sexta-feira, 22 de dezembro de 2017


Hoje cogitei escrever no meu wall do facebook: “Help me if you can, I’m feeling down”: Very British and true. Estava um calorão saariano e eu sozinho em casa, arrumando um cano na rua. Pensei em tomar um banho de rio, talvez melhorasse meu humor e isso é uma das atrações da Barra. Coloquei protetor solar e uns calções e sai de tronco nu e chinelos em direção a pinguela que atravessa o córrego. Caminhei pela trilha na mata até o poção na frente do Refúgio Verde. Já tinha umas três pessoas se banhando lá, conversei um pouco e entrei na água que estava uma delícia. Meu humor já estava melhor. Uma grande tempestade se formou e assustou meus companheiros de banho que temiam ficar presos pela subida do rio. Eu fiquei ali, nadando peito contra a correnteza sem mergulhar a cabeça para olhar a paisagem. Agora mais só, fiquei vagando na água com meus pensamentos. A chuva começou a cair forte e gelada fazendo a superfície do poção arrepiar. Olhei no entorno, a mata, o rio, a chuva, as nuvens, o vento e eu, ali, interagindo. Nadei crawl alguns instantes subindo a correnteza para depois me deixar levar um pouco pelo fluxo. Me senti uno com aquilo tudo e percebi que a natureza me via assim também, parte dela. Minha respiração era como o vento, o marulhar do meu nado como o ruído da chuva no rio. Somos somente elétrons, prótons e nêutrons, dançando no universo, eu, as pedras, o rio, o vento. Uma grande emoção me inundou e me flagrei bem feliz. Lembrei porque tinha vindo morar em Maquiné. Olhei para os lados e achei bela a cena onde eu era parte do quadro. Caiu um raio próximo e achei melhor sair da água. Atravessei a pinguela de volta e caminhei pela estrada sob aquele aguaceiro. Meus braços latejavam do esforço de nadar, ainda ofegava, mas meu corpo estava relaxado e refrescado. Minha mente estava lavada, os místicos diriam: a alma lavada. Aliás, que bobagem o dualismo corpo-mente. Tá na cara que somos corpente, uma coisa só, una com a natureza. Lembrei de alguns novos amigos que fiz aqui na cidade, na minha nova casa e como ela está ficando do jeito que gosto, do trabalho braçal pesado que arranjei, da hérnia que ganhei com ele, de como minha vida mudou. Me emocionei de novo, agora mais forte, ria e chorava, um doido caminhando sob a chuvarada. Senti coisa semelhante quando vi baleias saltando em Imbituba. Uma emoção tão forte que eu queria partilhar. Será que as pessoas que moram aqui a mais tempo já riram e choram semi nus embaixo da chuva como eu hoje? Será que é por isso que vieram morar aqui, por que sentiram algo semelhante? Quem mora tão perto do rio, já deve ter vivido emoção dessa magnitude. Porque nunca comentaram comigo? Nós temos que conversar mais. E os guris e gurias, criados soltos por essas terras mágicas, quantas coisas eles podem contar. Porque nós não nos reunimos para conversar?

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

O dia em que andei de bicicleta no meio do Oceano Atlântico
ou
Como adquiri minha consciência crítica e me tornei um grande amante

Cheguei em Gênova ainda pela manhã. Tinha pedalado pouco mais de 60 km pela Via Aurélia, antiga estrada romana a beira do Mediterrâneo, desde Savona, também na Liguria. Apesar das belas paisagens do mar azul cobalto, estava exausto. Era junho, finalzinho da primavera na Itália, dali uma semana o verão me abraçaria com força, fazia sol e calor. Havia um mês que vagava pela Côte d’Azur de bicicleta comendo cerejas na beira da estrada e um miojo por dia. Eu estava macérrimo, faminto e sedento, percebia que minhas forças estavam no fim. Precisava achar emprego logo, meu dinheiro estava acabando.
