásticos em competição nacional para crianças nos sábados à tarde. Faustão transforma cantar, dançar e atuar em divertidas competições aos domingos. Promovemos até mesmo concursos de beleza para decidir quem é a mais bonita ou bonito. Enfim, o entretenimento que é promovido a população são competições de qualquer sorte.
Para a reflexão de hoje, quero chamar a atenção para uma competição específica, as eleições. Numa sociedade democrática, teoricamente, as coisas são decididas numa competição de idéias, numa eleição. Os representantes de cada idéia se oferecem para o eleitorado para serem os realizadores do programa de governo escolhido. Quem tiver o maior número de votos ganha sobre os outros, algumas idéias ficarão de fora. A democracia é, em resumo, uma forma de resolver conflitos de interesses, por isso ela é ainda a mais justa. A terra vai ser propriedade só de alguns? Não, de todos, pública. O excedente da produção vai ficar com só alguns ou com todos? Com todos, a maioria vence. Só quem tem dinheiro vai ter direito a educação e saúde? Não, todos terão acesso, vencem de novo os pobres, a base da pirâmide social. Uma sociedade democrática logo deixa de ser uma pirâmide para se tornar uma elipse, onde a grande maioria tem tudo que precisa para ter uma vida boa.
A onipresença das competições no mundo de hoje, desde os momentos de lazer, até as decisões mais importantes da sociedade, deixa claro que quem tem o poder quer que elas se perpetuem. Acho que vale a pena recordar que os inventores da democracia, os gregos, eram extremamente aristocráticos. Somente homens livres, nativos da cidade, votavam. Escravos e mulheres não tinham direito ao sufrágio. Estima-se que Atenas tinha cem mil habitantes, mas somente mil e quinhentos podiam exercer o voto. A democracia grega era cruelmente excludente. Nem em suas origens mais puras, a democracia era perfeita. A pegadinha atual é que, aparentemente, agora estamos vivendo uma democracia ideal, onde todos podem decidir. Mas há um problema grande ainda, não podemos evitar as manipulações das massas. Cada candidato pode prometer as coisas mais desejadas pelos eleitores antes das eleições e depois de eleito, já investido de poder, direcionar seu governo para interesses pessoais ou de grupos que representa. O próprio Platão denunciava o poder do discurso por ser, ele mesmo, um grande perdedor de votações não sendo um bom orador, apesar de ter as melhores propostas.
Churchill, primeiro ministro inglês durante a segunda guerra mundial, uma vez disse: “A democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que já foram tentadas”. O que ele quis dizer é que a democracia é uma ilusão, mas até agora não inventaram nada melhor. Tanto que, noutra ocasião falou: “O melhor argumento contra a democracia é cinco minutos de conversa com o eleitor mediano”. A democracia nivela por baixo, pelo senso comum. A maioria da população é brutalmente ignorante na maioria dos assuntos. Não entende nada de educação, economia ou saúde pública, administração ou engenharia. Portanto, elege os discursos que reconhece para representá-lo.  Elege tiriricas, jogadores de futebol, pastores evangélicos, apresentadores de televisão. O eleitor médio brasileiro pula carnaval, tem um time do coração, uma religião preferida, assiste novelas de televisão e programas de Big Brother, não vê problemas em atravessar a rua fora da faixa de segurança ou dirigir um pouco acima do limite de velocidade, quer comprar um carro à prestações, acredita que o mundo é assim, sempre foi e sempre será. O eleitor nunca leu um filósofo, não conheceu outros países, nem mesmo outras regiões de seu próprio país, não estudou história, na verdade não se aprofundou em nenhuma ciência social, não visitou museus, muitas vezes nunca foi ao teatro. Ele se interessa por seus problemas pessoais. Enfim, o eleitor é uma pessoa comum que acha que está com a razão pois suas opiniões tem eco entre seus vizinhos.