Gênova é uma cidade portuária grande. Fiz um giro pelo centro não para conhecer, mas por não saber onde ir. Parei numa praça grande, sentado a sombra, para pensar e beber água. Já tinha percebido algumas coisas importantes da Itália: a bagunça do trânsito era semelhante ao Brasil, o país era muito mais quente que o resto da Europa, tudo era o dobro do preço e ninguém falava inglês. Comi a última maçã que me restava e vi a plaquinha de informações turísticas. Eu não era exatamente um turista, era sim um trabalhador irregular a procura de emprego, mas ali poderia obter informações de campings baratos. Entrei e perguntei para moça do bureau de turismo, numa engraçada mistura de Inglês, Francês, Espanhol e mímica, sobre possíveis acomodações, locais para comprar comida barata, distâncias para outras cidades, meus planos estavam totalmente em aberto. Ela ficou curiosa por eu ser brasileiro e perguntei se, já que ali era um porto tão grande, por acaso não havia um navio de passageiros que fosse para o Brasil. Perguntei brincando, era óbvio que não ia ter. Para meu assombro, ela disse:
- Ecco là, guarda!
Me apontando um cartaz colado na parede ao lado da porta atrás de mim. Uma mulata carnavalesca anunciava um navio que fazia uma linha regular para o Brasil. Quase cai para trás de susto. Perguntei para moça então se ela não sabia quanto custava tamanho luxo. Ela tinha a resposta na ponta da língua, como se ela mesma estivesse interessada em partir, parecia entusiasmada com meu interesse:
- 1.260.000 lira!
Sim mas quanto, mais ou menos, era isto numa moeda mais internacional, digamos... Em dólares? De novo ela sabia de cor e, sem titubear um segundo, me respondeu com precisão:
- Mille!
Estremeci. Não era possível! Ela parecia ter vasculhado meus bolsos para elaborar o valor da passagem. Naquele momento eu tinha notas de dinheiro de vários países, resultado do trabalho ilegal de dois anos: algumas notas de marcos alemães, francos franceses, ainda restavam uns florins holandeses do tempo que morei em Amsterdam, mais francos belgas e até um punhado de dólares. As moedas eram de nacionalidades ainda mais diversas! Mas eu sabia que trocando tudo daria cerca de mil dólares. Eu estava a uma decisão de casa, do conforto, da segurança, da comida. E viajar de navio também era um antigo sonho meu. Peguei o endereço da agência que vendia as passagens e saí testaviando do bureau. Não podia gastar um centavo até decidir.
Subi e desci as ladeiras da cidade, num calor de fritar ovo no asfalto, atrás do local que vendia as passagens. Achei a rua, mas não o número. A numeração genovesa era uma confusão: 7, 1752, 54, 2, 33, 289, 8... Estava desistindo, cansado de empurrar a bicicleta para cima e para baixo sem sucesso no meio do tumulto da rua movimentada do centro histórico daquela cidade medieval, teria que voltar ao bureau para perguntar melhor. Nisso, uma moça pequena falou muito rápido comigo em italiano, respondi em inglês que não estava entendendo. Ela prontamente refez a pergunta em inglês, era rápida, oferecendo ajuda. Expliquei que não estava achando a agência do navio devido a confusão na numeração da rua e mostrei o endereço que tinha. Ela me indicou o lugar, eu teria que subir novamente a ladeira que tinha acabado de descer e subir umas três vezes. Lamentei isso e ela então me contou que também viajava de bicicleta com o esposo, por isso percebeu meu cansaço e minha necessidade. Ofereceu pouso, me deu seu endereço e falou a hora que estaria em casa, se despediu e sumiu na multidão da rua. O encontro todo durou uns trinta segundos, mas me deixou bem contente, já tinha onde passar a noite e grátis. Mais animado, subi novamente a rua e, agora, de cabeça erguida, percebi que estava passando na frente da pequena casa onde Cristovão Colombo havia nascido. Finalmente caiu a ficha de onde eu estava, num porto importante da história do ocidente.
Entrei no representante do armador do navio, curioso e ainda indeciso. Voltar ao Brasil ainda não estava nos planos. Mas fui ver como é que era a coisa, quem sabe? O lugar era suntuoso, como convém a um armador, dono de navios, não a uma agência de viagens. Eu estava com as roupas de ciclista, sujo, esquelético, provavelmente fedido, me sentia tão a vontade no lugar como um gato na ponta de um trampolim. Encostei minha bicicleta carregada na parede de vidro transparente e entrei, corajoso. Perguntei sobre a existência da viagem e a possibilidade de um brasileiro embarcar. Sim, era ali mesmo e sim, qualquer passageiro poderia ir para o Brasil, mesmo sendo um navio cargueiro. O preço da passagem era duzentos dólares maior que a moça do bureau de turismo havia informado. Argumentei que era menor de 26 anos e na Europa sempre tem desconto para jovens, além disso, tinham me dito outro valor. A atendente, me pediu um minuto e foi até a mesa de um senhor ao fundo do luxuoso escritório com chão de granito batendo os saltos na pedra verde escuro. Maquiada para festa e sobre um salto dez e um tailleur vinho, voltou fazendo aquele toc-toc-toc no piso liso. O chefe havia autorizado o desconto, mil dólares. Oba. Tem algum limite para bagagem? Sim, duzentos quilos. Tudo bem, a bicicleta carregada era bem menos que isso. Fiquei por um momento refletindo na frente da moça arrumadíssima, o contraste da minha aparência com a do lugar era evidente. E as refeições? Tudo incluído. Ótimo. Que dia sai? A “previsão” do navio zarpar era em doze dias. Eu não teria dinheiro para me hospedar, nem comer, mas isso era o de menos, lembrei da moça que me ofereceu pouso. Também poderia arrumar algum bico até lá. Onde desembarcaria no Brasil? Poderia escolher, sem custo adicional, Rio de Janeiro, Santos ou Paranaguá, as escalas do navio no Brasil. Pensei que mesmo em Paranaguá seriam uns mil km até Porto Alegre sem dinheiro nenhum, uns dez dias de viagem no mínimo, mas azar, já estava habituado ao jejum. O mais difícil, atravessar o Atlântico, já estaria feito, então era como estar em casa. Avisei a moça que eu teria que trocar o dinheiro no banco e já voltava. Ela então me perguntou se eu pretendia levar a bicicleta, apontando para meu sofrido veículo atrás da vidraça. Ora, claro! Me informou que bicicletas eram mais duzentos dólares. Argumentei sobre o peso, mas a moça estava irredutível, balançava a cabeça negativamente. Pedi que ela perguntasse ao seu chefe do fundo do escritório se não daria para abrir uma exceção para um jovem. Ela foi lá, toc-toc-toc, falou com o senhor e voltou, toc-toc-toc, confirmando a negativa: se queres levar a bicicleta é mais duzentos dólares. Comecei a fazer um teatro enorme, mostrando como eu poderia então, desmontar a bicicleta, enrolá-la num pano e ela então teria a aparência de uma trouxa de viagem. A guria só balançava a cabeça de um lado para o outro, séria. Fiz graça, melhorei o teatro, mímicas mis, tentei falar em italiano, poderia ser algum problema na comunicação, qual o impedimento de entrar com uma trouxa de 50kg num navio de carga? Outras pessoas do escritório acompanhavam de longe minha performace de cômica mendicância e riam, mas a minha interlocutora permanecia séria e balançando a cabeça. Mas eis que o senhor lá do fundo, o chefão, gritou em inglês com um sotaque carregadíssimo de italiano:
-                     OK!!! But is the last thing I do for you!
Agradeci faceiro em Italiano:
-                     Mille Grazie!!!
O escritório todo sorria agora, na simpatia consegui o desconto! Bom, até hoje não sei se foi simpatia ou má educação, sei que todos sorriram para o engraçado e exótico viajante brasileiro. Acho que naquele escritório fino, jamais tinha se atrevido a entrar personagem tão maltrapilho. Resolveram fazer caridade comigo! Sai e fui trocar o dinheiro todo para liras italianas. Em cada banco havia uma cotação diferente de cada dinheiro. Fui a todos que encontrei e troquei cada dinheiro no banco que pagava mais. Ao final do dia eu tinha 1.290.000, suficiente. Voltei lá e comprei a passagem, sobraram 30 liras, o equivalente a algo como dez pães cacetinhos... para doze dias. Algum milagre ia ter que ocorrer!!!