Na minha opinião, o maior problema da democracia é o fato de ser uma competição. Para ganhar, os candidatos acabam recorrendo aos expedientes mais perversos. Não basta valorizar os pontos positivos de suas propostas, mas também é necessário desmerecer as opiniões diferentes. Isso pode levar os representantes a uma carnificina. Acaba valendo tudo o que o juíz não viu. Negociatas, propinas, maracutaias mis, inclusive comprar o juíz, tudo para ver seus interesses se sobreporem aos demais. Os excluídos e derrotados sempre saem magoados e planejando vinganças futuras, alianças espúrias, ardís antiéticos. Uma eleição, como qualquer competição, revela o pior das pessoas. Sou contra.
No estado de natureza, na selva, há uma competição natural onde o mais apto vence, é selecionado. Geralmente, isso significa o mais forte e agressivo. Algumas espécies animais, mais primitivas evolutivamente, abandonam sua prole à própria sorte ao nascer. Optam pela quantidade, centenas de filhotes. Tartarugas, cobras e jacarés, por exemplo, tem que enfrentrar a competição feroz pela vida desde a mais tenra infância, poucos chegam a idade adulta. Já outras não. Mais sofisticados, aves e mamíferos tendem a cuidar dos filhotes até terem alguma autonomia. Optam pela qualidade, pouca prole, mas bem cuidada. Nós, os Homo Sapiens, ainda somos animais mamíferos como outro qualquer, apesar de lutarmos para sermos superiores as outras espécies, diferentes. Nossa espécie cuida dos rebentos. Procuramos afastá-los da competição natural até que possam lutar por suas próprias forças. Organizamos a  sociedade de tal forma que as crianças possam crescer livres das ameaças do mundo. Ativamente, buscamos nos afastar do estado de natureza em direção a um modo civilizado de vida. Criamos regras que devem ser observadas por todos. Ao longo da história fomos evoluindo culturalmente para uma ética social mais sofisiticada. As eleições e os esportes foram um grande passo. Transformamos as lutas corporais em disputas verbais ou com regras claras. Mas acho que precisamos dar um passo além. Futuramente, acredito, confrontos, tanto esportivos quanto eleitorais, serão vistos como ritos primitivos e selvagens.
O grande argumento a favor do ensino das competições nas escolas é o de que as crianças enfrentarão competições no futuro, então já devem ir se acostumando. No entender dos adultos, as crianças devem aprender a enfrentar adversários com objetivos opostos, seguindo regras, obedecendo autoridades e sabendo admitir derrotas com dignidade. É verdade, mas também enfrentarão o mercado de trabalho e nem por isso as fazemos trabalhar na infância. Ao contrário, nós as protegemos o máximo que podemos para terem uma formação ótima sem traumas e seqüelas. Estamos quase conseguindo, através de leis e regras, erradicar o trabalho infantil. A mesma coisa em relação as doenças. As crianças também enfrentarão doenças, mas fazemos o que podemos para erradicá-las totalmente. Lutamos para que as doenças desapareçam das preocupações humanas. Ou, pelo menos, mantemos as crianças distantes das enfermidades até que tenham condições para se defender melhor. Não vejo benefícios no ensino das competições, ao contrário, só vejo males. Veja que nós mesmos determinamos o que as crianças devem aprender. Porque não determinamos que elas aprendam uma sociedade de solidariedade, de inclusão, de colaboração, de resolução de conflitos através do diálogo e do entendimento? Porque temos que ensinar que a melhor forma de resolução de discordâncias seja um enfrentamento? Acho que temos o dever de ensinar outras formas de sociedade. Uma sociedade que não se divirta com a competição e a exclusão, mas com a solidariedade, a cooperação e a inclusão.