Sai do armador com a passagem na mão e fui ao endereço daquela moça que me havia oferecido pouso. Eram jovens como eu, recém casados. Ficaram felizes que havia conseguido comprar a passagem, mas apavorados do quanto me sobrou. Fizeram uma massa para o jantar e enquanto eu devorava alguns pratos fundos de comida, a massa na Itália é deliciosa, começaram a baixar dos armários da cozinha todas as comidas que tinham na despensa: massas, latas de molho, salsichas em conservas e frutas. Também me instruíram para onde eu deveria ir para pedir ajuda enquanto não embarcasse. Dormi lá.
No outro dia, pela manhã, agradeci muito o casal pela ajuda, me despedi e sai em busca da Cáritas, uma organização cristã de ajuda aos pobres que haviam me indicado. Na Cáritas, uma freira me disse que eles não poderiam me ajudar, mas havia uma organização voluntária de ajuda aos estrangeiros. Me deu o endereço e sai a caça do lugar. Cheguei lá por volta de uma da tarde, mas não acreditei que fosse ali, não tinha nada escrito na frente. O lugar era uma ruína, fechada com folhas de zinco, embaixo de um viaduto ferroviário. Desanimei e sentei a sombra para almoçar uma das maçãs que os italianos haviam me dado. Eu deveria racionar aquela comida até o dia da viagem. Ainda faltavam onze dias. Fiquei pensando o que fazer no oásis da sombra do viaduto, estava muito quente. Nisso chegaram dois rapazes, mais ou menos da minha idade, também tinham aquela informação. Era ali mesmo! Eles tinham até um panfletinho de papel cor de rosa que mostraram, com o mapa e o horário de funcionamento: das 15 às 15:30!! Ficamos conversando, esperando o horário de atendimento. Eles eram tchecos, tinham servido na legião estrangeira francesa na Argélia, mas fugido. O serviço militar para os estrangeiros era muito duro, tinham desistido. Pontualmente às 15 horas, chegou um senhor, abriu uns cadeados e tirou as correntes do zinco. Mandou a gente entrar um por um e se meteu no porão da ruína. Atrás dele já foi um dos tchecos. Depois de uns cinco minutos, o guri saiu contente, tinha conseguido pouso e refeições por três dias. Foi o outro tcheco e a história se repetiu, também conseguira. Chegou minha vez, entrei sem jeito, com medo e dúvida, como no escritório do armador. Mas agora minha aparência estava muito mais de acordo com o ambiente. Contei minha história, mostrei a passagem e as trinta liras que me sobraram. O senhor ouviu e me alertou: só vamos te ajudar até o dia da viagem, tu tens que embarcar mesmo! Me alcançou doze tickets: três de “colazione”, três de “pranzo” e três de “cena”, além de três “notte” no Asilo Noturno Masoero. Além disso, orientou para que eu voltasse em três dias pegar mais. Sai contente, pelo menos café da manhã, almoço e janta estavam garantidos, e o mais importante, as noites! Toda a comida que ganhei dos italianos poderia servir para a viagem de Paranaguá, quando eu desembarcasse no Brasil, até Porto Alegre. Percebi nesse momento a magnitude de meu empreendimento. Fiz um balanço mental: Eu conseguira! Havia sido uma história de sucesso total, tinha garantido a volta vivo para casa depois de dois anos de viagem pela Europa. Quando cheguei não falava nenhuma outra língua que não fosse meu português, adolescente, completamente sozinho, sem dinheiro, mas mesmo assim dei conta de morar, trabalhar e viajar por seis países, aprender oito línguas diferentes, comer coisas que nunca imaginei existirem, conheci museus, castelos, parques, monumentos, praias, cidades históricas e pessoas maravilhosas antes de completar 22 anos de idade. Me tornei uma pessoa muito melhor depois dessa viagem, estava satisfeito com meu engrandecimento.
Com a autoestima lá em cima, sai com minha bicicleta atrás do Asilo. Era nas docas do porto. Na frente do lugar, recém cinco da tarde, uns quantos homens já esperavam a abertura da pousada junto com os dois tchecos. Sentei com eles e esperei conversando. Tinha búlgaros, gregos, húngaros, albaneses, iugoslavos, russos, eslovenos, italianos, desempregados, bêbados, drogados, refugiados, fugitivos, ladrões... só a nata da sociedade européia e eu, todos estávamos bem à vontade sentados sobre tijolos na calçada. Às oito horas da noite ainda era dia claro, abriu o Asilo e negociei com um senhor muito idoso um lugar para por a bicicleta à noite. Ele disse que eu poderia por no sótão, mas só tirar no dia da minha viagem, concordei. Subimos num belíssimo elevador art noveau de carga. O sótão era uma incrível coleção de objetos antigos e empoeirados. Malas, principalmente. Algumas deveriam estar ali há séculos, os mais diversos formatos. Acomodei minha bicicleta lá e desci com o senhor. Troquei meu primeiro ticket de “cena” por um prato de sopa. A comida era para idosos, havia muitos no refeitório, os pedaços de carne estavam tremendamente cozidos, bem moles e esbranquiçados. Tomei um banho no banheiro coletivo e dormi tranquilo num quarto com outros seis sobreviventes da vida, como eu.
Os dias foram passando assim: Todos tínhamos que acordar às sete e cair fora do asilo antes das oito. “Colazione” com velhinhos, passeios a pé pela manhã, “pranzo” com carne esbranquiçada, passeios a pé pela tarde, “cena” e esperar abrir o asilo às oito. Esse momento era o melhor do dia. Eu ficava conversando com os habitantes do lugar, cada um com uma história mais incrível para contar. Velhos lobos do mar, tatuagens e cicatrizes, pernas de pau e olhos de vidro. Os que passaram a vida no mar tinham a aparência exatamente igual àquelas histórias de piratas que eu já havia lido em tantos livros. O constante contato com os elementos da natureza ou mata ou deixa sequelas, uma delas pode ser a sabedoria. Conversando aprendi que a Eslovênia estava se separando da Iugoslávia, achei aquilo incrível. Ouvi histórias de como passar contrabando para Rússia, como pescar atuns ou como era o treinamento da legião estrangeira nos desertos argelinos. Um senhor grego de oitenta anos havia estado em Porto Alegre, até me descreveu a entrada na lagoa dos patos e a escala em Rio Grande. Eu tinha a história mais tosca e curta de todos, eu era o bebê do asilo.
O dia da viagem finalmente chegou. Estava nervoso, teria que passar pela alfândega depois de dois anos de ilegal na Europa, talvez criassem problemas. Resgatei a bicicleta do sótão lendário, me despedi dos amigos que estavam por ali e fui para o Porto. Uma moça da companhia de navegação pegou meu passaporte e de outros passageiros e entrou num prédio. Em pouco tempo voltou e devolveu meu documento com o carimbo de saída. Felizmente, ninguém deu bola para mim na imigração. Bueno, saindo do país, emigrando, acho que eles nem pensam em criar caso, só se fosse entrando. Entrei no navio pedalando. Era um imenso navio de carga, de dimensões faraônicas. Estava atracado pela popa quadrada, uma coisa estranha. Uma enorme tampa se abria na traseira do navio e virava uma rampa. Era um navio especializado em transportar automóveis, mas estava quase que completamente vazio, só tinha dez Alfa Romeus e três empilhadeiras de containers num fundinho do porão. Collor de Mello recém tinha aberto as importações e um Alfa custava cinco no Brasil, era um luxo absurdamente caro. Larguei, simplesmente, minha bicicleta perto do elevador, nem precisou amarrar. Um marinheiro me explicou que o barco era muito grande para balançar. O navio tinha trezentos metros de comprimento, mesmo se houvesse uma tempestade, nem se mexeria. Peguei os alforjes todos da bicicleta e subi os onze andares até minha cabine. Larguei minhas coisas e saí contente a explorar o navio.
Passeei pelos longuíssimos corredores, eram muitas cabines, umas cem. Ocupadas mesmo só seis. A minha tinha eu, dois rapazes de Bauru e um Italiano. Conheci o restaurante onde seriam as refeições, a biblioteca, a discoteca, subi para a piscina e dei umas voltas no convés principal observando a movimentação do porto. Estava distraído pensando na vida e como seria legal essa viagem, quando o capitão veio falar comigo. Educadamente me explicou que o navio havia sido reformado e muitas autoridades chegariam à tarde para uma cerimônia de reinauguração. Por ser passageiro, estava convidado para o evento. Mas, com mais educação e tato ainda, me rogou: será que não daria para eu trocar de roupa? Pelo menos uma calça jeans? Me examinei, parecia mesmo um mendigo. Claro, eu tinha uma calça jeans, nem todas minhas roupas eram um farrapo. Fui me trocar um pouco constrangido. Foi a única vez que o capitão me dirigiu a palavra durante toda a viagem.