Recordemos primeiro, para ilustrar os efeitos perversos das competições, a eleição mais recente para presidente da nação, quão traumática foi. Dilma ganhou por pouco, mas Aécio, nem dois dias depois, prometeu inviabilizar seu governo. Aproveitando a maioria opositora e liderada por Eduardo Cunha, na Câmara, e o próprio Aécio, no Senado, a oposição começou a fazer tudo que podia para arruinar o governo da presidenta eleita. Colocaram em votação, uma atrás da outra, “pautas bomba” para aumentar os gastos públicos, diminuir a arrecadação e retirar poderes do chefe do executivo. Finalmente, arrumaram um pretexto qualquer para tirar a eleita do poder de forma que, asseguraram, foi extremamente democrática. Imediatamente, colocaram em prática o programa de governo que saiu derrotado das urnas e que privilegia as elites. Nos Estados Unidos também. Trump perdeu por 3 milhões de votos, mas, por piruetas nas regras eleitorais, ganhou a eleição contra vontade da maioria e começou a desfazer obras do governo anterior e implementar programas impopulares.
Que sociedade doente a que compete. É muito triste uma sociedade ganha-perde. Onde eu só obtenho sucesso com a derrota dos outros. Pense em Grêmio e Inter. O Inter torce para que o Grêmio perca e vibra com a derrota para o Real Madrid na final do mundial. Torcemos pela derrota do outro... é isso? Ficamos tristes se o outro obtém sucesso... sério? Acho que podemos construir juntos uma sociedade melhor, uma sociedade ganha-ganha. Não seria melhor um sociedade que senta e conversa, debate e tenta chegar a um consenso negociado em vez dessa que fica competindo para ver quem ganha? Onde todos se ajudam a atingir os objetivos de qualquer um, onde todos vençam e todos se alegram com o sucesso dos outros? Acho que isso é possível e quero ainda ver ensinado nas escolas uma sociedade assim. Muitas outras barreiras já vencemos: as mulheres não votavam, os negros e indígenas nem eram considerados gente, os homossexuais eram considerados doentes ou pervertidos. Quantos argumentos tolos já foram derrubados ao longo da história em busca de uma sociedade eticamente mais sofisticada e justa. Nós construímos a sociedade que queremos, eu luto por uma mais justa e inclusiva.
Examinemos agora o caso da nossa eleição de diretores que se aproxima. Acho que temos aí uma excelente oportunidade para ação pedagógica revolucionária. Nas escolas de Osório, crianças a partir de dez anos serão convidadas a participar com seu voto, então, perceba, temos em mãos a próxima geração, o que iremos ensinar? Competição excludente ou colaboração includente? Também votam, claro, professores, pais e funcionários. Outra oportunidade extraordinária para propor o debate e provocar reflexão. Podemos dar visibilidade a nova proposta e tornar a escola conhecida mundialmente mostrando uma proposta de gestão sem eleições, sem competição, mas, ainda assim, radicalmente democrática.
Se não tomarmos uma atitude em direção ao diálogo, vamos imaginar o que acontecerá, tendo como pano de fundo a lembrança da experiência de todas as outras eleições anteriores: Um ano antes já começam a pipocar comentários sobre as possíveis mudanças. Os grupos começam a se formar em torno das alternativas. Surgem candidatos de situação e oposição. A situação tem a máquina a seu favor e a oposição precisa de alguma forma, criticar ou sabotar o andamento dos trabalhos se está insatisfeita com eles e deseja mudança. Uns se defendem outros atacam. Os possíveis futuros quadros de orientação e supervisão começam a ser contatados.  A cizania está plantada, tudo a partir de agora será usado como argumento na campanha eleitoral. Há um ano da eleição, os trabalhos pedagógicos já ficam em segundo plano e o foco está na contenda.
Agora, imaginemos se tivéssemos uma atitude mais positiva, de franca alteridade, de compreensão e não de julgamento, como poderia ser: Civilizadamente, sentaríamos e conversaríamos sobre o que está dando errado e como cada um pode contribuir para que tudo funcione legal. Em vez de reclamar, poderíamos planejar juntos sobre os próximos passos e como devem ser os procedimentos a realizar. Decidiríamos em conjunto os eventos e as atitudes que tomaríamos em cada situação. Consensualmente, chegaríamos a decisão de quem ficaria a frente da escola, assinaria como diretor, também quem seria supervisor e orientador. Ao final do processo, todos estaríamos comprometidos com o melhor andamento dos trabalhos escolares porque seríamos ativos elaboradores da proposta.
Acho que é possível. Quem topa?