Lá pelas seis da tarde me coloquei na popa do navio para observar a movimentação de cima. Uma fila de carros luxuosos entrava velozmente pela rampa lá embaixo, eram uns vinte Mercedes Benz, todos pretos. O elevador agora subia e descia trazendo mais e mais gente embecada dos porões para a parte social do convés superior. Subi lá também, eu era o único de jeans, todo mundo de terno e as mulheres de vestido fino. Tinham montado um altar onde agora há pouco havia uma piscina. Logo, três bispos ou cardeais, não sei, tinham aqueles chapéus altos e bicudos, começaram uma missa. A cerimônia teve bençãos mis e discursos em italiano. Me avisaram que era o prefeito de Gênova, o Governador da Liguria, o dono do navio, representantes comerciais e mais autoridades. Aquela embarcação deveria ser uma importante aposta da economia local. Nada me impressionou muito no evento, nem carros pretos, tapetes vermelhos, nem ternos, nem cardeais ou governadores. Mas invejei mesmo um senhor que estava com a mulher grávida, ela vestia um longo colorido. Era a mulher mais linda que já tinha visto na vida, alta, gorda e loira. Tinha uma classe titânica e um charme avassalador. O cara tem que ser muito, mas muito especial para conquistar uma mulher daquelas.
Depois da missa, todos se cumprimentaram e desceram para o convés lateral. Sentamos todos em mesinhas com toalha branca que haviam colocado ali. Serviram uns pratos de salgadinhos e eu comecei a gostar da festa. Achei que ia ser só aquilo ali. Então me empanturrei de salgadinhos, eram deliciosos. Há meses estava comendo pouco ou nada, há doze dias com os velhinhos do asilo, então aquilo era um banquete. Tiraram os pratos de salgadinhos e trouxeram um prato quente. Era uma carne branca, coelho, me disseram. Comi o prato todo e fiquei super saciado, mas havia mais. Recolheram os pratos sujos e trouxeram a sobremesa, era umas rodelas de abacaxi com oito bolas de sorvete. Comi tudo! Fiquei empanzinado, nem conseguia me mexer. O povo foi saindo e indo embora e eu ali sentado. Os garçons começaram a retirar as mesas e as cadeira e eu ainda ali sentado. Até que um dos garçons veio delicadamente pedir para que eu levantasse da cadeira onde eu estava para que eles pudessem guardá-la. Levantei e caminhei vagarosamente para a murada, mas não cheguei muito perto, fiquei com medo de ter um mal estar e cair lá de cima. No outro dia, quando acordei, já havíamos zarpado e não se via mais a costa. Estávamos no meio do Mediterrâneo.
A vida no navio era tranquila. As refeições eram pontuais e não se podia perder o horário sob pena de ficar com fome. Muitos frutos do mar e massas italianas, todos os dias uma tábua de queijos e uma sobremesa diferente. Experimentei polvo e lula, lagosta e camarão, comia tudo com gosto, prazer e interesse. Durante o dia ficávamos na piscina e a noite eu gostava de ir para a ponte de comando observar. Era 1990, mas o barco já tinha GPS, era uma incrível tecnologia para a época. O timão do navio era mínimo, uns vinte centímetros de diâmetro e nunca era tocado. A ponte de comando era enorme e cheia de instrumentos, grande área envidraçada e estava sempre no escuro a noite, somente a luz da lua e das estrelas entravam pelas janelas. No entanto, a visibilidade era maravilhosa, o mar refletia as estrelas e tudo era muito claro. O “acelerador” do motor tinha doze velocidades, quatro “adagio”, quatro “mezzo” e quatro “tutta”. Atravessamos o Mediterrâneo sempre no segundo “mezzo”, o motor ia folgado e nunca o escutei. O silêncio na ponte de comando era total, só quebrado por um alarme quando algum outro navio entrava no “range” do radar em rota de colisão conosco. Viajar num navio assim, gigantesco, dá uma paz muito grande. Mesmo a noite se enxerga tudo, os horizontes são infinitos para todos os lados e só se houve o sussurro do vento e o marulho das ondas. Um maravilhoso local para ficar sozinho com seus próprios pensamentos e mergulhar profundamente neles. Passamos o estreito de Gibraltar e entramos no Atlântico.

Quando cruzamos o equador, ganhamos um diploma conferido por, segundo o médico de bordo que andava sempre bêbado, Netuno. Na carta náutica do Atlântico que estava aberta na ponte de comando já aparecia o Brasil. Lembrei de preparar o desembarque. Aquela vida mansa de banhos de piscina, observação de cardumes de peixes voadores cruzando a proa e refeições servidas por garçons estava perto do fim. Alguns tripulantes ficaram meus amigos, assim como todos os passageiros, conheciam minha história e meu objetivo final, Porto Alegre. O cozinheiro me deu muitas frutas e mais algumas latas de atum para viagem e um senhor idoso do Rio de Janeiro, me deu uma nota de dinheiro desconhecida para ajudar na viagem de bicicleta de Paranaguá até minha casa. Nos dois anos que estive fora, cortaram seis zeros da moeda brasileira e aquela nota que o senhor me deu não me dizia nada, nem agradeci direito. Depois descobri que era a nota mais cara naquela época no Brasil. Pedi ao rapaz que cuidava das máquinas para ver minha bicicleta no porão. Não era uma coisa permitida, mas ele deixou. Desci o elevador e lá estava minha fiel companheira no mesmíssimo lugar que a tinha deixado. Fiz uma revisãozinha rápida e constatei que o único problema era na roda traseira, estava descentrada. Coloquei a bicicleta no elevador e subi até o convés para consertar na luz do sol. Fui até minha cabine e peguei as ferramentas, voltei correndo, faceiro e excitado com a possibilidade de eu mesmo fazer o reparo. Virei a bicicleta de cabeça para baixo sob a sombra das cabines no lado de fora da minha escotilha. Usei o próprio quadro como guia para centrar a roda. Eu nunca tinha feito isso, mas não dava mais para adiar, estava muito torto aquele aro depois de mais de 5000km rodados na Europa. Apertava os niples e era um desastre, parecia ficar pior a cada tentativa. Sozinho e em silêncio no enorme convés, concentrado eu investigava aquela roda. Somente o vento, o solão equatorial, o céu azul claro e o horizonte infinito do oceano azul escuro testemunharam meu esforço. Apertava e desapertava desapontado. Tentava e errava de novo. Parei e refleti, fazer sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes é maluquice. Olhei as peças, analisei. Levantei hipóteses e testei. Eureca, achei o segredo: os raios funcionavam como cordinhas e não como pilares. Me maravilhei com a descoberta, num instante centrei a roda que ficou perfeita de novo.
Minha auto estima subiu horrores naquela manhã, porque percebi que era um adulto agora. Capaz de perceber problemas, analisá-los, experimentar hipóteses, fazer uma autocrítica, encontrar alternativas e soluções. Lembrei do livro que li na adolescência, emprestado pelo meu Tio Luiz, Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas. Me senti como o autor Robert M. Pirsig. O compreendi muito mais. O livro tinha me marcado muito e, na época que li, prendi com percevejo pedacinhos de papel com frases soltas do livro que tinham me chamado a atenção no mural lá de casa. Uma delas falava sobre os mecânicos, que muitas vezes param de trabalhar e parecem perdidos em pensamentos durante o serviço, parece que lidam com peças, mas não, lidam com conceitos que não estão ali, mas a milhares de quilômetros dali. Coloquei a bicicleta em pé, pensei em guardá-la no porão de novo, mas desisti. Olhei aquela paisagem onírica, o horizonte infinito, tudo azul, o imenso convés daquele navio gigantesco, a terra mais próxima estava a mil quilômetros de distância. Subi na bicicleta e sai para uma voltinha no barco. Fui até a proa por bombordo e voltei a popa por estibordo. Cada volta dava uns 500m, fiz umas três. Pedalar em alto mar, cruzando o equador, é uma coisa extraordinária que poucas pessoas no mundo já fizeram. Eu já tinha ido em tantos lugares que acabei encontrando, sem querer, os conceitos de que Pirsig falava.
A experiência dessa viagem no final da minha adolescência mudou totalmente minha vida. Adquiri uma consciência crítica. Comecei a encontrar inconsistência e irracionalidade em muitos valores da sociedade da qual sai. As coisas que a escola, a religião, a televisão e a família me diziam já não me serviam mais. Choquei muitos com minhas novas opiniões quando voltei. Ainda choco. Me tornei um E.T.. Sou chamado de radical, xiita, niilista, iconoclasta. Muitas coisas ainda estou aprendendo, volta e meia outro insight e alguma ficha inesperada cai. Tudo que sei é que nada sei, como dizia Sócrates. Mas, como ele, aborreço os dogmáticos de plantão. Quando se dá a volta ao mundo de bicicleta, como fiz, se passa fome, frio, se dorme na rua, se aprende obrigatoriamente outros idiomas porque o exótico é o teu e ninguém te entende, se cresce. É como nascer, sair do útero acolhedor da comunidade que te viu pequeno. Viajando se percebe quão infinitesimal é tua existência, tanto no tempo quanto no espaço. A pessoa que viaja, ataca desconhecidos na rua, percebem dificuldades e tenta ajudar, como a moça em Gênova. Oferece pouso, como ela e seu esposo. Quem viaja, se torna mais cristão, partilha o pão, como o cozinheiro do navio e o bom samaritano da parábola bíblica. Velhos que viajaram muito tem infinitas histórias para contar, como meus colegas de asilo. Ex viajantes criam associações de ajuda aos estrangeiros, não são xenófobos. Oferecem até dinheiro para um desconhecido, como o passageiro idoso do Rio de Janeiro. Quem viaja se torna um cidadão de esquerda, compreende mais o mundo como um barco no oceano e que é preciso salvar todos, todos temos dificuldades mais cedo ou mais tarde. Quem viaja não fica remoendo mazelas mesquinhas, egoístas e conservadoras da cidadezinha em que nasceu. Não é por acaso que todas as religiões do mundo pregam grandes peregrinações. Vá a Méca, Jerusalém, São Tiago de Compostela, Katmandu ou Nova Déli, Roma que seja. Mas vá caminhando, de bici ou moto. Vá de um jeito que te obrigue a interagir com os elementos da natureza e desconhecidos que não te entendem. Tu vais descobrir o verdadeiro sentido da vida, que é simplesmente, amar o próximo, por mais diferente e estranho que seja, que ao fim e ao cabo é o que todas as religiões pregam. Viaje!

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Exatamente durante a partida final da libertadores, enquanto o povo se distraía com o circo do futebol, foi aprovada na câmara dos deputados do congresso nacional uma renuncia fiscal extraordinária. Até 2040 as empresas petroleiras estrangeiras estarão isentas de pagar impostos. Como até lá será perfeitamente possível tirar todo o óleo do pré-sal e a Eletrobrás também está sendo doada, é óbvio que o Brasil abdicou definitivamente de suas reservas energéticas doando tudo ao capital financeiro transnacional.  Um trilhão (R$ 1.000.000.000.000,00) de reais é o valor estimado da renúncia segundo os técnicos do próprio congresso. Diante desse montante, os 25 bilhões perdoados do Itaú (banco que já adquiriu parte do Banco do Brasil e está para adquirir o resto) viraram brinde. O país está sendo saqueado por psicopatas bárbaros sem resistência alguma. Não é a toa que grandes empresas patrocinam o futebol e as transmissões ao vivo na Globo, é um investimento de baixíssimo custo! Enquanto estamos de ressaca com as comemorações do tri campeonato e preocupados com o sorteio das chaves da copa da Rússia, Tacla Duran depõe e incrimina Moro e os procuradores da Lava-jato com provas abundantes, já periciadas pelo ministério público da Espanha (lembra do ministério público da suiça que prendeu o cunha? Só assim.). Somente um tolo não percebe a real função social do esporte. O problema é que somos muitos tolos, somos a grande maioria da população. Os vândalos estão nos estuprando e queimando nossas casas, mas... Viva o Grêmio! Rumo ao mundial!!!